EDUARDO LOURENÇO E OS LUSÍADAS
Miguel Real
- – Eduardo Lourenço: Uma Visão de Portugal
Em 1949, Eduardo Lourenço (EL), em Heterodoxia I, seu primeiro livro, tem uma frase absolutamente demolidora do então estado da culturva portuguesa: “o mundo da cultura portuguesa arrasta há quatro séculos uma existência crepuscular”. Assim, o caudal de conhecimentos que tínhamos erguido com a empresa dos Descobrimentos “perdeu tudo o que tinha de vivo e prometedor, para conservar apenas o comentarismo ruminante estéril”. Porém, e paradoxalmente, a cultura portuguesa dos últimos 300 anos fora edificada por todos aqueles que, em contacto com as manifestações culturais superiores da Europa (o Liberalismo; o Positivismo e o Socialismo de Antrero), tinham criado uma obra pessoal conflituadora com a mentalidade dominante do Estado, da Igreja e do Ensino. Este raciocínio do jovem EL muito devia à lição de António Sérgio. O que já não acontece trinta anos depois, quando publica O Labirinto da Saudade, em 1978, livro crítico de Sérgio.
Em O Labirinto da Saudade, EL faz publicar o seu artigo de 1969, em O Tempo e o Modo, “Sérgio como mito cultural”, que evidencia filosoficamente a intrínseca constitutividade débil da razão. Com este artigo, o iluminismo pombalino, o positivismo republicano e o racionalismo forte da primeira metade do século XX, que, com Sérgio tinha elevado a razão a fortaleza epistenológica da Verdade, soçobravam às mãos de uma concepção perspectivística e instrumental de razão e de verdade: é o relativismo ético da democracia a anunciar-se. É com EL que, em Portugal, a Razão, acossada pelos estudos epistemológicos, psicanalíticos e linguísticos, perde o privilégio de um superior instrumento de conhecimento. A partir deste artigo, os estudos sobre a razão em Portugal desenvolverão uma teoria fraca ou fragilizada de razão: Fernando Gil, Manuel Maria Carrilho, Boaventura de Sousa Santos, José Gil, José Mattoso,Viriato Soromenho-Marques, António Damásio.
Bastaria aquele capítulo de O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português para tornar este um livro admirável, vocacionado para ser acolhido na história do pensamento em Portugal. Porém, então, como hoje, todas as atenções se centraram no capítulo que dá nome ao livro. Foi como se, nele, os portugueses se vissem despido, sem a envoltura dos ouropéis ideológicos, mirando-se frágeis, menores e diminuídos ao espelho de si próprio e da Europa. É um dos pouco livros publicados no último quartel do século XX que ficará na história da cultura portuguesa.
Segundo EL, temos historicamente caminhado num espaço conflitual entre o modo como somos e o modo como nos imaginamos ser. Existe, portanto, na mente de cada português, uma desproporção, uma clivagem, melhor, um duplo estado de espírito em que cada um sente o que ontologicamente é (pequeno país, pobre e carenciado país, recursos limitados, baixa qualidade de vida, forte ruralismo tradicional, incipiente indústria, frágil organização financeira nacional, hábitos passadistas, tecnologia nacional infíma) e o que imageticamente lhe é dado ver através da leitura da história pátria (o mito dos Descobrimentos, a aventura da Expansão Ultramarina, o sonho do Quinto Império, o desejo do progresso antevisto na Europa iluminista e positivista, a quimera de um Estado imperial uno, do Minho a Timor, e do seu contraponto socialista-comunista, o Estado solidário e igualitário dos trabalhadores salvadores do mundo). É a esta dupla consciência que tem animado a maioria dos portugueses, sintetizada na diferença imaginária, em cada época histórica, entre a realidade e a ficção, que E. L. designa por “o irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses fazem de si mesmos”. Este “irrealismo”, esta “forma mentis” de ser português, condição histórica permanente de Portugal, tanto tem arrastado Portugal para o maior dos miserabilismos culturais (o espírito decadentista entre os séculos XVII e XX) como para a crença de que somos por condição e destino um povo eleito, por vezes adormecido, mas sempre virtualmente preparado para lançar as “novas naus” da civilização. Esta “forma mentis” portuguesa, é designada por EL como de tipo “traumático”, ao modo psicanalítico, querendo com isso dizer que algo na nossa cultura nacional sofreu de fortíssimas perturbações civilizacionais que lhe recalcaram a possibilidade de uma vivência integrada na normalização média da existência europeia. Ser sempre mais ou menos, tudo ou nada, superior ou inferior, vanguarda ou proscrito, princípe ou gáfaro, não é, sejam quais forem os padrões epocais de estandartização dos comportamentos, um modo habitual de vida.
