Imagine-se alguém que se proponha discorrer, em um só volume, sobre a vida e a obra de vários nomes importantes da literatura mundial. Ainda mais: permite-lhes filtrar o que dizer de si próprios. Façanha assim foi brilhantemente empreendida por um brasileiro, José Paulo Cavalcanti Filho, com Fernando Pessoa: uma quase autobiografia (Rio de Janeiro : Record, 2011), sobre o escritor português e seus heterônimos, a maior e mais relevante homenagem que já se prestou ao poeta, em todos os lugares, em todos os tempos. São 734 páginas em que Pessoa é estudado, pesquisado, analisado, investigado à exaustão, referência obrigatória em tudo que se escrever, daqui por diante, sobre o autor de Mensagem.
É muito, frente aos quase seis mil livros, calcula-se, a ele dedicados, especialmente três biografias: Vida e obra de Fernando Pessoa (1950), de João Gaspar Simões; A vida plural de Fernando Pessoa (1988), de Ángel Crespo, e Estranho estrangeiro (1996), de Robert Bréchon. Nenhuma com a abrangência, a profundidade e a substância da que agora se publica. Nela, fotografa-se Pessoa de corpo inteiro, o homem que se embebedava de vinho do Porto, fumava 80 cigarros por dia, gostava de caldo verde e, supersticioso, não se sentava a mesas com 13 pessoas.
Gênio de grandeza incomum, consumia-se na penosa e frustrante luta pela sobrevivência ‒ “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”, como no verso de Bandeira ‒, a trabalhar em pequenos escritórios e empresas de comércio. Não ganhou o prêmio Nobel com que sonhava, mas o Antero de Quental, de poesia, às expensas do Secretariado da Propaganda Nacional. Se bem que fruto de uma “conspiração” de amigos: ante a classificação em primeiro lugar de outro concorrente, estabeleceu-se, nos bastidores, prêmio especial para o poeta de Mensagem ‒ cinco mil escudos (3.500 euros, hoje), que aliviaram, por um tempo, a algibeira vazia do poeta.
Publicitário, é dele o famoso slogan para a Coca-Cola portuguesa, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, que acabou por levar o Ministério da Saúde, ao tempo do ditador Salazar, a proibir o refrigerante, pois “primeiro se estranha e depois se entranha é, precisamente, o que sucede com os entorpecentes”. Apreendidas, as garrafas do produto foram jogadas no rio Tejo, e só voltaram a vender-se em 1977, no governo socialista de Mário Soares.
Em busca de dinheiro, escreveu sob encomenda para um russo, Eliezer Kamenezky, e chegou a pôr no papel algumas invenções, como um novo componente da máquina de escrever, precursor da esfera depois introduzida pela IBM em seus modelos elétricos. Ocorreu-lhe, também, um jogo de futebol de mesa, matraquilho (totó, no Brasil), mais tarde patenteado por um espanhol.
Ao gosto por esoterismo e mediunidade devem-se os 2.700 papéis astrológicos incluídos na famosa arca de documentos que deixou, entre eles 318 horóscopos feitos, além de mapas astrais de figuras como Chopin, Newton, Napoleão e Shakespeare. Interessado em ciências ocultas, relacionou-se com Aleister Crowley, charlatão inglês que, chegado a Lisboa, simulou a própria morte com a ajuda do poeta, a quem revelaria, mais tarde, viver na Alemanha, depois do suicídio fake… Impressiona saber Pessoa ligado a esse tipo de gente, impostor que, de volta à Inglaterra, vendia a ingênuos pílulas de um “elixir da vida”, fabricadas com o próprio sêmen. Diga-se, por curiosidade, que a foto de Aleister Crowley é uma das que se veem na capa do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club, disco dos Beatles, na companhia de Marx, Jung e Einstein, entre outros…
