Novo feminismo

Filipa Fonseca Silva (FFS) publicou em 2022 o romance O Elevador e este ano de 2023 E Se Eu Morrer Amanhã? Se no primeiro evidenciava uma arte apurada de descrever e narrar a realidade social e a realidade mental, sobretudo através da criação de diálogos, no segundo continua com a mesma excelência. Porém, em E Se Eu Morrer Amanhã?, existe um elemento estilístico ruptural: o jogo entre o narrador e a personagem central altera, em parte, o absoluto realismo de O Elevador. A partir da p. 46, sabemos que Helena está morta, que morreu em fevereiro de 2020, que a responsabilidade de lhe contar a vida pertence totalmente a um narrador majestático e que este aponta para um final romântico, coisa que ela, com a mentalidade empirista e pragmática do nosso tempo, não deseja. Na pág. 170, assistimos à revolta da personagem contra as intenções do narrador e a descrição nada romântica da morte de Helena. É justamente este jogo entre a personagem e o narrador que, face ao realismo de O Elevador, moderniza ou pós-moderniza a escrita de FFS. De facto, uma personagem tão forte como Helena, que, viúva, com 70 anos, intenta atingir e experimentar a liberdade sexual que se tem na adolescência, não poderia ficar subordinada ao clássico narrador determinista e linear. Na p. 86, humilhando o narrador, a personagem afirma que este só sabe das relações sexuais que ela contou aos filhos, não sabe do caso de João Marques. E na p. 105 atreve-se a desmentir o narrador.

Se a ideia central de O Elevador era forte, explorada em 180 pp. (um casal jovem vê-se preso durante uma noite num elevador), a ideia de E Se Eu Morrer Amanhã?, é igualmente forte: Helena,  mulher idosa, anseia por libertar-se do antigo estatuto de mulher casada, leal ao seu marido, mãe ternuríssima, esposa excelentíssima, principalmente porque se casou  e viveu com Alberto ao longo de 46 anos sem que este a tenha feito sentir um orgasmo.

Como mulher que serviu um marido durante cerca de quatro décadas, Helena, viúva de Alberto, pretende possuir a liberdade sexual que os homens sempre tiveram, mesmo casados. Como ela diz, “O Alberto ensinou-me o que era o sexo, mas não o prazer” (p. 61).

Neste sentido, Se Eu Morrer Amanhã? intenta explorar ficcionalmente o tabu da inexistência de desejo sexual no homem ou na mulher partir dos 70 anos, abordando mais especificamente o caso da mulher. Para isso, se serve de fontes científicas, que cita.

Houve um incêndio no apartamento de Helena, que se viu obrigada a ir viver para a casa de Luísa, sua filha, e de Ricardo, seu genro, e de Mafalda, sua neta com 22 anos. A família vai para férias em Ibiza e leva Helena consigo. Aqui, Helena convive mais com a neta do que com a filha e o genro. Enquanto a mãe está em Ibiza, Rui, o outro filho, vai ao apartamento incendiado e descobre uma caixa com instrumentos de estimulação sexual (vibradores, pénis artificiais, um satisfyer Pro…) e um baloiço pendurado no teto do seu quarto, “um arnês com um género de cabide na ponta, de onde saíam três faixas pretas de cada lado, duas que se uniam como cintos e uma terceira cuja terminação era uma argola” (pp. 49 – 50). A sua mãe tinha instrumentos de prazer sexual no quarto – só podia estar louca!, concluíram Rui e Luísa, os dois filhos, ambos adultos. Segue-se uma reunião familiar onde Helena, sem pruridos, expõe aos filhos que depois de enviuvar passara, por necessidade do seu corpo, a praticar sexo livre com outros homens da sua idade. “Todas as mulheres tinham o direito de sentir prazer” (p. 71). Comprara um vibrador e, pela primeira vez na vida, aos setenta anos, sentira um orgasmo (Idem). Espalha a novidade do prazer que sentira às amigas Amália, São e Antonieta, clamando que “todas as mulheres do mundo deviam ter um” (p. 73).

Apaixonara-se por Ian Smith, um inglês reformado dos caminhos de ferro, mas este, ainda que apaixonado por ela, recusa ter relações sexuais com Helena por a sua mulher estar num lar na Inglaterra convalescente de um AVC.  Ian Smith foi apenas o primeiro, aquele que lhe abriu as portas à paixão, depois foi o carpinteiro António, a seguir o João Marques, antigo amigo de Alberto, depois o grego Gregor, por quem se apaixonou ouvindo-o no apartamento ao lado a tocar piano. Compôs um perfil num “site” de encontros “onde explicava o que procurava: um caso, não um parceiro vitalício” (p. 92), não namorados, mas amantes (p. 96). Assim conheceu Pierre e outros homens idosos. Numa viagem a Itália, faz amor com Gianguido, que acabara de conhecer, um mecânico de motas e pai de três filhos. No regresso conhece Jaime, Raul, Fernando e vários outros homens, praticando “o sexo geriátrico” (p. 130), sempre com o pensamento “e se eu morrer amanhã?”, se algum dos homens me assaltar, me matar?, concluindo que, pelo prazer que sentia, seria preferível “a viver até aos 90 a definhar lentamente” (p. 108).