- Lourenço tenta sintetizar genealogicamente a origem histórica desta particular maneira de ser português erguendo três momentos-chave por que a nossa consciência se feriu ou se imaginou ferida. A nossa personalidade cultural desloca-se não especificamente em função destes três “traumatismos”, mas mais em função das suas consequências no modo social de vivermos e, especialmente, no modo como imaginamos as causas do nosso viver. Trata-se de fundamentar não a realidade histórica tout court, mas de compreendê-la na mediação imagética (a “imagologia”) pela qual os protagonistas da nação interiorizam culturalmente o passado e as exigências do presente, isto é, se auto-conhecem (a “auto-gnose” eduardina). Deste auto-conhecimento nasce um conjunto de imagens históricas epocais, umas gloriosas, outras trágicas, registadas na historiografia portuguesa, as quais, por sua vez, cruzadas e organizadas, constituem a imagologia que define a análise cultural propriamente dito de E. L. O primeiro traumatismo da história de Portugal relaciona-se directamente com o espírito de cruzada por que o Condado Portucalense nasceu, espírito aventureiro, simultaneamente santo e guerreiro, mártir e heróico: “O nosso surgimento como Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levantámos até à plena assumpção da maturidade histórica prometida pelos céus e pelos séculos a esse rebento incrivelmente frágil [Portugal] para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão feudiano com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa, Egas Moniz…)”. O acto de nascimento de Portugal “apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível e do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do providencial” (é a lição de Oliveira Martins). Assim, a “conjunção de um complexo de inferioridade e de superioridade” cumpre “uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade”. Como se lê, esta “intrínseca fragilidade” tem sido compensada pelo “irrealismo prodigioso” por que nos vemos a nós próprios como seres dotados de uma missão histórica providencial.. A verdade é que, mesmo na “hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção”: “Da nossa intrínseca e gloriosa ficção os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema ‘épico’ assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e ‘requiem’?”. Desta magnificiência ilusória, incapazes de controlar tão vasto império, enredados na política de europeia de expansão, acordámos sentindo-nos “às avessas”, experimentando “na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas que o primeiro”: “Nesses sessenta anos (de perda da independância) o nosso ser profundo mudou de sinal”. De povo excelso passámos a povo subalterno, inferior, desprezado politicamente pela restante Europa: “Tornou-se então claro que a consciência nacional (…), que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova de fogo. O viver nacional (…) orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva do passado” – nasce o sebastianismo, nasce o Quinto Império de pe. António Vieira, como liquidação “no imaginário e em termos magníficos (d)o segundo traumatismo, numa barroca inversão que vale bem outras futuras. Esta imagem invertida da nossa real situação histórica acompanhar-nos-á sempre até ao século XX, servindo de suporte imagológico para a política de Pombal e para a “Viradeira” subsequente; para a emergência do liberalismo e consequente guerra civil; para a modernização impetuosa do Fontismo e das Conferências do Casino e consequente melancolia nacional com o Ultimatum; para a salvação social prometida pela República e consequente derrocada com a subida ao poder do Estado Novo de Salazar. Ou seja, “cada período de forçado dinamismo tem sido