A Carta do Deslumbramento com o Brasil: “descobrimento” ou “achamento”

Onésimo Teotónio Almeida


Pêro Vaz de Caminha usou um termo politicamente correto para denominar o seu feito: “achamento”. Muito se tem escrito sobre as diferenças entre essa alternativa a “descobrimento”, inclinando-se a preferência pelo uso do primeiro, todavia sem grande iluminação daí advir. O facto, porém, de “descobrimento” ter passado a ferir suscetibilidades é por si uma ajuizada recomendação para que muitos o evitem. No Brasil sobretudo, a substituição tem ganhado popularidade, muito embora não fique claro como isso resolve os problemas que para muitos “descobrimento” suscita. Na verdade, as reclamações de brasileiros protestando que o Brasil existia e era habitado, e por isso não poderia ter sido “descoberto”, não me parece boa razão para se evitar o termo. “Descobrir” não significa “criar”. Nas descobertas científicas, os investigadores descobrem o que existe na natureza, mas que não tinha sido visto antes. Quando Newton descobriu a lei da gravidade já as maçãs lhe caíam em cima da cabeça sem ele saber explicar porquê e nem sequer sobre isso se interrogar. O telescópio ajudou Galileu a descobrir as rotações da Terra e de outros planetas à volta do sol, sem que nunca pela sua mente, nem pela de mais ninguém, tenha passado a ideia de que fora ele a por os planetas a girar. 

Podemos ir mais longe e passar a outros contextos do uso do termo. Quando a polícia descobre um criminoso, não cria o criminoso. Ele existia, contudo era desconhecido da polícia e das vítimas do crime que não o haviam identificado. Claro que até poderia ser conhecido de muita outra gente que tinha mantido segredo.  Se algum desses coniventes lessem uma notícia no jornal anunciando a descoberta do criminoso, poderia eventualmente informá-lo – Foste descoberto! – sem isso de modo nenhum significar “foste criado” ou “inventado”. Pura e simplesmente quer dizer que “alguém que tu não querias que soubesse da tua ação ficou a saber sobre ela”.

Há mais contextos do uso do termo, mas o seu significado não se altera. Por exemplo, quando as crianças brincam às escondidas, vai cada uma esconder-se para dificultar a descoberta do seu paradeiro ao parceiro a quem chegou a vez de ir descobri-la.

Em todas estas situações nunca está implícita qualquer intervenção do descobridor na criação ou invenção do objeto descoberto. O ato de descobrir significa apenas o desvendamento de algo que poderia estar diante dos olhos, porém ainda não tinha sido enxergado.

Como “o sentido (ou o significado) é o uso” (a descoberta é de Wittgenstein, mas foi um Eureka! que caiu e apanhou de surpresa tantas sumidades que bateram na testa dizendo: Como é que eu nunca descobri isso?), os lexicógrafos registaram nos dicionários os usos dos termos “descobrir”, “descoberta” e “descobrimento”. É esse o sentido que ainda figura registado nos dicionários, inclusive no excelente Novo Aurélio. Vejamos como o clássico lexicógrafo brasileiro define o verbo “descobrir”:

Descobrir – 1. Tirar cobertura, véu, tampa, ou qualquer outra coisa que ocultava total ou parcialmente, deixando à vista […]. 2. Deixar ver, mostrar […]. 3. Encontrar pela primeira vez […]. 4. Resolver, solver, solucionar, decifrar […]. 5. Dar com, achar, encontrar […]. 6. Patentear, evidenciar […]. 7. Manifestar, revelar […]. 8. Dar a conhecer […]. 9. Denunciar, delatar, revelar […]. 10. Alcançar com a vista, divisar, avistar […]. 11. Notar, perceber […]. 12. Reconhecer, identificar […]. 13. Desfazer, dissipar […]. 14. Percorrer, explorar […]. 15. Descobrir […]. 16. Aparecer à vista, emergir […]. 17. Tirar o chapéu, o barrete […]. 18. Mostrar-se, aparecer […]. 19. Destapar-se, destampar-se […]. 20. Aclarar-se, desanuviar-se, descobrir […]. 21. Tirar de si, afastar o que cobre […]. 22. Deixar a proteção, expor-se […]. 23. Dar-se a conhecer, revelar-se, identificar-se […]. 24. Fazer confidências, revelar segredos ou intentos, confessar-se […].

Já agora, demoremo-nos um pouco mais e consultemos os significados de “achar” (em “achamento”, o dicionário simplesmente remente para “ato ou ação de achar):

Achar – […] 1. Encontrar por acaso ou procurando; deparar com […]. 2. Atinar (com), encontrar, descobrir […]. 3. Considerar, julgar, supor […]. 4. Obter, conseguir […]. 5. Sentir, experimentar […]. 6. Descobrir, encontrar […]. 7. Julgar, considerar […]. 8. Deparar com, encontrar […]. 9. Julgar acertado, deliberar, resolver […]. 10. Encontrar, descobrir […]. 11. Estar, encontrar-se […]. 12. Estar situado, situar-se […]. 13. Considerar-se, julgar-se reputar-se […]. 14. Ser em um dado momento, estar […].

Obviamente que esse “descobrir” ou “achar” do Brasil é do ponto de vista europeu. Os nativos brasileiros não sabiam que a Europa existia e, se se tivessem feito ao mar para nordeste do Atlântico e chegado a Portugal, não acharíamos nós (pelo menos eu, seguindo a atitude descomplexada de Caminha) nada errado se eles dissessem que descobriram Portugal. Na verdade, isso é repetido hoje muitas vezes pela comunicação social quando ela se congratula pelo facto de os brasileiros atuais estarem a “descobrir” Portugal ao visitarem e descobrirem surpresas inesperadas no velho país seu tetravô (ou “tataravô”, como Saramago preferia). Nunca ouvi nenhum português protestar que Portugal já estava descoberto. 

