Sterne, o irlandês que influenciou Machado

Que dizer de um romance em que dois capítulos são de páginas em branco, a ser preenchidas pelo leitor? Em que a dedicatória se põe à venda?  Em que o prefácio se encontra na página 202? Em que linhas tortuosamente riscadas, como se pela mão de uma criança, representam os volteios da narrativa? Que pula da página 296 para a 307, pela ausência deliberada de um capítulo? Com linhas feitas de asteriscos, a ocultar referências eróticas? Em que se condena o plágio… com um plágio? Em que há capítulos com páginas cobertas por um preto de luto, outras cheias de manchas ou com apenas duas linhas? Moderno, diremos. Mais moderno ainda ao saber-se que foi publicado no século XVIII, há 260 anos! É A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (2. ed. São Paulo : Companhia das Letras, 1998), do irlandês Laurence Sterne, primorosamente traduzido e ricamente anotado por José Paulo Paes. Nas 31 páginas da excelente apresentação, escreve o tradutor que “a ficção do século XX reconhece em Sterne o mais genial e o mais radical de seus precursores, a ponto de romancistas como Virginia Woolf, James Joyce, Samuel Beckett e Michel Butor, entre outros, terem-lhe sofrido o influxo”. Nomes a que se antepõe ninguém menos do que Machado de Assis, que lhe deve grande influência sobretudo nas Memórias póstumas de Brás Cubas. Constatação bastante para que nós, brasileiros, já valorizássemos Sterne, não se revestisse a obra da surpreendente originalidade que a consagraria com o correr do tempo.  

Pastor anglicano em uma pequena aldeia da Inglaterra, o próprio autor não esperava o êxito de venda dos dois primeiros volumes do romance, publicados em 1760: apenas quatro meses depois foram reimpressos, pois já não se conseguia sequer um exemplar, “nem por amor nem por dinheiro”, nas palavras do modesto pároco que se convertera em celebridade. Tão conhecida se fez a história que houve até mudanças no comportamento social das mulheres. Ao fazer amor com o marido, a futura mãe de Tristram pergunta ao velho Shandy se dera corda no relógio, operação realizada no primeiro domingo de cada mês, quando, de trinta em trinta dias, os dois cumpriam burocraticamente os deveres conjugais. A cena parece ter causado escândalo na época, diz o apresentador, “a julgar por um panfleto publicado meses depois dos volumes iniciais do Tristram Shandy, em que um relojoeiro anônimo se queixava de as senhoras de respeito terem deixado desde então de comprar relógios, com receio dos comentários maliciosos que isso poderia provocar”.

Foram nove partes, ao todo, a última saída em 1767, sem que se saiba com certeza se a essas se condensaram as 20 de que o romancista chegou a cogitar. “Com o Tristram Shandy”, lê-se na apresentação, “aconteceu algo raras vezes registrado na chamada sociologia do gosto literário: um livro ostensivamente escrito para frustrar as expectativas do leitor comum tê-lo conquistado de imediato, convertendo-se num dos best sellers de sua época”. De fato, é prosa cheia de frases longas, enredadas, com idas e vindas, circunlóquios e floreios, como se ao narrador interessasse menos contar a história do que tomá-la como pretexto para comentários e firulas. Exemplo: em determinado ponto, a fala de uma personagem, tio Toby, é interrompida por digressão que se estende por 30 páginas! Gosto pela perífrase que, no texto machadiano, Erico Verissimo relaciona à epilepsia do autor, em conferência sobre ele pronunciada nos Estados Unidos: “Outra característica do epileptoide encontrada na obra de Machado é sua tendência a explicar. Em Memórias Póstumas, o leitor às vezes se cansa e até se irrita com as constantes partes e digressões do autor, que parece estar mais preocupado em explicar as coisas para o leitor do que em contar-lhe uma história. Há capítulos inteiros que são puros parênteses.”

A par do exemplo sterniano, também seguido pelo brasileiro, de conversar com quem o lê, como a instituir um distanciamento dialógico, para lembrar-lhe que não vive uma história real, por mais verdadeira que aparente, mas lê a fantasia inventada por alguém, à semelhança do espectador em um teatro. Assim, vê José Paulo Paulo Paes, em Tristram Shandy, “o marco zero do meta-romance ou do romance sobre o romance”, que faz de quem o escreveu precursor da moderna ficção psicológica: “Com isso, realizava ele, já no século XVIII, aquilo que, em nosso século, Ortega y Gasset apontaria como novidade em Dostoiévski (…)”

Afinal, qual o enredo de A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy? Realmente, quase nenhum. Dispõe-se o narrador a contar a própria vida, mas só chegará ao dia do nascimento no meio do quarto volume, página 283! Até lá são análises e reflexões em que há de tudo: história, filosofia, religião, filologia, riqueza a que não teriam acesso os leitores brasileiros não anglófonos, salvos pela excelente tradução e pelos comentários esclarecedores de José Paulo Paes: são exatas 617 notas, a dizer de acontecimentos e personagens históricos, autores e livros, expressões idiomáticas e jogos de palavras que inevitavelmente se perdem na passagem do inglês para outra língua.