seguido sempre do que, em linguagem freudiana, se chamaria o regresso do recalcado”. O saudosismo de Teixeira de Pascoais, o Integralismo Lusitano de António Sardinha, Filosofiam Portuguesa e o Nacionalismo do Estado Novo, assumem-se, no século XX, como expressões imagológicas do ser profundo de Portugal enquanto país intrinsecamente fragilizado pela sua actual impotência económica e política, mas também como sucedâneos actuais do messianismo sebastianista do século XVII. Contra-imagem verdadeira é marcada pelo surrealismo, “que soube encontrar os gestos, as imagens, picturais ou poéticas, menos lusitanistas no sentido tradicional do termo”. Porém, diferentemente de outros autores, como A. Sérgio, que viam no salazarismo uma doutrina espúria à consciência nacional, reflexo prolongado de uma moda política europeia, EL declara que “Não se percebeu nada do espírito do antigo regime [Estado Novo] e do seu êxito histórico quando não se vê até que ponto ele foi a mais grandiosa e sistemática exploração do fervor nacionalista de um povo que precisa dele como de pão para a boca em virtude da distância objectiva que separa a sua mitologia de antiga nação gloriosa da sua (actual, nosso) diminuída realidade presente “. É justamente esta contradição entre passado glorioso e “diminuída realidade presente” que levará à persistência de treze anos de guerra colonial, defendendo um sonho passado já sem expressão concreta presente senão no campo do imaginário (“Portugal Uno do Minho a Timor”), e que conduzirá ao 3º “traumatismo profundo – análogo ao da perda da independência” e a “um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo”, isto é, à perda do Império em 1975. Ainda sob o efeito desta amputação do corpo-uno da imagem que sobre nós mesmos fazíamos, terá sido o projecto político de integração na Europa comunitária, a que aderimos em 1980, compensando a ferida da “descolonização”, que permitiu a ultrapassagem incicatrizada desta ferida simbólica que, “em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis”.
Estava detectada as causas da “ferida traumática” da cultura portuguesa.
- – Eduardo Lourenço, intérprete de Camões
Entre 1970 e 1980, Eduardo Lourenço publicou nove estudos sobre a poesia de Camões, que inseriu em Poesia e Metafísica, de 1983. Eduardo Lourenço contesta a visão de António Sérgio sobre Camões como “Platão posto em verso”, sem, evidentemente, excluir o platonismo intrínseco aos versos de Camões. O erro de Sérgio, como o de Oliveira Martins e Teófilo, compensando idêntico erro de uma visão meramente empírica dos versos de Camões, teria sido o de considerar que os poemas deste autor figurariam como expressão directa de uma dada filosofia, que, sendo-lhe exterior, para estes seria directamente transposta. Para Eduardo Lourenço, desde 1951, como vimos, o poema possui uma autonomia estética, um valor literário em si próprio, que nenhuma filosofia, mesmo nele presente, pode elidir. Contestando igualmente a leitura “ingénua” dos poemas de Camões, e aproximando-se da interpretação de António José Saraiva em Luís de Camões, Eduardo Lourenço propõe uma “leitura estruturada”, como o propusera para a leitura de Fernando Pessoa em Pessoa Revisitado, de 1973. “Estruturado” não se identifica nem com a revelação de um “modelo formal” nem com um “sistema metafísico” de interpretação, mas com uma “experiência simultaneamente vital e espiritual da qual as chamadas contradições constituem os pólos de tensão” da interpretação. Assim, estas contradições não fariam parte constitutiva da leitura teórica marxista, como o aplica António José Saraiva, mas a respiração “vital [existencial] e espiritual [as teorias, as ideias]” da existência do próprio poeta, “dilacerado, dividido entre a