A criança foi um dos primeiros temas de eleição na nova escrita literária num reino de oralidade e sublimado no berço do amanhecer da esperança, de uma Pátria emergente. Partindo de inspiração e criatividade individuais, foi ganhando expressão uma lavra multifacetada a muitas mãos por jovens poetas guineenses rimando em harmonia na hora do despertar de uma terra sofrida, mas acontecida com proclamações patrióticas – agora é só construir a felicidade. Acreditava-se com veemência que assim era, que assim seria saecula-seculorum.
A nova terra independente estava ali, sob a vigilância dos seus autores mas também protegida pelo manto sagrado dos poilões – autênticos altares de cerimoniais benzidos com sangue-animal derramado em sinal de comprometimento, promessas, juramentos, pagamentos a dádivas recebidas e um certo desafiar de outros mandamentos sagrados, a própria modernidade e os tempos novos, arautos de gigantescas mutações sociopolíticas que estavam em curso, em jeito de mareação à vista desarmada em águas de muitas correntes desde sempre turbulentas.
A referência secular até então, sobre áreas temáticas incidindo em grupos vulneráveis residiam essencialmente nas cantigas de mulher que a oralidade perpetuou. Cantigas de ninar, embalar, cantadas muitas vezes em sussurro para sossegar e confortar as crianças em vozes d`amor, preenchendo um largo espaço temporal e social guineense, com o feminino ganhando dimensão tradicional de forma organizada nas toadas compassadas das mandjuandades, ora di djumbai de conta história, mas também das mamãs de bambaram às costas mimoseando os filhotes, enquanto desafiam as intempéries do dia-a-dia, marcadas por doenças endémicas e fome congénita, amargando a vida insossa. Este embalar ternurento cantado, era também uma forma de espantar a fome e diminuir a intensidade de alguma maleita espreitando.
Estávamos no princípio de uma nova caminhada. Os meninos da terra vermelha da Guiné-Bissau, agora jovens, nadadores de pântanos de água barrenta, mas coalhada de esperanças sempre ninadas em colos de mães, autênticas gestoras domésticas – fonte de mesinhas para duras canseiras guardadas no peito sofrido, mas também de surpreendentes saburas, sintonizados com o canto libertador perfumando o ar, cedo se fizeram convocar, protagonizando o surgimento de uma literatura moderna guineense, posicionando-se, desde logo, nas antípodas da sua construção, atentos à dimensão de uma estória-esperança, emprestando ênfase à problemática Criança e Mulher nesse futuro que estaria a acontecer e cantado por vozes djidius integrantes do rol de atores das várias frentes de resistência cultural e da luta de libertação nacional, iniciada nos princípios da década de sessenta. Tempo de brasa, de chicote abrindo chagas em corpos e almas de gente filho de gente ignorada. Tempo de revolta, de ousar sonhar, mas tempo de dor, de luto e mortes de número incalculável.
Aqui e ali, ainda nas diferentes épocas que marcaram e cadenciaram a marcha do país, esses protagonistas, jovens anónimos, apareciam amiúde em ações de formas díspares no vasto campo da cultura. A condição de grupo vulnerável, maioritariamente arredado da escola, dos serviços médicos e assistência medicamentosa, não os impediu de desafiar e vencer barreiras, perfilando-se como atores de uma nova abordagem nas diferentes disciplinas literárias, inspirando-se no edifício multicultural da guinendade, na agenda da atualidade, mas também viajando no tempo, abrindo as gavetas da literatura oral, e em menor escala, porque menos acessível, visitando os registos de antropólogos, sociólogos, e outros investigadores, datados do período colonial. Essa importação, e consequente confrontação de saberes aliada ao quotidiano intensamente vivido, aguçaram a inspiração, propiciando novas narrativas e géneros literários sintonizados com a realidade envolvente, ganhando muitas vezes, pela sua particularidade inovadora, contornos de casos de estudo e de divulgação, como propunha o angolano Mário de Andrade, durante alguns anos, senhor da batuta da cultura da nova república, surpreendido pelos inesperados contributos literários no dealbar da independência, que marcavam uma época triunfalista da terra do seu companheiro de várias trincheiras, Amílcar Cabral.
Os temas eram apelativos, centrando-se no mal-estar das pessoas, a subjugação, as doenças, ausência de escola, segregação social, falta de oportunidades, um rol interminável, marcando épocas de injustiça atroz, no corpo da alma-Guiné. Num certo exorcizar de mágoas, os vexames do antigamente ganharam expressão primeira e constituíam temas eleitos na animação cultural que inundaram o quotidiano em saraus e recitais organizados nos vários pontos do jovem país. A música, a poesia, o teatro e o conta-passada, seguiam a linha da retórica política impregnada de denúncias de maus tratos, injustiças e um mar de promessas de uma vida nova “ de pão para cada boca, escola e saúde para todos, eletricidade”, fatores que ombreariam com o surgimento de um Homem-Novo”, numa palavra: desenvolvimento. Terra a nascer é terra menino, pois então teria de ser chão de criança com oportunidades para crescer e ser Homem Novo.
Presidente da AEGUI-Associação de Escritores da Guiné-Bissau
(corubal@hotmail.com)
Foto: Bajudas (raparigas solteiras) na Ilha de Canhabaque no Arquipélago dos Bijagós. 10 de fevereiro de 2007. JORGE NETO/LUSA

António Soares Lopes Júnior