Naturalmente por pensarem com base nos dicionários de português, os autores de um curto texto disponível no portal da Biblioteca Nacional do Brasil intitulado “Cabral chega ao Brasil: descobrimento ou achamento?”, datado de 22 de Abril de 2020, aceitam o primeiro termo sem levantar problemas:

O termo Descobrimento do Brasil é usualmente empregado para designar a chegada da armada lusitana, comandada por Pedro Álvares Cabral, a um território já alcançado pelos europeus e povoado amplamente por nativos. Inicialmente definida como acidental, sabe-se que a vinda de Cabral foi intencional, com o objetivo de legitimar a presença portuguesa, oficializar a posse e iniciar a exploração da terra, inicialmente batizada de Vera Cruz. 

Uma afirmação destas num portal de responsabilidade como a Biblioteca Nacional do Brasil é obra. Para mim, foi uma descoberta. E obviamente ela estava visível na Internet desde 22 de Abril de 2020, isto é, há quase um ano a esta parte. Eu não fui o autor dela; simplesmente descobri-a, embora tardiamente. Mas foi – digamos – um achado.

Abandonemos, entretanto, esta discussão porque os termos não criam nenhuma realidade, apenas a refletem. Não deixará de ser verdade que foram os portugueses a ir até ao Brasil quando na Europa provavelmente ninguém sabia ainda da existência de qualquer terra ali no Atlântico Sul.


Texto completo:


A Carta do Deslumbramento com o Brasil*

O título desta introdução não é um drible politicamente correto para evitar as polémicas suscitadas pelos termos “descobrimento” ou “achamento”. A estes iremos, munidos de espírito desinibido e descomplexado, atitude que convém vestir no tratamento de tais assuntos. Aliás, esta é mesmo uma marca da editora e desta coleção. Por isso estas notas introdutórias são escritas em mangas de camisa. O leitor interessado num estudo minucioso da carta de Pêro Vaz de Caminha tem os clássicos do nosso Jaime Cortesão e do brasileiro Max Justo Guedes – para apenas referir dois estudos basilares -, fundamentais para quem se quiser lançar numa análise aprofundada de tão precioso documento.

No livro O Século dos Prodígios. A Ciência no Portugal da Expansão procurei revisitar os escritos produzidos por figuras envolvidas nas viagens de exploração do Atlântico que depois conduziram à busca do caminho marítimo para a Índia. Debrucei-me particularmente sobre Duarte Pacheco Pereira, Pedro Nunes, D. João de Castro e Garcia de Orta, mas referi vários outros, pois tratou-se na verdade de um grupo de pessoas que revelaram um espírito diferente, novo, em relação ao mundo que aquelas viagens iam permitindo desvendar. Uma das facetas inovadoras foi uma certa postura face à experiência, que aos poucos se impôs como critério de verdade, suplantando os ensinamentos dos antigos, até ali tidos como a autoridade máxima do saber. Fiz, porém, questão de frisar que não foram os portugueses os descobridores da importância da experiência no conhecimento. Já Aristóteles não só escreveu sobre ela como revelou uma atitude empírica nos seus escritos sobre a natureza ao seu redor, particularmente sobre animais, que dissecou para examinar e descrever com rigor. Não afeito a grandes viagens, o seu saber ficou naturalmente limitado à esfera do seu mundo grego. Não foi, aliás, um caso isolado pois, tanto antes dele como depois, outros autores do período clássico – veja-se, por exemplo, Galeno, no século II – atribuíram à experiência um papel fulcral. Mesmo durante a Idade Média, nomes como Roger Bacon, Robert Grosseteste e Teodorico de Friburgo relevaram a excelência do conhecimento empírico e puseram-no em prática no seu trabalho. A inovação portuguesa na história europeia consiste no facto desta atitude experimental não ter sido um caso isolado, mas uma partilha entre navegadores, teóricos e políticos num esforço conjugado de explorarem os mares e terras no Atlântico deles desconhecido. A interface entre a experiência e a teoria com implicações para a tecnologia então disponível, no sentido de aperfeiçoá-la ajustando-a às novas necessidades impostas pelos desafios encontrados nas sucessivas viagens, fez com que uma plêiade de pioneiros empreendedores desenvolvesse uma mentalidade completamente nova naquele tempo e espaço europeu. Isso constituiu uma novidade na história da Europa com amplas consequências: num período de 80 anos permitiu a revelação de que o oceano Atlântico estava ligado ao Índico, tal como permitiu a descoberta, para os europeus da existência do continente americano, e como lhes tornou conhecida a África para além do equador. Se tudo isto ocorreu ainda dentro de uma visão geocêntrica, não deixou, todavia, de causar profundo impacto na transformação da mentalidade medieval e, cem anos mais tarde, acabaria por provocar a que foi, por Thomas S. Kuhn, considerada a primeira revolução científica operada por Newton e Galileu.

Um dos escritos portugueses que apenas de passagem referi nesse livro foi a Carta de Pêro Vaz de Caminha. A explicação é simples: não foi pretensão minha elaborar um tratado sobre os descobrimentos; apenas quis reunir em volume um punhado de reflexões sobre obras e autores específicos, por ser uma maneira de tornar mais acessível uma série desses textos dispersos. O tema da ciência no período da expansão é vastíssimo e multifacetado e por isso seria preciso dedicar uma vida inteira exclusivamente ao seu estudo para se escrever uma história completa. Como tenho repetido quase ad nauseam, entrei nesta problemática por se tratar de uma faceta fulcral na questão da identidade nacional portuguesa. As vicissitudes da vida e os condicionalismos de um percurso académico acabaram impondo-me (ou talvez proporcionando-me) várias oportunidades de regressar frequentemente ao tema.