sua alma e o seu corpo, entre o seu pensamento e a sua memória [cultural], entre a sua vida [os desejos] e o seu Destino”. Deste modo, integrar Camões num sistema filosófico (neo-platónico) é justamente obnubilar o elemento trágico que mais forte soa na sua obra lírica e épica, “o dilaceramento” do tempo, a sensação da espessura ontológica do tempo, que o torna, para Eduardo Lourenço, o primeiro poeta moderno português, em cuja obra brilha a ausência total de categorias estéticas medievais. Contestando a análise “formal” da obra de Camões, Eduardo Lourenço contesta igualmente a visão estrutural ou estruturalista de Jorge de Sena sobre a obra daquele poeta, propondo uma estrutura mais flexível, admissora de contradições, uma estrutura compósita, diversa e contraditória, vivencial, existencial, oposta a uma estrutura lógica, coerente, com todas as partes qualitativamente homogéneas entre si. Neste sentido, infirmando o total neo-platonismo cristão em Camões, Eduardo Lourenço absolutiza em Camões “o homem do desejo” e antes demais do desejo carnal, figurando-o simbolicamente, como é seu habitual estilo metodológico, em “Actéon, o mítico príncipe de Tebas, enamorado e companheiro de Diana, deusa e virgem, próxima e inacessível, devorado pelos próprios cães no momento em que a visão apetecida da Deusa nua o transforma num Príncipe do Desejo [nunca consumado], e da Morte que nele se esconde”. Mito comum à épica e à lírica, “o Mito de Actéon é a figura do Desejo, do mais óbvio e radical desejo”. Neste sentido, Camões, ainda que platonizante, já que a morte trágica de Actéon revela e simboliza a morte do desejo, sempre efémero, repercutido eternamente em mito (e em poema), é platonizante em acto criador e não por via de uma transposição directa das ideias de Platão (a existência de dois mundos: o mundo da “aparência” carnal e material, sensível e mutável, e o mundo ontológico, permanente, constituído por essências ou formas ideias eternas) para a estrutura do poema:
… é no interior da experiência real, e exactamente por isso, que o Homem-Desejante vê nascer do seu inevitável fracasso aquele espaço imaginário e apaziguante em que o Desejo se une à coisa desejada. Para Camões-Actéon é bem a floresta humana, com as suas fontes e clareiras, o lugar da aventura sempre mortal de querer tocar a Vida na sua fulgurância nua. “Puro Amor” e “Sião” são reflexos [da realidade vivida por Camões], não “sol inteligível” [não ideias platónicas].
Dois anos depois, em 1972, Eduardo Lourenço volta a Camões numa conferência pronunciada no Centro Cultural Português, em Paris, da Fundação Calouste Gulbenkian, “Camões e o tempo ou a razão oscilante”. Segundo o autor, Camões encarna a verdadeira face do herói português na literatura portuguesa. Neste sentido, Camões seria menos reflexo das leituras que da sua vida se foram fazendo do que de uma “automitificação” da sua vida [pelo próprio Camões], num esforço de “se salvar salvando o seu próprio tempo numa imagem imperecível”. Vontade de “auto-imortalização” própria do Renascimento (tempo em que de novo, desde o Império Romano, o indivíduo sobressai da História, condensando esta), na vida e obra de Camões refulgem “as solicitações oriundas da ressurreição do mundo antigo [clássico] e a exigência, sempre actual, do mundo cristão” – os Lusíadas constitui-se como “lugar [deste] conflito”:
…o de uma humanidade conquistadora que se afastava com passos de gigante das formas medievais da existência, mas que não podia ainda desenhar o perfil do seu presente sem a intercessão mítica dos deuses antigos. Assim, em vez do puro eco amplificador de proezas históricas bem conhecidas, a obra será, sobretudo, a expressão camuflada do alto desejo [de imortalidade] que o habita.
