O AMOR DO RIO 

Os sonhos do porvir, os cantos que cantei, carrego-os

[na voz

Antes da minha voz, já um nome fora dado a cada coisa

[e a cada coisa uma medida

Em cada nome pus apenas um sopro de lume insubmisso;

[em cada coisa, uma sugestão de prumo e de estrela.

Sorve agora das palavras o travo, amor, favo a favo; bebe

[o crescendo deste áspero concerto.

Busco ainda o frémito do compasso, as alturas de um

[coro pigmeu.

Na mão, conservo os rascunhos, aquela letra adiada

[a extensão da rasura.

Do que te dou, eis que não me cabe senão o dom

[que a meus olhos te revela.

São minhas e sem fim as margens deste rio

Meu o caudal, o sulco da piroga. Pertence-me a sisudez

[das pedras, a impaciência dos sábios.

 

Magros. São magros estes campos, a fracção que nos detém.

Magra a colheita, a safra instigada, magros os dedos e a

Mão que os sustém, magro o grão que brota na cova

[desta mão.

Crescem muralhas inesperadas, visitante, nestes campos.

Crescem neste viveiro de tenras couves, crescem como

[carnívoros bolbos no olho da paisagem.

Crescem à sombra de véus e distância, crescem na solidão

[dos espectros avulsos,

crescem sitiadas por insones flores.

Este lugar é a minha casa, não tenho outra.

Esta casa é o meu lugar, não quero outro.

Ainda que o ventre da infância reconvoque outro exílio.

Mesmo se a angústia das mães antecipa a aurora.

Por isso trouxe ao teu jardim o odor do sal, a raiz do mar

[que bordeja o baobá.

Filha insular, não me saúdes! Dá-me um umbigo de algas

[e de estrume- quero plantar o coração dos fantasmas

[elementares.

Em fogo moldarei então as proporções onde um laço

[de ndombó amarrará para sempre o nosso amor

no mesmo Nilo.

Corpo de onda, quantas vezes passei por ti e não te vi?

[Quantas vezes rocei teu vulto e te esqueci?

Quantas vezes o espelho separou a nossa fronte e nos

[uniu? Quantas vezes esse espelho nos confundiu?

Quantas vezes nos perdemos, face a face, sem ouvir

Do rio o som que nos funda e reinventa?

Para ti esta água se liberta no meu canto, se reergue

[a velha Casa no meu pranto,

Do meu seio rumoreja a nascente no teu quarto.

Este amor do grande rio nos convoca. 

Conceição Lima in O País de Akendenguê

Uma criança na marginal da cidade de São Tomé, São Tomé e Príncipe, 6 de outubro de 2014. ANDRÉ KOSTERS / LUSA

 

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Conceição Lima

Conceição Lima nasceu em Santana, na ilha de São Tomé, São Tomé e Príncipe, a 8 de Dezembro de 1961. Jornalista, poetisa e cronista. Foi durante longos anos jornalista e produtora dos Serviços em Língua Portuguesa da BBC, em Londres. É licenciada em Estudos Africanos, Portugueses e Brasileiros pelo King's College of London e possui o grau de Mestre em Estudos Africanos, com especialização em Governos e Políticas na África subsaariana, pela School of Oriental and African Studies, SOAS, Londres. Pela Editorial Caminho, de Lisboa, publicou O Útero da Casa (2004), A Dolorosa Raiz do Micondó (1ª edição 2006, 2ª edição 2008) e O País de Akendenguê (2011). Em 2015, em edição de autor, publicou Quando Florirem Salambás no Tecto do Pico. Está traduzida para o alemão, árabe, checo, espanhol, francês, galego, inglês, italiano, servo-croata e turco.
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