Isto para dizer que não foi de modo algum intencional a não inclusão n’O Século dos Prodígios de um texto sobre a fascinante carta de Pêro Vaz de Caminha. Na verdade, em livro anterior – Despenteando Parágrafos. Polémicas suaves – tinha já incluído um ensaio em que ele figurava de modo proeminente. Esta oportunidade que a editora Guerra e Paz me oferece agora de escrever uma introdução a esta atualizada (isto é, modernizada, para mais seguindo o novo Acordo Ortográfico) versão da Carta permite-me acrescentar algumas observações que poderão interessar os leitores que a vão ler pela primeira vez (e, espero bem, os que a vão reler sem lhes terem dado mais cedo a devida atenção e reconhecimento).

Entremos então, sem mais, na Carta.

Ela é um documento único nos escritos da expansão. Não há simplemente nada que se lhe pareça. O Esmeraldu de Situ Orbis é um livro informativo, minucioso e rigoroso,  volta e meia dialogando com obras clássicas, todavia quase no estilo de um diário de bordo, preocupando-se com o rigor de pormenores técnicos sobre as orlas, baías, ventos e correntes marítimas. Os roteiros de D. João de Castro são mais evoluídos em termos de conhecimento dos mares, significativamente mais avançados no que à atitude face aos dados da experiência diz respeito. O universo por ele referido é bem mais vasto e decididamente mais profundos os desafios científicos e tecnológicos com que lida. Pedro Nunes é um matemático e teórico que nunca se aventurou mares fora, ao contrário de Garcia de Orta. No entanto este último limitou-se, como médico atento e curioso, a estudar as plantas da Índia e, felizmente, a escutar o que os indianos lhe diziam sobre os usos medicinais delas. Dedicou-se, além disso, a fazer observações perspicazes e deliciosas sobre animais, como os elefantes, essas criaturas que assombraram a Europa, e até um deles, o Hanno, fez as delícias do Papa Leão X. 

A carta de Caminha é algo inteiramente novo e, repita-se, um documento único na história da humanidade. Estou consciente de que me restrinjo à “humanidade europeia” (e especificamente ocidental), mas na minha vasta ignorância não tenho notícia de nada que se lhe assemelhe. Nem Marco Polo revela tal candura perante o inesperado, o maravilhoso descoberto, mesmo se planeado (e a isso já iremos mais adiante).

A narrativa de Pêro Vaz de Caminha – confesso que prefiro não entrar em pormenores sobre ela para que o leitor a descubra virgem, e a aprecie por si próprio pois ela dispensa glosas – basta lê-la atentamente para nos darmos conta da abertura de horizontes dos recém-chegados a um universo novo, inteiramente inesperado. Vemo-los fascinados perante a natureza e a beleza de um povo que os deslumbra. Tudo surge descrito numa linguagem gostosa, ditada por um olhar eivado de quase ingénua inocência. É verdade que experiências anteriores em África tinham já ensinado às gentes envolvidas nas navegações que importava evitar conflitos com os nativos. Os portugueses precisavam de portos de apoio no longo percurso de ida e volta à Índia e era, pois, essencial, por eles serem muito poucos, criar e manter boas relações com os habitantes das terras aonde chegavam. Isso fica de tal maneira evidente no caso do Brasil que até a antiga prática de fazer uns quantos cativos, a fim de os levar para Portugal com o objetivo de lhes ensinar a língua e depois devolvê-los à sua terra, onde desempenhariam o papel de intérpretes e informadores, não acontece neste encontro. A decisão de Cabral é firme. Não houve apreensão de naturais para levar para o reino; pelo contrário, optou-se por deixar ali dois degredados que, em castigo dos seus crimes, ficaram incumbidos da missão de viver com os nativos, aprender sobre os seus costumes e colher informações sobre o que de interesse pudesse existir naquelas paragens. Trata-se de um notável prurido que não encontrei em mais nenhum documento.  Temos assim um Pedro Ávares Cabral politicamente correto, com quinhentos e tantos anos de avanço sobre nós. Conhecem um documento mais moderno? Terei todo o gosto em descobri-lo.

A carta respira por todos os poros o fascínio do novo, que Sérgio Buarque de Holanda captou no título do seu clássico livro Visão do Paraíso. A terra é formosa – as referências refletindo a sensibilidade de Caminha à beleza da paisagem são abundantes – mas os nativos também o eram. Eles e elas. Para mais, despreocupadamente nus como no Éden e sempre referidos sob uma luz positiva – limpos, gentis, bem feitos, galantes. Tudo ao contrário do que se poderia esperar de olhos críticos europeus. Caminha chega mesmo a admitir a superioridade da beleza dos locais relativamente à dos seus patrícios em Portugal.

Um elemento a aduzir é o do desinteresse implicado nessa avaliação imediata. A terra não revelava ter prata nem ouro (não que os não procurassem!) e não aparentava oferecer qualquer préstimo, a não ser o de “pousada para esta navegação de Calecute”. Acrescente-se o facto de os nativos parecerem gente cristianizável sem necessidade de grande esforço, tal a docilidade e inocência que mostrava.

Quer dizer, em resumo, que não há nada de mais moderno, de mais politicamente correto na escrita de quinhentos do que esta carta de Caminha, desde o ponto de vista etnográfico ao ético. Rigorosamente nada. Até chega a admitir haver mais maldade nos nossos do que nos outros. E vou mais longe: esta carta passaria com alta nota no mais rigoroso comité de vigilância encarregado de defender as minorias em qualquer universidade destes nossos tempos do terceiro milénio.