Neste sentido, esteticamente falando, não se deve ler Os Lusíadas como uma transposição directa e imediata da história epopeica de Portugal, mas como o primeiro momento (estético) no nosso país em que a obra, modernizando-se, ganha estatuto autónomo literário face à realidade social, enquanto “criação concebida como o processo através do qual a chamada realidade [a História de Portugal] é elevada à plenitude da sua forma, ou antes, à sua única existência autêntica. O não-humano torna-se humano e de uma certa forma tudo assim se torna, pois o homem é a forma do mundo”. Deste modo, diferentemente de uma teoria filosófica pré-figuradora dos poemas de Camões, o que neste se encontra é uma poesia rés-vés à experiência de vida do próprio, a do peregrino do Império que foi, a do espectáculo de decadência deste na Ásia, a da decepção do jovem Camões embarcado para a Índia e a da morte de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, para além da experiência do “desejo” amoroso permanente na vida do poeta. Assim, a sensibilidade do “tempo” é igualmente afectada, já que Camões, diferentemente dos poetas medievais, não ambicionaria poetar sobre a sensação de um tempo (cristão) eterno, mas a do tempo por ele vivido, um tempo “intra-histórico, o [tempo] da realidade [mutável e inconstante] que afecta a vida humana, o de uma alteração [vivencial] contínua, ou da mudança”:
Com esta visão do Tempo, cujo mistério só Deus pode esclarecer – mas o Deus a quem devemos esse Tempo é invocado por Camões como absconditus, incompreensível – atingimos aquela experiência-limite que nos autoriza a falar de razão oscilante a propósito do poeta que tão intensamente parece tê-la vivida”. (…) Não duvidamos da pertinência dessa razão oscilante como apta a designar a novidade e o drama espiritual e cultural que ela resume enquanto razão e sensibilidade camonianas. Na verdade, é tão apropriada que nem precisa de ser ilustrada por poemas ou versos em que é questão do tempo ou em que o Tempo é tomado como objecto da reflexão poética. A verdadeira originalidade camoniana, com efeito, situa-se aquém da reflexão abstracta sobre o tempo, ao nível da vivência concreta da temporalidade tal como é assumida de raiz na invenção do próprio verso camoniano.
A “razão oscilante” designa, assim, o lema de que a “verdade é filha do tempo”, ou seja, que o tempo tudo contamina, alterando as feições dos seres, inclusive as da verdade:
O tempo de Camões foi também aquele em que se tornou necessário acolher a Realidade nos seus braços, não bastando como antes contemplá-la no espelho de uma Verdade transcendente. Era preciso, em suma, arriscar a sua razão contra a promessa de Vida. Para isso, precisavam-se algumas almas heróicas, não apenas no sentido marcial, mas no sentido espiritual do termo, espíritos audaciosos, capazes, em verdade, de se aventurar “através dos mares nunca navegados”. Quem duvida que Camões tenha sido um desses argonautas do espírito?
Na comunicação apresentada à “I Reunião Internacional de Camonistas”, em Lisboa, em 1972, intitulada “Camões e a visão neoplatónica do mundo”, Eduardo Lourenço de novo recusa constituir a poesia de Camões a transposição directa de uma filosofia estranha, precisando com maior rigor as relações entre o pensamento de Camões e o ambiente filosófico “neo-platónico”. No quarto centenário da morte de Camões, Eduardo Lourenço publica cinco artigos alusivos: “Camões 80”, no jornal Expresso, “O século de Camões”, no Jornal do Fundão, “Camões e Gôngora”, na revista Colóquio, “Camões ou a nossa alma”, alocução proferida em Leiria no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, e “Camões diferente”, de novo no Expresso, prolongando o estudo deste poeta pelo ano de 1981 com a publicação do texto “Camões e Frei Heitor Pinto”. Entre todos, o texto “Camões ou a nossa alma” justifica uma síntese. Eduardo Lourenço insiste na sua tese de 1972, de “Camões ou o tempo e a razão oscilante”, segundo a qual toda a poesia de Camões reside na “invenção heróica do Homem [desde logo a experiência vivencial do próprio poeta] contra todos os obstáculos próprios e alheios”, mormente “da sua desmedida sede de amor e ainda mais fundo desejo de eternidade”. Desconhecia Camões que a epopeia em que a sua vida se tornara