Na manhã quente e luminosa do dia 16 de janeiro de 1983, um domingo, Ana Maria e eu, mais os amigos Maria Lima e Olavo Colares, partimos da Serra do Estêvão ao encontro de Rachel. Grande proprietária de terras, a família Queiroz era dona das fazendas Califórnia, Itália, Manaus, Biscaia e Junco, nos sertões de Quixadá, a 180 quilômetros de Fortaleza. Do pai, Daniel, a escritora herdaria um quinhão, denominado Não Me Deixes, que assume, com o marido Oyama, em 1953.
Fizeram tijolos, cortaram a madeira, construíram a casa, a parede do açude e as cercas do curral. A primeira metade do ano – “inverno” para o sertanejo, quando chove na região –, Rachel de Queiroz passava no Não Me Deixes (assim, no masculino, chamava a fazenda), entre caminhadas pelos arredores e conversas com os moradores, como se sofresse, na bela expressão do escritor cearense Eduardo Campos, de um Complexo de Anteu, a extrair da terra a seiva sem a qual não viveria: “Lá, realmente, é o meu lugar. Cada volta minha é um regresso. E sinto que lá é o meu permanente. O Rio é o provisório.” Segundo ela, não havia nenhuma “literatice” no poético nome do lugar, que lhe fora dado já fazia tempo. Não-me-deixes, explicava, é como popularmente se conhece uma planta ornamental, nativa do sul da África.
Meses antes, ali estivera Antonio Carlos Villaça, o grande memorialista de O Nariz do Morto, que visitava a amiga acompanhado pelo então presidente da Cãmara Municipal de Fortaleza, José Barros de Alencar. Quando o carro oficial estacionou no pátio da fazenda, o motorista abriu a porta para que descesse o escritor, enorme nos seus cento e tantos quilos, de terno preto, a barba branca e o cabelo à escovinha. Foi o suficiente para que a empregada, que varria o terreiro, gritasse no rumo da porta: “Corra, Dona Rachel! O bispo chegou! O bispo chegou!”
Agora éramos nós, recebidos pela escritora ilustre singelamente trajada com um vestido de chita, bem mais à vontade, supõe-se, do que no tailleur verde-lodo, bordado com fios de ouro, que passou a usar como a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, em 1977… No alpendre em que nos abancamos, a conversa estendeu-se por toda a manhã, Rachel a falar sobre livros, personagens e autores.
Graciliano Ramos, por exemplo, para ela “o melhor de todos nós”, os do chamado “Romance Nordestino de 30”: Zé Américo de Almeida, Jorge Amado, Zé Lins do Rego e Amando Fontes. Além de grande amigo, o autor de Vidas Secas também foi, em determinada época, inquilino da autora, que gostava de visitá-lo: “Certa vez Heloísa, a mulher dele, me disse que Graça passara a noite bebendo, enquanto escrevia páginas que, de manhã cedo, dissera estar uma porcaria, e jogara tudo na lata do lixo”. Rachel vai então ao quintal e, por entre restos de comida, encontra nada menos do que os originais de Infância: “Mas, espertamente, Graciliano pusera as folhas num saco plástico, certo de que o primeiro amigo que chegasse iria à procura do manuscrito… Contei isso muitas vezes na frente dele, só para ouvi-lo dizer que o saco plástico era invenção minha. Eu gostava de provocar o Graça…”
Perguntei-lhe se alguma das centenas de personagens a que dera vida já lhe dominara, a ponto de mudar o rumo da história: “Sim, de maneira decisiva, até. Um dia, imaginei uma peça de teatro em que a grande figura fosse Maria Bonita, mulher de Virgulino Ferreira, o cangaceiro famoso. O cabra, porém, agigantou-se tanto que acabou por dominar a cena. E tive de dar ao espetáculo o nome de Lampião… Só na minha segunda peça, A Beata Maria do Egito, pude criar uma protagonista forte, que não se apequenasse ante o poder dos homens, como eu queria na primeira.”
Tão trabalhoso quanto conceber os tipos humanos era, observou, resgatar o cotidiano e a linguagem da época em que se desenvolve a ação: “Se quero escrever, por exemplo, que um sertanejo cospe fora o chiclete e diz que vai à zona, tenho de saber se, no sertão daquele tempo, as pessoas mascavam chiclete e chamavam de zona o lugar das prostitutas.”
Quanto à adaptação de obras suas para a tevê, Rachel de Queiroz não escondia o desagrado. Entre 1980 e 1981, a Globo apresentara, em 161 capítulos, a novela As Três Marias, baseada no romance homônimo e dirigida por Herval Rossano. “Achei muito ruim o trabalho. Eles puseram lá umas referências antissemitas que não há na minha história, e que me constrangeram bastante, devido às boas relações que mantenho com os judeus. Só não os processei na justiça porque teria de depositar, em juízo, todo o dinheiro que a Globo me pagara, e que gastei no tratamento de saúde do Oyama, falecido no ano passado.”
À Academia Brasileira de Letras, a romancista não dá maior importância: “É uma associação literária, um clube de escritores, que se reúnem às quintas-feiras para tomar chá, conversar e, às vezes, falar mal dos que se arriscam a não comparecer… Eu gosto desse convívio, ameno e prazeroso.”
A uma pergunta de Joel Silveira, que a entrevista para o Jornal do Brasil, Rachel declararia mais tarde sobre O Quinze: “Esse é o livro de que eu menos gosto. Me persegue há 60 anos. Detesto ele. Todo mundo vem com ele para eu assinar. Fiz outros bem melhorzinhos.” Foi exatamente o romance que lhe apresentei para um autógrafo, no meu exemplar da 22ª edição, publicado pela José Olympio na Coleção Sagarana, em 1977, com ilustrações de Poty. “A Ana Maria e Edmílson, lembrança de uma bela visita, com um abraço da Rachel de Queiroz”, escreveu, com a letra firme e elegante que cultivava desde a juventude.
Na manhã do dia 4 de novembro de 2003, exatamente 26 anos depois de empossada na Academia Brasileira de Letras, e a duas semanas do aniversário de 93 anos, foi encontrada morta no apartamento em que vivia no Rio de Janeiro, após sofrer um infarto durante o sono. Embora vítima de derrame cerebral em 1999, e de uma isquemia no ano seguinte, até sete meses antes de morrer ditava para a irmã, Maria Luíza, as crônicas publicadas semanalmente pelos jornais O Estado de S. Paulo e O Povo, de Fortaleza. Velada no Salão dos Poetas Românticos da Academia, foi sepultada não na Fazenda Califórnia, junto aos seus, como quisera um dia, mas no cemitério carioca de São João Batista, ao lado de Oyama, o grande amor.
No correr de uma longa e fecunda existência, Rachel de Queiroz não quis ser mais do que a Velha Senhora que se dizia “melhor cozinheira do que escritora”, a mulher simples, a sertaneja autêntica, para quem um alpendre, uma rede e um açude eram a expressão maior da felicidade humana. Passados sete anos desde que se foi, essa admirável brasileira permanece na lembrança dos amigos e na admiração dos leitores, pela vida que viveu, pelos personagens que criou, pelas histórias que contou. Isso tem um nome: é IMORTALIDADE.
Edmílson Caminha
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