Quando surgiu o OBRIGADO para agradecer?

Quando queremos agradecer a alguém, usamos a palavra «obrigado». Qual é a origem desta interjeição? Façamos mais uma viagem ao passado das palavras.

Uma palavra dividida em duas

«Obrigado» vem do particípio passado do verbo latino «obligō». Este, se escavarmos um pouco, veio da raiz indo-europeia «*leyǵ-», que significaria ligar – e, diga-se, o verbo português «ligar» tem a mesmíssima origem indo-europeia.

Isto é interessante, não tenho dúvidas, mas mais interessante será ver que esta viagem não explica a origem da nossa fórmula de agradecimento. Afinal, a origem que descrevi acima é a mesmíssima origem da palavra «obligado» do castelhano – e um espanhol nunca diz «obligado» para agradecer seja o que for.

«Obrigado», na verdade, são duas palavras (pelo menos).

Temos a forma «obrigado», particípio passado do verbo «obrigar», que às vezes se disfarça de adjectivo. Este «obrigado» aparece em frases como «Fui obrigado a abrir a porta.» ou «Eu sou obrigado a virar à esquerda naquele cruzamento.». É uma palavra com vários usos e tem origem no latim. Corresponde, sem grandes discrepâncias, ao «obligado» castelhano.

Mas, depois, temos o nosso amigo e conhecido «obrigado» como fórmula de agradecimento. Muitas línguas têm uma interjeição com este significado:

  • inglês: «thanks»
  • francês: «merci»
  • castelhano: «gracias»
  • alemão: «danke»
  • japonês: «arigatō»
  • português: «obrigado»

E podíamos continuar por aí fora… Algumas das palavras acima têm variantes, mas estas são as mais comuns.

Quando surgiu o «obrigado» de agradecimento?

A origem de cada uma destas fórmulas é distinta.

O «thanks» inglês terá origem na expressão «thanks to you», ou seja, «graças a si», o que será parecido ao percurso que levou às fórmulas castelhana e alemã. (Curiosamente, uma forma rara de agradecimento no inglês é «obliged», que lembra a nossa fórmula.)

O «merci» francês teve outra origem, semelhante à origem da nossa expressão «Vossa Mercê», o que nos leva a concluir que o «merci» francês e o «você» português têm uma origem comum.

Já a palavra japonesa parece lembrar a palavra portuguesa. Haverá alguma relação? Já lá chegamos.

A interjeição portuguesa «obrigado» surgiu a partir de expressões mais complexas, como eram as fórmulas finais nas cartas, tais como «Muito Venerador» e «Obrigado a Vossa Mercê».

Com o tempo, aquele «obrigado», que tinha a tal origem latina muito antiga, começou a deixar para trás – sem o perder por completo – o sentido original de obrigação e passou a ser usado como fórmula fixa. Por outras palavras: a forma verbal «obrigado» transformou-se na interjeição de agradecimento típica da língua portuguesa. Digamos que a palavra decidiu saltar de categoria – e reinventar-se. No entanto, a palavra anterior («obrigado» como forma verbal) não desapareceu. Dividiu-se em duas…

Agora, o ponto mais interessante: esta reinvenção da palavra é muito mais recente do que pensamos. Só no século XIX começamos a ver surgir nos nossos textos o «obrigado» com o sentido de agradecimento que lhe damos hoje. Imagino que, na oralidade, o uso seja um pouco mais antigo. Mas tudo indica que Camões não dizia «obrigado!» quando alguém lhe dava alguma coisa…

Como agradecíamos antes do «obrigado»?

O que acabei de contar deita por terra a teoria de que a palavra tem uma ligação profunda à alma portuguesa, como já cheguei a ouvir por aí – estas teorias que ligam esta ou aquela característica linguística ao carácter nacional são sempre muito suspeitas.
Por outro lado, a ideia de que o «arigatō» japonês teve origem no «obrigado» português revela-se, assim, um belo anacronismo. É engraçada, mas não parece possível. Há outras palavras de origem portuguesa no japonês, mas os japoneses já diziam «arigatō» antes de nós dizermos «obrigado» com o mesmo sentido.

Como agradeciam os portugueses antes desta transformação tão recente? Há outras expressões de cortesia na língua: «agradecido»; «bem haja»; «grato»… A certa altura, as tais fórmulas pomposas das cartas começaram a desbastar-se e daí surgiu mais uma fórmula de cortesia: o nosso conhecido «obrigado».

Esta nova interjeição acabou por se espalhar de tal maneira que, hoje, ultrapassa as fórmulas mais antigas – é o nosso agradecimento típico e uma das primeiras palavras que um estrangeiro aprende quando começa a falar português. Não era assim há 300 anos.

Como sempre, a língua continua a moldar a palavra e a reinventá-la. Já não temos só o «obrigado», mas também o «muito obrigado» ou o «obrigadíssimo» – e ainda o levemente irónico «obrigadinho».

Uma interjeição peculiar

Há ainda um pormenor curioso. A forma verbal «obrigado» varia em género e número. Uma mulher dirá «estou obrigada a cumprir a regra» e um grupo dirá «estamos obrigados a realizar a tarefa».

Ora, quando a forma verbal se transformou numa interjeição de agradecimento, seria de esperar que ganhasse as características das interjeições. Uma delas é esta: uma interjeição não varia em género e número. Por esta lógica, o «obrigado», quando é interjeição, deveria ser sempre «obrigado» e nunca «obrigada» ou «obrigados».

No entanto, como vestígio da história que contei, a interjeição continua a variar na boca de muitos falantes — mas só em género. Assim, um homem tende a dizer «obrigado!» e uma mulher a dizer «obrigada!». Já a variação em número quase desapareceu: se um grupo disser «obrigados pela atenção!», a expressão será vista como errada (ou pelo menos estranha) por uma grande parte dos falantes. Em contraste, os falantes nunca estranhariam a forma verbal «estamos agradecidos pela atenção», precisamente porque o nosso cérebro de falantes não trata «agradecidos» como interjeição, mas sim como forma verbal.

«Obrigado», no fundo, é uma interjeição que mantém algumas características típicas da forma verbal de onde surgiu — mas não todas. Como a variação em género (mas não em número) de «obrigado» é hoje uma regra de etiqueta do português, é bem provável que esta interjeição que ainda se lembra de ser verbo se mantenha assim por muitos e bons anos.

Dou por terminada esta pequena viagem à origem da palavra «obrigado» — mas não me vou embora sem dizer: obrigado por acompanhar esta página!

(Texto baseado em crónica anterior, com nova revisão.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.

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Marco Neves

Docente na NOVA FCSH e investigador no CETAPS. É tradutor desde 2002 e autor de vários livros sobre a língua portuguesa e a linguagem humana. Escreve regularmente no SAPO 24 sobre temas linguísticos e mantém a página Certas Palavras (www.certaspalavras.pt).
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