Póvoa 2024
“E um verso em branco à espera de futuro”
Começo por agradecer mais este convite para estar aqui, muito embora já tenha expressado inúmeras vezes à organização que preferia não ter sobre os ombros o peso de fechar estas belas Correntes. Sinto-me, aliás, como naquela história de uma Feira do Livro em que na sessão de encerramento, os livros decidiram também intervir para agradecer ao público. Por unanimidade, decidiram que seria o Dicionário a falar em nome deles e então o Dicionário começou assim: Não tenho palavras para agradecer…
Quando recebi o tema para esta mesa “e um verso em branco à espera de futuro” pensei que a organização das Correntes deveria ter um mínimo de sensibilidade para não dar um verso destes a uma pessoa da minha idade, cujo futuro a gente bem sabe qual é. De resto, o meu futuro e o da minha geração aconteceu há já muito tempo. Agora – e para roubar o título do livro da Hélia Correia – já vou na Terceira Miséria, que é a terceira década depois dos 50 anos. (Há quatro idades na vida de uma pessoa: a da infância, a da adolescência, a da idade adulta e a do Você está de bom aspeto.)
De qualquer modo, assaltou-me de imediato à mente o livro À Espera de Godinho, que o meu amigo Manuel Paiva, aposentado professor de Física na Université Libre de Bruxelles, publicou com três colegas da sua diáspora na Bélgica onde viveram a maior parte da sua vida. Um desses três, Amadeu Lopes Sabino, continua bem, tal como o Manuel, mas o Jorge Oliveira e Sousa morreu entretanto; o José Morais, com Alzheimer’s, vive como se já cá não estivesse e a Irina, famosa física e mulher do amigo Manuel Paiva, está infelizmente quase em idêntica situação. O livro deles, À Espera de Godinho, permanece em grande parte nos armazéns da editora, à espera de compradores. Nele falaram da sua experiência profissional no estrangeiro, todavia escreveram sobretudo do Portugal que deixaram antes do 25 de abril, aquele que toda a vida permaneceu dentro deles e com que sempre se preocuparam, empenhando-se na tentativa de ajudá-lo a recuperar do atraso de séculos. Viveram de fora, tal como eu na outra banda do rio Atlântico, o 25 de abril, essa festa do futuro de há 50 anos – por sinal apenas duas vezes a idade das Correntes.
Uma porca miséria, caríssima Hélia Correia, esta velocidade do tempo!
Verdade se diga, o futuro do meu 25 de abril não era o que nos saiu na rifa. Para começar, não se fazia anos tão depressa. Além disso, não estava nos planos o embranquecimento do cabelo, nem o alargar do cinto, para mais com respetiva perda de altura. Mas isso são ninharias pessoais. No horizonte da nossa esperança havia um mundo maior. Portugal seria um paraíso na terra cheio de gente nova, o homem novo criado nas nossas cabeças ingénuas.
Não levem a mal este meu arrazoado de vésperas de aposentação. Na verdade a minha desilusão e a de muitos patrícios meus nem sequer é já com o país sonhado na juventude, porque Portugal cá se vai aguentando, melhor ou pior consoante. O que me nasceu nos últimos anos foi uma preocupação com os EUA que conheci muito diferentes quando para lá emigrei há 52 anos. Falo de preocupação com a situação política de uma nação que durante décadas aprendi a estimar e a defender como farol da democracia, apesar de todos os defeitos e avarias faroleiras que, com justeza, sempre se lhe foram e continuam sendo apontados. Anda por aí na Internet (basta googlarem que facilmente encontrarão) uma frase minha que já nem sei onde escrevi: Tudo o que disserem – de bom ou de mau – sobre os EUA é verdade. E se ainda não é, vai ser. Todavia, nunca em dias de vida imaginei que uma figura como Trump pudesse um dia chegar a Presidente e, pior ainda, que viesse a estar na iminência de voltar a sê-lo. Na Internet até circulam cartazes clamando que Trump que foi enviado por Deus. Alguém reagiu: Como é possível? Deus já não tinha mais gafanhotos?