como peregrino do Império se transformaria, ela próprio e o seu canto maior, Os Lusíadas, no símbolo da pátria que o renegara e, depois, no regresso, não o soubera acolher. Porém, Camões nunca será um “poeta popular”. O que Portugal celebra em Camões e n’Os Lusíadas é menos a revisitação de um autor e um livro-síntese de um momento maior da nossa história e mais “a imagem camoniana de nós mesmos, a nossa imagem épica, sublimada ou mesmo sublime, tal como Os Lusíadas a configuraram há quatro séculos e continuam a irradiá-la até ao presente”, imagem que rapidamente, em momentos tensos da nossa história, resvala para o “narcisismo”, “convertendo-o [ao poema] em espelho deformado de um nacionalismo cego, fonte de irrealismo histórico e de esquizofrenia ideológica e cultural”:
Infelizmente, Os Lusíadas não está tanto no meio de nós pela contradição fecunda que o habita e é o sinal supremo da sua grandeza, como pelo reflexo de outras contradições, bem pouco poéticas, suscitadas pela paixão, pelos interesses, pelos fantasmas, individuais ou colectivos, que cada época deseja ver confirmados pelo Texto nacional por excelência. Talvez não possa ser de outra maneira e por isso cada leitura é sempre outra coisa que leitura: é um diálogo e uma luta íntima com a concepção de amor pátrio que lhe dá sentido, com o ideal de vida heróico ou militante que o estrutura, com o género de grandeza que nos atribui, com a missão histórica e simbólica de que é eco e espelho memorável.
Excelso e síntese máxima da história de Portugal, por isso mesmo Os Lusíadas pode ser também um texto irrespirável e bloqueante se não soubermos hoje, culturalmente, recriar o que nele “continua vivo” e nos abandonarmos ao so
nho “irrealista” de perseguir a sua vivência fabulosa (como deveras tem acontecido na “alma nacional”), indício de “não sermos capazes de nos viver bem, quer dizer, de acordo com o que realmente somos, sabemos, podemos e aspiramos ser”. Desta nossa “consciência inadequada” não tem Camões culpa, que viveu, sofreu e cantou o que, desejado, perdera – os amores pessoais e os valores colectivos medievais de “cavaleiro fidalgo” e os valores individuais de “poeta humanista”, desejos e amor transpostos para a Lírica e valores colectivos transpostos para a Epopeia, “salvando a realidade [os Descobrimentos, a História de Portugal] da sua ruína, mesmo gloriosa”:
Não há poesia sem realidade, mas, como a semente do Evangelho, é preciso que a realidade morra para poder florir. Quando Camões refaz o percurso simbólico de Portugal como o de um herói colectivo, destinado pela Providência a abrir os Oceanos e a levar a mensagem de Cristo ao Oriente, associando num mesmo movimento a Fé e o Império, a descoberta do Gama tem quase um século e o teatro da Índia que ele frequentará como desterrado é menos um tablado épico que uma imensa feira que se desfaz. (…) O único presente de Os Lusíadas é o da voz de Camões invocando e construindo a imagem mítica da Pátria de que precisa para sobreviver na verdadeira, eco, sombra e caricatura dessa outra, filha de si mesmo. Não podemos, não devemos ser mais camonistas que Camões tomando como retrato real o que para ele era já ideal. A maior prova de amor que Camões deu ao seu país foi a de lhe propor e de o julgar digno dessa existência ideal que a realidade tão cruamente desmentia., como ele nos lembra nas célebres estâncias finais do Poema que os portugueses deviam saber de cor.
Momento solene e oficial, o do seu discurso no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 1980, para Eduardo Lourenço revelar o seu pensamento sobre a Lusofonia. Nada porém nos diz, o que indicia não possuir ainda um pensamento sobre este tema neste ano. Se se pode sintetizar numa palavra o combate teórico de Eduardo Lourenço em torno da obra de Camões, dir-se-ia que ele se resume a revelar as ideologias conjunturais (as “imagens” ou o “complexo imagológico”) que, desde o século XIX, a têm povoado, pervertendo-lhe o sentido por via de um nacionalismo exacerbado, “irrealista”, compensatório de frustrações colectivas, evidenciando, por um lado, a obra, sem lhe retirar autonomia estética, como expressão da existência sofrida de Camões, e, por outro, como expressão de um momento póstuma da cultura e da realidade portuguesa.