Nada do supradito pretende, porém, insinuar ter a atitude dos portugueses no Brasil sido sempre essa. Estas minhas notas são exclusivamente sobre a carta de Caminha e, por isso, quaisquer extrapolações não são nem legítimas nem justificadas. Na verdade, este documento parece decalcado no livo do Génesis. Há algo que nos transporta ao paraíso de Adão e Eva. Como se um extraterrestre tivesse surpreendido os primeiros habitantes do Éden. Arribados de outro planeta, descobrem, fascinados, Evas nuas e inocentes, bem feitas e belas, sem o menor pudor, nem sequer quando lhes dão uma coberta para se comporem durante a celebração da missa. Na sua inocência, nem reparam nos furtivos olhares de relance que os cobiçosos, famintos marinheiros, lhes devem ter lançado durante o religioso ato. 

Rousseau não pode ter lido esta carta pois durante muito tempo ela esteve perdida, enterrada nos arquivos reais. Se dela tivesse tido conhecimento, ainda com maior veemência teria argumentado em favor do beau sauvage, e causado ainda mais furor na alma de Robespierre e, mais tarde, na do próprio Marx. 

Já que estamos em maré de autores da modernidade, não será descabido trazer Kant à baila. Toda essa beleza desfrutada pelos olhos de Caminha teria impressionado Kant (que, diga-se en passant, quase nada viajou). Ter-lhe-ia servido para exemplo do belo como algo sem qualquer resquício de interesse pessoal. Para Kant, o belo não poderia ter um mínimo sequer de utilidade, e foi precisamente essa a atitude de Caminha. Não sabemos se também dos seus parceiros de viagem, mas pelo menos dois deles por sua iniciativa abandonaram a nau para ficar ali, porque lhes deve ter parecido muito melhor do que a vida em Portugal ou, pelo menos, a vida a bordo.

Embrenhe-se, leitor, por estas páginas, escritas com a mestria de quem conhecia também outros segredos, como o da língua, e delicie-se. Depois falaremos.

Tornou-se hoje um tanto chique apodar os portugueses de parolos, uns meio-palermas que, ao depararem com terras como o Brasil, falaram delas seguindo os padrões e normas que levavam na cabeça, acabando por não enxergar as novidades encontradas, limitando-se apenas a descrevê-las na linguagem e segundo os modelos que levavam formatados nos seus cérebros. Chamam a isso “reconhecer o conhecido”. Os pobretanas e simplórios portugas não teriam conseguido enxergar nada para além da parvónia que transportavam na cabeça.

Ora o conhecimento humano – e não é só com os portugueses e os imperialistas que assim acontece, mas também com os nativos e seja com quem for – avança por um processo dialético, entre a experiência e as ideias feitas, através do qual a mente aborda a realidade. Não é necessário entrarmos aqui pela velha questão em que tanto se empenhou Karl Popper sobre se, ao criar uma hipótese, um cientista estará completamente entregue à experiência, ou se a interrogação que faz ao real será já fruto de uma dúvida que a sua mente formulou. Nunca mais daí sairíamos porque a análise confirmaria que cada caso é realmente um caso. Mas têm todos algo em comum: o processo cognitivo desencadeia-se num diálogo recíproco, labiríntico, contudo sempre dialético, entre a experiência e a mente. O velho debate entre os empiristas e os racionalistas – os primeiros, sobretudo de tradição inglesa, apontando para o papel primordial da experiência e, os últimos, defendendo a primazia da mente e da razão no processo cognitivo – está de há muito ultrapassado. Hoje a ciência estabelecida aceita o chamado empirismo racionalista ou racionalismo empírico, como a fusão dos dois, não como resultado de compromisso político, mas como reconhecimento de que é de facto assim que o conhecimento avança, por meio da interação constante entre a experiência e a razão.

No caso dos descobrimentos portugueses, estamos em presença de um grupo de marinheiros liderados por uma pequena elite conhecedora, quer dizer, detentora de informações herdadas dos antigos, além de misturadas com crenças de toda a ordem provindas do imaginário popular. Levam, é certo, a mente repleta de imagens formatadas dentro de um paradigma medieval e, ao serem confrontados com experiências novas, reagem procurando assimilar a nova informação e fazendo sentido dela à luz dos conhecimentos que têm. São, porém, impressionados igualmente pelo novo, que registam e acumulam – o que aos poucos acaba por alterar profundamente a visão recebida que com eles viajava. Em situações que de todo não conseguem entender, chegam a anotar os dados para depois em terra apresentarem os novos problemas aos “matemáticos” que ficaram atrás, envolvidos no processo por via remota. Obviamente que isso não acontecia com todos os marinheiros. Alguns deles tinham trabalhos tão menores como tirar água do fundo do barco, e mal viam a luz do dia. É certo também que não eram diariamente confrontados com novas informações capazes de pôr em causa alguma faceta do seu imaginário.

Na narrativa de Pêro Vaz de Caminha há, com efeito, um inegável recurso à tradição mítica europeia sobre a Idade de Ouro ou o Jardim do Paraíso. Caminha não inventou essa visão paradisíaca, foi rebuscar no arquivo da sua memória algo com que pudesse comparar a nova experiência, para que os que não viram tal espectáculo pudessem fazer dele uma ideia. Mais ainda: trata-se de uma visão inesperada. Estava ele longe de aguardar algo capaz de o impressionar assim tanto. Tivesse Caminha deparado com uma visão horrífica, não teria recorrido à imagem do Éden mas a outra passagem da Bíblia para transmitir as suas impressões. Ora, isso só confirma ter nele ocorrido uma impressão do real sobreposta à sua expectativa, em vez do processo inverso.