Claro que essa piada só é entendível pelos mais velhos que ouviram falar das pragas do Egito. Pior do que todas essas antigas pragas, porém, é a praga das mentiras trumpianas. Soltam-se-lhe em catadupa num caudal imparável de cada vez que move os lábios.
Entrevistado por um jornalista que lhe perguntou: Das suas 25 mil mentiras gravadas em video, qual é a sua preferida? Trump reagiu: Eu nunca minto!
E o jornalista saltou logo – Essa também é a minha favorita!
Resignei-me a reconhecer que os EUA estão irremediavemente divididos em dois grupos de pessoas: o das que pensam que Trump deve ser reeleito e o grupo das que… pensam.
Não quero fazer aqui cara de espantado como naquele cartoon do semblante atarantado de Descartes quando descobriu que as pessoas que não pensam… também existem. E votam… em calamitosa quantidade.
E que pensador é o Trump, mon Dieu! Todos sabemos – porque o próprio afirma frequente e despudoradamente – que é um génio. Foi fazer um MRI ao cérebro e o resultado foi (bom, terei de passar ao inglês pois esta não funciona em tradução) os médicos descobriram que o seu cérebro era na verdade especial: on his left side of the brain, nothing was right; on his right side, nothing was left.
Diz-se que Mitt Romney terá comentado que Trump, sendo embora um fanático anti-emigração, acabou casando com três mulheres emigrantes que certamente tiveram de ser admitidas nos EUA ao abrigo da chamada 8ª preferência. Essa cláusula permite a admissão no país de pessoas dispostas a desempenhar um trabalho que nenhum americano [no caso nenhuma americana] quer fazer.
Nem a Melania – coitada! – atura viver com ele. Num dos poucos encontros para um evento oficial, Trump deu com ela sentada à varanda com sinais de já ter bebido um copito a mais. Dizia em voz alta: Sem ti, eu não seria nada! Sem ti, eu nunca conseguiria aguentar o que tenho tido de aguentar na vida!… Surpreendido, Trump perguntou-lhe: Isso és tu a falar… ou o vinho? Melania ripostou seca: Sou eu a falar com o vinho!
De outra vez, num comício, Trump cruzou-se com um indivíduo empunhando um cartaz anti-Trump, provocando uma tirada sarcástica: Tu és dos que adoraria ver-me morto para vires urinar sobre a minha campa, não é?! O manifestante reagiu: Nunca! Desde que saí da tropa prometi a mim próprio que nunca mais me meteria numa fila!
Já repararam que ele anda sempre a insultar Obama (na verdade, insulta toda a gente) dizendo que durante oito anos na presidência nunca fez nada, contudo ao mesmo tempo insiste em querer voltar à Casa Branca para continuar a destruir tudo o que Obama fez.
É preciso muita paciência para aturar o energúmeno. Apetece-me repetir o que ouvi há dias a uma amiga minha cuja irmã tem um mau casamento. Quando lhe recomendou que pedisse a Deus força e paciência, a irmã reagiu de imediato: Eu só peço que Deus me dê paciência porque, se Ele me dá força, eu mato-o!
Perdoem-me o exagero. Acabei caindo também na liguagem violenta que ele instaurou criando um clima social de tensão exacerbada, até aqui por mim nunca sentido no país.
Enfim… Vou deixar de lado Trump porque quanto mais mexo nisso mais fujo do tema desta mesa. É que não se trata de um verso em branco mas de versos negros e com futuro arrepiante.