Em 2019, com 83 anos, Helena, sente algo diferente que não só desejo sexual por Arlindo, seu vizinho: “o carinho, o cuidado, a atenção, demonstrações inequívocas de algo muito mais forte e significativo do que uma relação carnal” (p. 167). Helena é levada a pensar que a mulher totalmente livre representa um desejo da mulher do século XX, e que no XXI a mulher (Mafalda, sua neta, a Inês, amiga lésbica de Mafalda) já não ambicionavam casar-se aos 20 e dedicar-se ao marido, nem faziam promessas de amor eterno” (p. 168), viviam em casas separadas, “juntavam os trapos quando lhes apetecia e separavam-se quando tinha que ser” (Idem). Era uma nova Helena a nascer, iria propor isso mesmo ao Arlindo, “uma proposta de namoro monogâmico, mas em liberdade” (p. 169).

Será que esta nova Helena, na sua terceira vida, realizará o seu desejo? O leitor lerá.

E Se Eu Morrer Amanhã? expõe, literariamente, uma vertente do feminismo que nunca foi defendida abertamente: que os idosos, os “velhos”, como depreciativamente são chamados, sentem o desejo sexual como qualquer outro ser humano e possam e devam ter uma vida sexual ativa, sem os tradicionais preconceitos morais.

Não é difícil de prever que E Se Eu Morrer Amanhã? é um dos muitos romances sobre este tema do “amor geriátrico” que, seguindo o seu exemplo, doravante surgirão nas livrarias. Filipa Fonseca Silva enfileirá, assim, na longa lista de escritoras defensoras, desde o século XIX, da libertação da mulher, primeiro os direitos políticos, depois a independência legal da mulher, ainda a sua independência económica de toda a mulher adulta, agora a libertação dos preconceitos contra a sexualidade da mulher e do homem idosos.

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Miguel Real

Miguel Real, investigador do CLEPUL - Centro de Literaturas e Culturas Europeias e Lusófonas da Universidade de Lisboa, publicou os romances Memórias de Branca Dias (2003), A Voz da Terra (2005), O Último Negreiro (2006), O Último Minuto na Vida de S. (2007), O Sal da Terra (2008), A Ministra (2009), As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia (2010), A Guerra dos Mascates (2011), O Feitiço da Índia (2012), A Cidade do Fim (2014), O Último Europeu (2015), O Deputado da Nação (em co-autoria com Manuel da Silva Ramos – 2016), Cadáveres às Costas (2018), e (em co-autoria com Filomena Oliveira) as peças de teatro Uma Família Portuguesa e Europa, Europa! (2016), e os ensaios Narração, Maravilhoso, Trágico e Sagrado em “Memorial do Convento” de José Saramago (1998), O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa (2005), O Último Eça (2006), Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa (2007), Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (2008) e Padre António Vieira e a Cultura Portuguesa (2008), A Morte de Portugal (2007), Matias Aires. As Máscaras da Vaidade (2008), José Enes. Filosofia, Açores e Poesia (2009), Introdução à Cultura Portuguesa (2011), O Pensamento Português Contemporâneo. 1890 – 2010 (2011), Nova Teoria do Mal (2012), Romance Português Contemporâneo. 1950 – 2010 (2012), Nova Teoria da Felicidade (2013), Comentário a "Mensagem" de F. Pessoa (2013), Nova Teoria do Sebastianismo (2014), O Futuro da Religião (2014), Manifesto em Defesa de uma Morte Livre (2015), Portugal – Um País Parado no Meio do Caminho. 2000 – 2015 (2015), O Teatro na Cultura Portuguesa do Século XX (2016), Nova Teoria do Pecado (2017), Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (2017) e Fátima e a Cultura Portuguesa (2018). Recebeu o Prémio Revelação Ficção da As. Port. de Escritores; Prémio revelação de Ensaio da As. Port. de Escritores; Prémio Fernando Namora de Literatura; Prémio Ficção Ler/Círculo de Leitores; Prémio Ficção da Sociedade Portuguesa de Autores, Prémio Jacinto do Prado Coelho da Associação Portuguesa de Críticos Literários e, em conjunto com Filomena Oliveira, o Grande Prémio de Teatro do Teatro Aberto e SPA.
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