Estamos em presença de um relato de algo completamente novo e que não poderia fazer sentido dentro da cosmovisão de Caminha, para quem Adão e Eva eram os pais de todo o género humano, cujo pecado original tinha sido castigado pelo trabalho e sofrimento para eles e seus descendentes. E, no entanto, ali estava um grupo humano não sujeito à ira e à punição divina. Pêro Vaz de Caminha relata com fascínio essa novidade. Quando sugere que o rei mande clero para converter aquela gente fá-lo porque a sua fé católica era algo que lhe exigia partilhá-la (proselitamente, está visto) com todos os seres humanos. Todavia, não se pôs a inventar maneiras de ajustar a Bíblia ad hoc, congeminando meios de provar que aquela gente devia de algum modo estar também a sofrer à conta do pecado de Adão. Aceitou mesmo que “eles” nada tivessem a ver com isso.

Quer dizer: uma vez mais trata-se de uma experiência nova a desafiar os conceitos trazidos na mente, ou seja, trata-se de um paradigma recebido sendo confrontado com novos dados. O recurso ao imaginário, feito de noções acumuladas, constitui o processo natural de aquisição de novos conhecimentos. Comparamos informação nova com a anterior que transportamos conosco. O termo de comparação de que se serviam os navegadores era o que levavam consigo. Quando falam em terra mais árida ou mais verde, obviamente que tomam as referências de que dispunham para estabelecer relações analógicas. Esse é o modo normal de os seres humanos alargarem a sua experiência. 

Passemos então agora a questões somenos e bastante mais comezinhas. Avanço o aviso de elas não serem necessárias para a compreensão da carta em si, mas apenas do seu contexto. Os leitores desinteressados nelas podem daqui saltar imediatamente para a leitura do gostoso documento. Os demais que tiverem a paciência de continuar comigo, venham então acompanhar-me nessas considerações laterais.

Pêro Vaz de Caminha usou um termo politicamente correto para denominar o seu feito: “achamento”. Muito se tem escrito sobre as diferenças entre essa alternativa a “descobrimento”, inclinando-se a preferência pelo uso do primeiro, todavia sem grande iluminação daí advir. O facto, porém, de “descobrimento” ter passado a ferir suscetibilidades é por si uma ajuizada recomendação para que muitos o evitem. No Brasil sobretudo, a substituição tem ganhado popularidade, muito embora não fique claro como isso resolve os problemas que para muitos “descobrimento” suscita. Na verdade, as reclamações de brasileiros protestando que o Brasil existia e era habitado, e por isso não poderia ter sido “descoberto”, não me parece boa razão para se evitar o termo. “Descobrir” não significa “criar”. Nas descobertas científicas, os investigadores descobrem o que existe na natureza, mas que não tinha sido visto antes. Quando Newton descobriu a lei da gravidade já as maçãs lhe caíam em cima da cabeça sem ele saber explicar porquê e nem sequer sobre isso se interrogar. O telescópio ajudou Galileu a descobrir as rotações da Terra e de outros planetas à volta do sol, sem que nunca pela sua mente, nem pela de mais ninguém, tenha passado a ideia de que fora ele a por os planetas a girar. 

Podemos ir mais longe e passar a outros contextos do uso do termo. Quando a polícia descobre um criminoso, não cria o criminoso. Ele existia, contudo era desconhecido da polícia e das vítimas do crime que não o haviam identificado. Claro que até poderia ser conhecido de muita outra gente que tinha mantido segredo.  Se algum desses coniventes lessem uma notícia no jornal anunciando a descoberta do criminoso, poderia eventualmente informá-lo – Foste descoberto! – sem isso de modo nenhum significar “foste criado” ou “inventado”. Pura e simplesmente quer dizer que “alguém que tu não querias que soubesse da tua ação ficou a saber sobre ela”.

Há mais contextos do uso do termo, mas o seu significado não se altera. Por exemplo, quando as crianças brincam às escondidas, vai cada uma esconder-se para dificultar a descoberta do seu paradeiro ao parceiro a quem chegou a vez de ir descobri-la.

Em todas estas situações nunca está implícita qualquer intervenção do descobridor na criação ou invenção do objeto descoberto. O ato de descobrir significa apenas o desvendamento de algo que poderia estar diante dos olhos, porém ainda não tinha sido enxergado.

Como “o sentido (ou o significado) é o uso” (a descoberta é de Wittgenstein, mas foi um Eureka! que caiu e apanhou de surpresa tantas sumidades que bateram na testa dizendo: Como é que eu nunca descobri isso?), os lexicógrafos registaram nos dicionários os usos dos termos “descobrir”, “descoberta” e “descobrimento”. É esse o sentido que ainda figura registado nos dicionários, inclusive no excelente Novo Aurélio. Vejamos como o clássico lexicógrafo brasileiro define o verbo “descobrir”:

Descobrir – 1. Tirar cobertura, véu, tampa, ou qualquer outra coisa que ocultava total ou parcialmente, deixando à vista […]. 2. Deixar ver, mostrar […]. 3. Encontrar pela primeira vez […]. 4. Resolver, solver, solucionar, decifrar […]. 5. Dar com, achar, encontrar […]. 6. Patentear, evidenciar […]. 7. Manifestar, revelar […]. 8. Dar a conhecer […]. 9. Denunciar, delatar, revelar […]. 10. Alcançar com a vista, divisar, avistar […]. 11. Notar, perceber […]. 12. Reconhecer, identificar […]. 13. Desfazer, dissipar […]. 14. Percorrer, explorar […]. 15. Descobrir […]. 16. Aparecer à vista, emergir […]. 17. Tirar o chapéu, o barrete […]. 18. Mostrar-se, aparecer […]. 19. Destapar-se, destampar-se […]. 20. Aclarar-se, desanuviar-se, descobrir […]. 21. Tirar de si, afastar o que cobre […]. 22. Deixar a proteção, expor-se […]. 23. Dar-se a conhecer, revelar-se, identificar-se […]. 24. Fazer confidências, revelar segredos ou intentos, confessar-se […].