Na verdade, não me tenho cansado de falar e escrever noutros lados sobre tão triste e potencialmente trágico assunto. Mas admito – confesso mesmo! – continuar obcecado por ele. Estou a terminar a leitura de um livro que adquiri para ver se entendia o voto incondicional pró-Trump entre os protestantes evangélicos, mas a que incrivelmente se aliam agora muitos católicos. É de Tim Alberta, The Kingdom, the Power and the Glory: American Evangelicals in an Age of Extremism. Estou, repito, a terminar essa leitura e quedo-me com a mesma conclusão, de há poucos meses, numa entrevista que dei ao Diário de Notícias: Não sei explicar. Ou melhor, não sei nada para além do facto que insisto em sublinhar: a sociedade americana está polarizada, e cada qual segue apenas a informação fornecida pelos canais de comunicação que confirmam as suas crenças sem se preocuparem com ouvir o outro lado. Por mim, e justamente para tentar evitar essa limitação, tenho-me dedicado à leitura de livros de antigos colaboradores de Trump na Casa Branca, incluindo os seus ministros. Todos eles contam experiências horrorosas e imploram ao eleitorado que, por amor de Deus, não tornem a votar no estafermo. Não estou a fazer política. É mesmo assim. São factos. Leiam, leiam! E não é preciso prestar muita atenção. Basta focarem-se nos títulos dos capítulos e num ou noutro parágrafo aqui e acolá. Por mim, tenho lido mesmo tudo o que posso.
Infelizmente, ninguém dos MAGA (Make America Great Again) se dispõe a prestar atenção a ler obras como por exemplo House of Trump, House of Putin, que narra, em pormenor e com bases sólidas, as antigas e profundas ligações de Trump às máfias russas e a Putin. Por isso, nunca entenderiam esta desenfreada invetiva anti-Trump.
A minha Leonor interrompeu há dias a leitura de The Zone of Interest, do famoso escritor inglês Martin Amis, para me ler em voz alta uma passagem sobre a Alemanha de Hitler que, mutatis mutandis, poderia ser sobre a América de hoje (traduzo): Como é que um sonolento país de poetas e sonhadores, a mais educada nação que a Terra conhecera [fala-se da Alemanha do 2º quartel do século XX, lembre-se], como é que se rendeu a uma tão selvática, tão fantástica desgraça? O que fez o seu povo, homens e mulheres, consentirem na violação das suas almas — violadas por um eunuco (o Priapus virgem, o Dionísio abstémio, o Tyrannosaurus rex vegetariano)? (pp. 287-288)
Lá atrás, prometi deixar de falar em Trump e afinal voltei a trumpicar nele. Tenho de o largar. Prefiro encher com umas pitadas de crença no futuro o verso em branco que me pediram para completar. Ao menos, para ser coerente com a afirmação que o jornal Público agarrou de uma entrevista comigo meses antes das eleições de 2020, fazendo dela um título em parangonas: Se a esperança nos faltar estamos completamente tramados.
Custa-me admitir derrota num duelo pessoal que há décadas mantenho com o filósofo inglês John Gray. Ele pessimista, e eu otimista. Leio todos os seus livros e reajo sempre contra o seu pensar acerca da modernidade, tão cinzento como o seu próprio nome – John Gray – que, de livro para livro, vai ficando cada vez mais escuro. No entanto, terminei há pouco a leitura do seu mais recente – The New Leviathans. Thoughts after liberalism – e dei comigo a concordar com muita coisa.
Se calhar estou mesmo a ficar velho, sem mais versos brancos à espera de futuro. Um dia acontece-me como o outro que se queixava: Eu disse à minha mulher que queria ser cremado e ela foi marcar uma reserva para a próxima terça-feira.
Também me pode vir a acontecer um diálogo como o de um velhote que, em consulta ao seu médico, ouviu o comentário:
- Está com um ar preocupado
- -Preocupadíssimo, doutor. Estou a ficar velho!
- Ah! Mas isso não dura muito…
Tenho de reagir. Na verdade, ainda não cheguei à velhice de quando um homem e os seus dentes não dormem juntos. Não nasci para pessimista. Por isso vou esquecer os EUA de Trump e terminar fixando-me nas comemorações dos 50 anos do 25 de abril, pois aí tenho mais poesia à espera de futuro, pelo menos enquanto esse futuro não… Chega. É que nestas coisas o melhor é esperar, de verso em branco.