Pesquisador compulsivo, José Paulo chega aonde poucos vão. Pergunta a vários médicos do que realmente morreu Pessoa, em 1935, aos 47 anos ‒ de pancreatite, é a conclusão. Para saber que se fizera, em Paris, do corpo de Mário de Sá-Carneiro, amigo maior do biografado, conversa com um funcionário do Service Administratif que Conserve la Mémoire des Défunts Enterrés; no rastro do oferecimento de emprego que Ophelia Queiroz, namorada do poeta, lembrava-se de haver saído em uma edição do Diário de Notícias, não o encontra entre os mais de 1.500 anúncios que tem a pachorra de ler na coleção do jornal. Corre, até, o risco de ser preso: ao segurança que não lhe deixa entrar em um edifício no largo de São Carlos, sugere que chame a polícia, pois subirá ao apartamento no quarto andar em que nascera Pessoa, apenas para checar a lembrança de que, de lá, podia-se ver o Tejo e escutar os sinos da igreja de Nossa Senhora dos Mártires. É tamanha a obsessão com o rigor que o biógrafo não se contenta em anotar o endereço de residências e casas de comércio: folheia catálogos antigos para dar o número do telefone…
Natural, pois, a ânsia que lhe desperta o Arquivo Fernando Pessoa, na Biblioteca Nacional de Lisboa: leu, um a um, 27.543 documentos, dos quais 18.816 escritos a mão e 3.948 datilografados. Mergulho de que se origina um abrangente e substancioso painel da obra pessoana, sobreposto ao que há na biografia quanto ao homem, ao lugar e ao tempo em que viveu. Apresentam-se, então, os heterônimos de Pessoa. Não apenas Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, os quatro famosos: José Paulo Cavalcanti Filho conta nada menos do que 127 ‒ com algum exagero, diga-se, pois muitos nomes foram apenas anotados ou referidos por Pessoa, sem que deles haja produção. Heteronímia, em certos casos, tão rica e tão misteriosa que transcende as fronteiras da literatura para alcançar o âmbito da psicologia e da medicina. Talvez até da mediunidade, segundo a doutrina espírita, a julgar pelo depoimento de Ophelia sobre o namorado: “Era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos. Dizia-me, então, hoje não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos. Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhado, dizendo coisas sem nexo.”
Mais do que invenções, apenas, são criaturas que se relacionam como se vivas fossem, elementos de uma intricada e complexa trama. Os primeiros surgidos na infância do poeta, por volta dos cinco anos, como Chevalier de Pas e Capitaine Thibeaut. Há heterônimos parentes (como os quatro irmãos Search e os quatro irmãos Wyatt); heterônimos que se transformam em outros (como Charles Robert Anon, que vira Alexander Search); heterônimos criados por heterônimos (como o Ex-seargent William Bing, inventado por Horace James Faber); heterônimos que se manifestam sobre heterônimos (como Frederico Reis, autor de textos sobre o irmão Ricardo, e I. I. Crosse, que escreve sobre Alberto Caeiro e Álvaro de Campos).
Deu-se, até, episódio que resultou em prisão, quando o heterônimo Jean-Seul assina carta em que antevê a morte de Salazar em 1968: “vejo uma cadeira e, depois uma cama e, depois… depois vejo um circo”. Acontece que havia mesmo um Jean-Seul em Portugal, preso por agourar o ditador… Espantosa, a premonição: falecido em 1970, o governante acidentou-se em 1968, ao cair de uma cadeira. Para o biógrafo, o circo simbolizaria, talvez, a festa popular que comemorou o restabelecimento da democracia…
Ao longo do texto, José Paulo revela o gosto pela história, ao escrever, com seguro conhecimento, sobre a lenda de Dom Sebastião (em Portugal e no Brasil), a participação dos portugueses na Primeira Grande Guerra e o Estado Novo de Oliveira Salazar, instituído em 1932. Destaquem-se as 660 notas que enriquecem o livro, com dados que vão da mitologia à etimologia, e as epígrafes latinas que ilustram os capítulos, postas, até, na bibliografia e no índice onomástico. Evidências da erudição do autor, no mais nobre sentido da palavra, sob a discrição e a modéstia próprias dos intelectuais verdadeiramente grandes.
Com Fernando Pessoa: uma quase autobiografia, José Paulo Cavalcanti Filho ergueu notável monumento que honra o poeta e se inclui, por todas as razões, entre as mais importantes obras do gênero na literatura em língua portuguesa.

Edmílson Caminha

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