 

Já agora, demoremo-nos um pouco mais e consultemos os significados de “achar” (em “achamento”, o dicionário simplesmente remente para “ato ou ação de achar):

 

Achar – […] 1. Encontrar por acaso ou procurando; deparar com […]. 2. Atinar (com), encontrar, descobrir […]. 3. Considerar, julgar, supor […]. 4. Obter, conseguir […]. 5. Sentir, experimentar […]. 6. Descobrir, encontrar […]. 7. Julgar, considerar […]. 8. Deparar com, encontrar […]. 9. Julgar acertado, deliberar, resolver […]. 10. Encontrar, descobrir […]. 11. Estar, encontrar-se […]. 12. Estar situado, situar-se […]. 13. Considerar-se, julgar-se reputar-se […]. 14. Ser em um dado momento, estar […].

 

Obviamente que esse “descobrir” ou “achar” do Brasil é do ponto de vista europeu. Os nativos brasileiros não sabiam que a Europa existia e, se se tivessem feito ao mar para nordeste do Atlântico e chegado a Portugal, não acharíamos nós (pelo menos eu, seguindo a atitude descomplexada de Caminha) nada errado se eles dissessem que descobriram Portugal. Na verdade, isso é repetido hoje muitas vezes pela comunicação social quando ela se congratula pelo facto de os brasileiros atuais estarem a “descobrir” Portugal ao visitarem e descobrirem surpresas inesperadas no velho país seu tetravô (ou “tataravô”, como Saramago preferia). Nunca ouvi nenhum português protestar que Portugal já estava descoberto. 

Naturalmente por pensarem com base nos dicionários de português, os autores de um curto texto disponível no portal da Biblioteca Nacional do Brasil intitulado “Cabral chega ao Brasil: descobrimento ou achamento?”, datado de 22 de Abril de 2020, aceitam o primeiro termo sem levantar problemas:

O termo Descobrimento do Brasil é usualmente empregado para designar a chegada da armada lusitana, comandada por Pedro Álvares Cabral, a um território já alcançado pelos europeus e povoado amplamente por nativos. Inicialmente definida como acidental, sabe-se que a vinda de Cabral foi intencional, com o objetivo de legitimar a presença portuguesa, oficializar a posse e iniciar a exploração da terra, inicialmente batizada de Vera Cruz. 

 

Uma afirmação destas num portal de responsabilidade como a Biblioteca Nacional do Brasil é obra. Para mim, foi uma descoberta. E obviamente ela estava visível na Internet desde 22 de Abril de 2020, isto é, há quase um ano a esta parte. Eu não fui o autor dela; simplesmente descobri-a, embora tardiamente. Mas foi – digamos – um achado.

Abandonemos, entretanto, esta discussão porque os termos não criam nenhuma realidade, apenas a refletem. Não deixará de ser verdade que foram os portugueses a ir até ao Brasil quando na Europa provavelmente ninguém sabia ainda da existência de qualquer terra ali no Atlântico Sul.

Voltemos, todavia, à citação do portal da Biblioteca Nacional do Brasil porque ela contém uma afirmação, digamos que não surpreendente, mas pelo menos arrojada. Diz-se que a viagem foi “intencional”, não passando de mero gesto de legitimação, pois os portugueses já tinham notícia da existência daquelas terras. Na verdade, o problema do uso do termo “descobrimento” não fica assim resolvido, pois isso apenas defere a “descoberta” para anos anteriores, se bem que incertos. Quer dizer: o caso até fica pior, porque já não se trata de “descoberta” propriamente dita, mas de revelação oficial aos outros de um segredo que por conveniência se mantivera guardado.

Não é este o lugar para nos enfronharmos nessa delicada questão. Os autores portugueses que defenderam o conhecimento prévio por compatriotas seus de terras naquele quadrante do globo foram acusados de nacionalistas. A verdade é que, como Jorge Couto aponta, com base no livro de um autor rigoroso como foi Duarte Pacheco Pereira, a costa do Brasil (na altura, supostamente uma bem comprida “ilha”) parece que já seria do conhecimento dos portugueses, segundo o próprio Duarte Pacheco Pereira refere em fala direta a D. Manuel. De passagem, sem parecer revelar qualquer novidade, lembra ao rei que percorrera aquela costa por ordem dele

George Winius e Billie Diffie, no seu clássico Foundations of the Portuguese Empire, deixaram explícita a dúvida sobre se as terras hoje chamadas de Brasil já seriam conhecidas dos portugueses. Uma das ilustrações do seu livro é um desenho sobre as várias propostas e contrapropostas apresentadas por portugueses e espanhóis durante as prolongadas conversações que precederam o Tratado de Tordesilhas. Fica patente no gráfico que, já entre 1592 e 1594, os portugueses fizeram tudo por preservar para Portugal o quadrante sudoeste, onde fica o Brasil. A reprodução merece um olhar atento:                 

 

 Nas várias contraproposta portuguesas, declaradamente contra as propostas espanholas, fica claro que havia um propósito de manter o quadrante sudoeste no espaço reservado ao seu país. E será oportuno lembrar que Duarte Pacheco Pereira fez parte da representação portuguesa em Tordesilhas.