De Grândola, num gesto entusiasta de comemoração do Abril de 74, pediram-me um curto escrito para imprimir em postal numa série de cinquenta, metade com trabalhos de artistas, metade com textos de escritores (eu cá na minha creio que entrei no grupo por erro). Enviei o seguinte:
Postal para mais abril
Duvido se terão rolado no mundo anos mais utópicos do que os dos finais da década de 60 do passado milénio. A Rússia de cinquenta anos antes poderá reclamar esse galardão, todavia esteve longe do clima mundial dessa loucura da segunda metade do século. E todavia, sem qualquer narcisismo patrioteiro, creio que nenhuma revolução foi tão pura (ou tão ingénua) como a do 25 de abril. A ideia do nosso “socialismo original”, traduzida em poesia e música, agarrou pelos fundilhos a juventude lusa (bem como não poucos idosos em recuperação de anos perdidos) e galvanizou a geração filha do maio de 68 parisiense pressentindo que finalmente se concretizava ali a almejada transformação radical.
O 25 de abril foi a festa onírica do graffiti que captou o espírito dominante no tempo: Queremos tudo!, enlevados nos mais doces e utópicos sonhos de um homem e de um mundo novos. A tal nos conduzia a ignorância das ciências sociais – éramos “humanistas” inocentes – e sobretudo ignorantes da visceral biologia, ainda hoje tão desdenhada pelos cientistas sociais, considerando – ingenuamente de novo – tudo ser “cultura”, isto é, acreditando que os seres humanos podem mudar o que lhes aprouver, se a tal se dispuserem. O que aconteceu, porém, nos anos subsequentes, mau grado acontecimentos grandiosos, tem sido um regresso ao mais-do-mesmo animal trôpego e bruto do passado. Tudo voltou à mesmidade, só que agora mais perigosa porque a tecnologia aumentou exponencialmente as capacidades de destruição outrora inexistentes. Hoje, até a ideia de progresso é posta em causa visto ser um ideal da modernidade tornado utopia obsoleta. Os seus críticos esquecem-se que foi a ideia de modernidade que nos permitiu aqui chegarmos. O que eles não podem perder de vista é que os ideais dela têm de se harmonizar entre si; não podemos exagerar na prossecução de um valor em detrimento dos outros. De momento, todavia, não se nos divisa qualquer alternativa para a modernidade e, por isso, será erro crasso descurarmo-la, se quisermos que o 25 de abril continue a ser sinónimo de primavera.
Gostaria, porém, de terminar com uma nota mais otimista. Estamos na reta final das comemorações do centenário do nascimento de Natália Correia e eu vou evocá-la lendo a sua “Ode à Paz”, que é também um hino à esperança. Faço-o porque a recordo com saudade, apesar dos vários conflitos que volta e meia tivémos. Faz-nos falta a sua verve imprevisível, mas destemida e incontrolável.
Basta lembrar cenas como aquela com o General e Manuela Eanes de quem a Natália era muito amiga. Eleito presidente, ela fora convidada para uma receção oficial no Palácio de Belém. Na conversa com o Primeiro Casal, Natália referiu-se a Eanes como “Senhor Presidente”. Manuela Eanes atalhou: Ó Natália, trate-o por António como sempre o tratou. Natália elevou a mão, com a boquilha entre os dedos, e disparou: Não! É Senhor Presidente, que é muito mais erótico!
A história não é apócrifa. Foi a própria Natália quem ma contou.
Mas vamos então ao seu poema
Ode à Paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos atos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exatidão das rosas, pela sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem as nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco, ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Na verdade, esta é sobretudo uma Ode à Vida. Pelo menos à vida que ela, vulcânica e atlântica, respirava a plenos pulmões. Mas é pura Natália, a versão em mulher do super-homem nietzscheano, lutadora pela liberdade afirmando isso mesmo: a vida.
Estamos todos hoje com um verso em branco à espera de futuro. Versos não faltam nem faltarão. Falta é… ver se conseguimos esticar a corda da vida de modo a que ela nunca seja o reverso daquilo a que aspirámos. E quem para mim e para vós, os anos também não faltem. Oxalá! Afinal, o meu verso em branco ganhará cor. Todas as cores. E muita vida.
Onésimo Teotónio Almeida
Correntes d’Escritas, 25ª edição
24 de fevereiro de 2024
Onésimo Teotónio Almeida
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