Era a última noite da viagem que fazíamos a quatro, Ana Maria e eu com Lula e Olavo, amigos-irmãos e compadres diletos. No East Village, acertamos ao escolher o Porsena, onde pedimos uma boa massa e um vino rosso di Toscana com ela condizente, que não nos pesasse na cabeça nem no bolso.
Mais tarde, felizes pelo que comêramos, alegres pelo que bebêramos, vemos chegar um senhor que me lembra Paulo Autran, embora mais baixo, de colete laranja com tiras fluorescentes, ao que reajo com estranheza, preconceituoso: “Um operário em restaurante caro como esse…” Encaminha-se, discretamente, para a mesa junto ao vidro que dá para a calçada e nos cumprimenta com um sorriso. Pede ao garçom uma taça de vinho, tira o colete, depois um emblema que traz pendurado ao pescoço e, a seguir, observa Lula, aquele colarinho de plástico branco do clergyman, veste que a Igreja Católica adotou em lugar da batina. “É padre…”, concluímos, e Olavo espera que chegue ao fim da refeição para tirar a dúvida. “Sou, sim, padre da Ordem de São Basílio Magno”. Os quatro já em volta dele, simpaticamente apresentou-se:
‒ Meu nome é Bernard Panczuk, nasci na Ucrânia, tenho 78 anos de idade e 52 de sacerdócio, pois ordenei-me em 1963. Sou pároco da Igreja Católica Ucraniana de São Jorge, aqui em frente.
Perguntamos-lhe sobre o colete e o emblema:
‒ Sou capelão voluntário da New York City Transit, e acabei de cumprir um plantão noturno, em que tenho de estar a postos para qualquer eventualidade em que se necessite de assistência religiosa.
Olhou para o relógio e, atenciosamente, surpreendeu-nos com um convite:
‒ Já é quase meia-noite. Se vocês não se incomodam, gostaria que conhecessem minha casa. A igreja está aqui em frente…
Atravessamos a rua e o seguimos, por uma porta lateral, até ao interior do templo, mergulhado na escuridão. Fez-nos parar no início do corredor, entre os compridos bancos de madeira:
‒ Esperem aqui, por favor. Quero fazer-lhes uma surpresa…
E caminhou rumo à sacristia. Minutos depois, o canto gregoriano como que brotou do silêncio em volta, enquanto as luzes suavemente venciam as trevas para revelar o fulgor dos ícones bizantinos, a riqueza dos mosaicos que embelezam a igreja e nos enchem de profunda emoção. Lula tem a feliz ideia de dizer:
‒ Padre, Olavo e eu fizemos esta viagem para comemorar nossos 40 anos de casamento…
‒ Que felicidade! Eu poderia rezar uma missa, em ação de graças por vocês.
Apresso-me em esclarecer-lhe que não haveria tempo: voltaríamos para o Brasil pela manhã.
‒ Mas eu celebro agora! Ponho os paramentos, preparo o altar e iniciamos a celebração.
Não acreditávamos no que acontecia: um sacerdote, que conhecêramos fazia pouco, abria as portas da igreja a dois casais de estranhos, em gesto de amor fraternal e de louvor a Deus. Lembrou-me o Padre Myriel, a comovente figura d’Os miseráveis, de Victor Hugo, que uma noite acolhe em casa o fugitivo Jean Valjean. Dá-lhe comida, repouso e, mais do que tudo, solidariedade humana. Brutalizado por décadas de injustiça e de violência, o condenado cede à tentação de furtar quem o recebera, e vai-se embora com os talheres de prata postos à mesa, para que se servisse como gente. Preso pela polícia, é levado à presença do padre, com os objetos de que se apropriara. “Não, vocês se enganaram: a prataria pertence a esse cidadão, foi presente meu. Por sinal que ele deixou os castiçais, que também lhe dei…” Se a cadeia não redimira Valjean, a bondade o fizera, e Monsieur Madeleine era a prova da salvação, como sabe quem leu o romance famoso.
Com a mesma fé em Deus, e o sentimento de que nascera para servir, Padre Bernard oficiou a missa apenas para nós quatro, imersos na meia-noite silenciosa e profunda. Leu o Evangelho, deu-nos a comunhão, abençoou-nos e despediu-se com um canto de esponsais, como deve ser costume na Ucrânia.
Mostrou-nos o colégio pertencente à igreja, do qual é diretor e professor, a casa em que vive, ofereceu-nos lembranças dos seus 50 anos de ordenação sacerdotal e perguntou-nos como voltaríamos para o hotel. Ao saber que de táxi, objetou:
‒ A esta hora?! É difícil passar um. Meu táxi é muito mais confortável do que esses que rodam por aí…
Tirou o carro da garagem e nos levou até ao Afinnia Manhattan, na 7ª Avenida com a Rua 31. Prometeu-nos voltar ao Brasil, a que já veio ao encontro de colegas em Foz do Iguaçu.
Ao nos despedirmos, dei-lhe um forte e comovido abraço. Entrou no automóvel e partiu. Fiquei a acompanhá-lo por alguns momentos, até que desaparecesse na noite. Foi como se fizesse brilhar uma esteira de luz, por entre as tentações e os prazeres da cidade que nunca dorme.
Deixamos o aeroporto sem que as autoridades descobrissem que os donos daqueles passaportes eram outras pessoas. Jamais seríamos os mesmos. Sob a guerra, a dor e o medo a que se condenou o mundo, fôramos testemunhas, em Nova York, de uma bela e inesquecível experiência: o milagre da comunhão fraterna e do amor ao próximo.
Edmílson Caminha
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