Esta introdução, no entanto, não é sobre a prioridade portuguesa, nem tão pouco pretende imiscuir-se nesta polémica. Hoje os espanhóis reclamam a primazia de Yanñez Pinzón, que terá chegado ao cabo de Santo Agostinho, a sul de Pernambuco, a 26 de Janeiro de 1500, data obviamente posterior ao Tratado de Tordesilhas, quando os portugueses já teriam sinais dessa terra. Mas pelo menos parece documentável, que é o que conta em história. Tordesilhas foi um encontro altamente político onde dominou – e triunfou  – o segredo (o tema do sigilo, tão querido de Jaime Cortesão, merece ser revisitado com serenidade), e por isso não conseguimos ter certezas sobre o assunto. Todavia, na Carta de Caminha fica óbvio que algo estranho aconteceu. A frota de Pedro Álvares Cabral afasta-se para sudoeste “sem ter havido tempo forte ou contrario que o explicasse”, como na própria carta é admitido, sem ser dada qualquer explicação. Pedro Álvares Cabral recebera instruções precisas de Vasco da Gama sobre a rota por ele anteriormente seguida, e no entanto Pedro Álvares Cabral, sem que qualquer tempestade a isso o obrigasse, afasta-se para sudoeste, o que não deixa de ser estranho

A minha última nota sobre o “deslumbramento com o Brasil” serve para deixar claro que não foi afinal o Brasil que Cabral e Caminha descobriram. Pelo menos, não foi esse o nome que lhe deram. Avistaram o que decidiram chamar de Monte Pascoal e, chegados a terra, pensando ter aportado a uma ilha, deram-lhe o nome de Vera Cruz. Contudo, voltaram depois a reconsiderar. Vera (verdadeira) Cruz só havia uma, aquela em que Jesus foi crucificado. Faria pois mais sentido a designação de Terra de Santa Cruz. E assim ficou oficialmente. Só que não colou: o vulgo passou a referir-se-lhe primeiro como Terra dos Papagaios (dado o fascínio com a profusão deles lá encontrada) e depois como Brasil. No início da segunda década após o “achamento” já se lhe referiam assim, mas demorou a figurar oficialmente. Ainda não era oficial em 1576, como no-lo revela o subtítulo de um livro: Historia da provincia Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil.

Como tentei demonstrar noutro lugar, estou em crer que os navegadores terão a certa altura suposto que era aquela a ilha Brasil, há séculos procurada e nunca até então achada a norte, ou a noroeste da Irlanda onde antigos mapas a colocavam. Haviam, portanto, continuado em busca dela mais a sul. Não sabemos ao certo quando se terão convencido de que a “Ilha de Santa Cruz” era afinal a tão almejada ilha do Brasil. Naturalmente que por lá terem encontrado pau-brasil em abundância, embora pau-brasil se encontrasse em muitos outros lugares do planeta sem que, no entanto, algum deles tivesse definitivamente recebido o nome “Brasil”. O que me parece fazer sentido é que se terão conjugado dois fatores: a ilha buscada há tanto tempo, aquela que iniciara o seu percurso no imaginário europeu a oeste da Irlanda, fora viajando nesse imaginário e deslocada mais e mais para sul. O nome “Brasil” chegou a ser atribuído a uma ilha dos Açores, a Terceira, acabando apenas por ficar colado ao monte que ainda hoje forma e protege a baía de Angra do Heroísmo – Monte Brasil.   Passou depois além dos Açores, acabando a sul das Antilhas, essas mesmas que por sua vez tinham recebido o nome doutra ilha mítica, a nunca encontrada Antília. Será bom lembrar que a Antília fora também conhecida por Sete Cidades. Daí que, quando os primeiros navegadores chegaram a S. Miguel, ao depararem com as belas lagoas das Sete Cidades (duas são as mais conhecidas, mas há várias outras) batizaram o lugar de Sete Cidades, outro exemplo de um nome precedendo a descoberta da terra. 

A ser assim, o nome Brasil constituirá mais uma prova do poder do imaginário no empreendimento das descobertas: Macaronésia, Antilhas, Índias Ocidentais, todos são nomes que precedem descobertas reais. A força dos mitos atuou sempre intensamente, e as velhas estórias sobre a existência de lugares mágicos e de fantasmas acreditados como autênticos, nortearam os navegadores de Quatrocentos e Quinhentos, na peugada das terras que os europeus medievais haviam inventado. 

Encarado isoladamente, o caso do Brasil pode não ter muita força; visto, porém, dentro de todo este contexto das ilhas imaginárias europeias, creio que passa a fazer perfeito sentido. Se fosse apenas porque ali encontraram pau-brasil, o nome da terra poderia ter ficado Pau-Brasil em vez de Brasil somente. Parece-me, pois, lógico o argumento de que se terão juntado dois fatores: a mítica e, durante quase dois séculos, esforçadamente procurada “ilha Brasil” terá parecido aos portugueses enfim realidade ali naquela terra do sul do continente americano onde abundava o pau-brasil.

Mas tudo isto é outra conversa, apenas mais uma que esse fascinante Brasil fez explodir no imaginário português. As mazelas posteriores não invalidam a sinceridade do entusiasmo de um noivo face à sua noiva no dia do grande encontro. Ninguém no seu juízo se atreverá a negar a ternura, o encanto, o deslumbramento desse momento. Por mais esperado que fosse, nunca ninguém supusera que aquela terra havia de emergir como um paraíso.

O que se seguiu depois é outra história. De qualquer modo, não resta dúvida de que a Carta de Pêro Vaz de Caminha é um documento abertamente moderno. Desafio os críticos (aposto que muitos deles nunca a lerem e já tive disso sobejas provas em trocas com alguns) a imaginarem-se numa nave espacial rumo a um planeta qualquer fora do sistema solar. Gostaria de ver as suas reações e comentários ao enfrentarem seres completamente desconhecidos, receosos de que eles fossem hostis. Adoraria ler os seus relatos para a comunicação social terrestre e saber até que ponto seriam capazes de se abrir tão candidamente ao novo, a gentes desconhecidas, com a simplicidade desconcertante e encantadora do autor desta carta agora colocada nas mãos dos leitores.