Sabe-se, assim, que to have a green gown, ter um roupão verde, significava também em inglês manter relações sexuais e, especialmente, deflorar uma virgem; an old hat, um chapéu velho, era como figuradamente se chamava o órgão sexual feminino. São muitas, a propósito, as referências a sexo, com símbolos fálicos como o nariz de um forasteiro, que, grande como poucos, dele não conseguem tirar os olhos o dono da hospedaria e a esposa que diz querer tocá-lo…

Sob a influência do humor de Rabelais, da especulação de Montaigne e do humanismo de Cervantes, Laurence Sterne antecipa em 200 anos o conceito da opera aperta de Umberto Eco, ao afirmar:

A arte de escrever, quando devidamente exercida, (como podeis estar certos de que é o meu caso) é apenas um outro nome para a conversação. Assim como ninguém que saiba de que maneira conduzir-se em boa companhia se arriscaria a dizer tudo, – assim também nenhum autor que compreenda as justas fronteiras do decoro e da boa educação presumirá conhecer tudo. O respeito mais verdadeiro que podeis mostrar pelo entendimento do leitor será dividir amigavelmente a tarefa com ele, deixando-o imaginar, por sua vez, tanto quanto imaginais vós mesmos.

Com tal importância, admira que somente em 1984 publique-se a primeira tradução do Tristram Shandy para o português, uma das joias literárias que devem os leitores brasileiros a José Paulo Paes. Conclui-se, então, que Machado o tenha lido no original (seu inglês era suficiente para tanto), ou na tradução francesa, castelhana, talvez. Considere-se, no entanto, a possibilidade surpreendente de que nunca o haja lido, segundo Maria Elizabeth Chaves de Mello, no livro A biblioteca de Machado de Assis. Ao consultar-lhe as obras, hoje pertencentes à Academia Brasileira de Letras, a pesquisadora deu com dois volumes de Sterne em inglês (Tristram Shandy e Viagem sentimental), “absolutamente intactos, sem nenhuma anotação, nenhuma dobra, nenhuma assinatura do proprietário, páginas impecáveis, apenas amareladas pelo tempo”. Manuseada, somente a edição francesa do Sterne inédito, depois acusado de apócrifo, escrito por um tal Richard Griffith.

Tenha ou não mergulhado na literatura do irlandês, importa que Machado lhe conheceu as particularidades, as invenções, o estilo, como fez constar no bilhete “Ao leitor”, com que se abrem as Memórias póstumas: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.

Dirige-se, frequentemente, o defunto–autor a quem o lê, provoca-o, divaga e esforça-se por não se levar demasiado a sério, bem à maneira sterniana:

Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.

“O velho diálogo de Adão e Eva”, entre Brás Cubas e Virgília, é todo feito de pontos, interrogações e exclamações. O capítulo CXXXVI, “Inutilidade”, tem pouco mais de uma linha: “Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.” Sentimento com que Machado, a exemplo do irlandês aos olhos de José Paulo Paes, nega, como já desmentira anteriormente, a ilusão ficcional pela ênfase na materialidade da obra:

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho nada que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…

À influência de Laurence Sterne, acresça-se, em favor do nosso romancista, o refinado humour (no sentido britânico, mesmo) de que dá provas no capítulo “Parêntesis”:  

Suporta-se com paciência a cólica do próximo.

Matamos o tempo, o tempo nos enterra.

Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.

Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.

Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar. 

 

Com mão de mestre, Machado de Assis fez das Memórias póstumas de Brás Cubas um romance que se lê entre o sorriso da galhofa e o leve desencanto da melancolia. Sentimentos com que testemunhou homens e mulheres a rir e a chorar no teatro do mundo, personagens da peça, cheia de som e de fúria, que se chama vida.

Subscreva as nossas informações
The following two tabs change content below.
Imagem do avatar

Edmílson Caminha

Professor, jornalista e escritor brasileiro, Edmílson Caminha é membro da Academia Brasiliense de Letras, do Pen Clube do Brasil, da Associação Brasileira de Imprensa e do conselho consultivo do Observatório da Língua Portuguesa. Publicou, entre outras obras, Lutar com palavras; Drummond, a lição do poeta; O professor, Beethoven e o ladrão e A solidão no Programa do Jô.
Imagem do avatar

últimos artigos de Edmílson Caminha (ver todos)

Scroll to Top