* Agradeço a Jorge Semedo Matos, Alexsandro Menez e Leonor Simas-Almeida a leitura atenta deste texto, salvando-o de deslizes indesculpáveis.

[1] Jaime Cortesão, A Carta de Pêro Vaz de Caminha. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.

[1] Max Justo Guedes, O Descobrimento do Brasil, Rio de Janeiro: Serviço de Diretoria de Hidrografia e Navegação, 1966.

[1] Lisboa: Quetzal, 2018

[1] Lisboa: Quetzal, 2015, pp. 279-298.

[1] Sérgio Buarque de Hollanda, Visão do Paraíso: os motivos edénicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, SP: Editora Brasiliense, 1992.

[1] A passagem sobre a possível conversão dos locais ao cristianismo é a única atitude não-moderna de Caminha. Aliás, nem deveria dizer não-moderna, mas não-contemporânea.

[1] Há cerca de duas décadas que os meus alunos de um seminário  sobre “As Origens da Modernidade” lêem a Carta de Pêro Vaz de Caminha (em tradução inglesa). Atentos e críticos nas leituras, habituados a dialogar abertamente nas aulas, nunca lhes ouvi o menor reparo ao texto. Apenas espanto face ao tom e abertura do mesmo.

[1] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio. O Dicionário da Língua Portuguesa. Século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

[1] Idem.

[1] https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/04/cabral-chega-ao-brasil-descobrimento-ou-achamento, visto em 15 de Março de 2021. Não é apenas neste escrito que no Brasil o termo “descobrimento” é usado. A mero título de exemplo, refiro o livro de Eduardo Bueno, A Viagem do Descobrimento. Um olhar sobre a expedição de Cabral. Edição revista. Rio de Janeiro: GMY Editores Ltda, 2016. A 1ª edição era de 1998.

[1] Alfredo Pimenta

[1] Jorge Couto, A Construção do Brasil: Ameríndios, Portugueses e Africanos, do Início do Povoamento a Finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1995.

[1] “… e portanto, bem-aventurado Príncipe, temos sabido e visto como no terceiro ano de vosso reinado do ano de Nosso Senhor do ano de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e oito, donde nos Vossa Alteza Vossa Alteza mandou descobrir a parte oucidental, passando além a grandeza do mar oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela, que se estende a satenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo ártico e, posto que seja assaz fora, é grandemente povorada, e do mesmo círculo equinocial torna outra vez e vai além em vinte e oito graus e meio de ladeza contra o polo antrático…”. Joaquim Barradas de Carvalho, Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira (Edition critique et commentée). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 539.

Uma excelente revisitação desta problemática pode encontrar-se em Francisco Contente Domingues, A Travessia do Mar Oceano. A viagem de Duarte Pacheco Pereira ao Brasil em 1498. Parede: Tribuna, 2012.

[1] A legenda da gravura é a seguinte (tradução minha): “A divisão das reclamações [de espaço] no oceano Atântico depois de Colombo ter descoberto a América: I. A divisão proposta por D. João II; II. A contraoferta espanhola; III. A segunda proposta portuguesa; IV. A linha divisória traçada na bula papal Inter Caetera, a 4 de Maio de 1493; V. a linha de demarcação estabelecida no Tratado de Tordesilhas, em 7 de Junho de 1494. Bailey W. Diffie and George D. Winius, Foundations of the Portuguese Empire, 1415-1580. Minneapolis, MN: University of Minnesota Prss, 1977. Incluída num conjunto de gravuras não paginadas inseridas a meio do volume.

[1] Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil: historia da provincia Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil: feita por Pero de Magalhães de Gandavo, dirigida ao muito Ills. Senhor Dom Lionis Pereira, governador que foy de Malaca e das mais partes do Sul na India. Impresso em Lisboa [Portugal]: na officina de Antonio Gonsalvez, 1576.

 

[1] “From ‘Vera Cruz Island’ to ‘Brazil’ – a critical revisitation of an old belief”, in Francisco Contente Domingues e Susana Serpa Silva, Orgs., Navegação no Atlântico. XVIII Reunião Internacional de História da Náutica / Atlantic Navigation. XVIII International Reunion for the History of Nautical Science, Ponta Delgada, CHAM Açores – Universidade dos Açores, 2020, pp. 365-380.

[1] Sobre a Antília, vale a pena ler-se Gregory McIntosh, The Piri Reis Map of 1513 (Athens and London: University of Georgia Press, 2000.


Providence, Rhode Island (EUA)

Onésimo Teotónio Almeida

 

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Onésimo Teotónio Almeida

Onésimo Teotónio Pereira de Almeida - Natural de S. Miguel, Açores, é doutorado em Filosofia pela Brown University em Providemce, Rhode Island (EUA). Nessa mesma universidade é Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, bem como no Center for the Study of the Early Modern World e no Wayland Collegium for Liberal Learning. Autor de dezenas de livros. Alguns dos mais recentes: Despenteando Parágrafos, A Obsessão da Portugalidade, e O Século dos Prodígios. A ciência no Portugal da Expansão, na área do ensaio. Em escrita criativa: Livro-me do Desassossego, Aventuras de um Nabogador e Quando os Bobos Uivam. Co-dirige as revistas Gávea-Brown, Pessoa Plural e e-Journal of Portuguese History bem como a uma série de livros sobre temática lusófona na Sussex Academic Press, no Reino Unido. É membro da Academia da Marinha, da Academia das Ciências e doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro.
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