- – A questão colonial e o estatuto d’Os Lusíadas
É justamente no ensaio Situação Africana e Consciência Nacional que a hermenêutica psicanalítica, aplicada de um modo livre, usando pouquíssimos conceitos expressamente freudianos, mas mantendo destes a sua inspiração metodológica, surge fortemente presente em Eduardo Lourenço, diferenciando as suas análises das “historiografias empiristas”, às quais “importa menos «o sentido» que o «o encadeamento» chamado causal, mas que sem ele [o sentido] ou é ininteligível ou vão”. De facto, Eduardo Lourenço visa desvelar, não uma cronologia realista de sucessivos acontecimentos culturais lidos pela consciência que os autores históricos dela possuem, mas “o sentido” velado que não só preside latentemente a essa cronologia como a ilumina e a identifica enquanto interpretação. Encontramo-nos aqui face a uma diferencialidade da consciência histórica entre “expresso” ou “manifesto” e “recalcado”, análogo às análises do sonho em Freud por via dos conceitos de “consciência manifesta” e “consciência recalcada”; e tal como aquela se evidencia como uma compensação ou sublimação desta, assim a consciência histórica de um povo, na leitura eduardina, se apresenta como compensação ou sublimação deformante dos seus desejos e pulsões reais mais fundos. As metáforas do “espelho” e da “imagem” habitualmente usadas por este autor a partir da passagem entre as décadas de 1950 e 60, confirma esta metodologia histórico-psicanalítica aplicada às obras e aos acontecimentos culturais portugueses, evidenciando que o sentido manifesto revelado neles próprios não só esconde um sentido oculto, como para este deve reenviar enquanto seu perfeito esclarecimento. Na página 23 deste ensaio, Eduardo Lourenço, designa esta metodologia por “psicanálise histórica”, embora seja lícito acentuar-se que a sua aplicação às “imagens” de identidade nacional (Ourique, Aljubarrota, Descobrimentos, Os Lusíadas, Alcácer-Quibir, Restauração, V Império, Marquês de Pombal, o Liberalismo Constitucional, a República, Salazar) não obedecem a um plano programático e metodológico pormenorizado pelo autor, mas apenas a uma inspiração freudiana muito livre. Seria ilegítimo e excessivamente forçado detectar-se nos textos de Eduardo Lourenço conceitos históricos e sociais equivalentes aos conceitos de S. Freud, como Id, Inconsciente, Censura, Ego, Super-Ego, Consciência Moral, Sonho…, embora Eduardo Lourenço aplique por vezes alguns destes conceitos. “Psicanálise Histórica” não significa, para este autor, uma hermenêutica de pesquisa analítica a aplicar século a século à história de Portugal, mas uma inspiração compreensiva que lhe permite diferenciar o discurso historiográfico clássico, manifesto nas interpretações conjunturais, das intenções ou do “sentido oculto” que o mesmo discurso revela, ou seja, interessa menos a Eduardo Lourenço a historiografia em torno d`Os Lusíadas do que o sentido desta obra face, primeiro, à realidade de que é suposta ser “imagem”, os Descobrimentos e a realidade histórica portuguesa do século XVI, e, segundo, o sentido desta obra na cultura portuguesa vista como um todo. Por isso, como Eduardo Lourenço sublinha na sua interpretação d`Os Lusíadas, enquanto os historiadores de cultura prosseguirem o discurso do “realismo e do racionalismo críticos, que têm de comum esta crença bem infundada de que a Literatura é o espelho da Realidade, quando é mais certo que ela é filha de uma relação dialéctica com ela”, falhar-se-á sempre a explicação da epopeia de Camões, sobretudo se confrontados com a ausência de semelhante epopeia por parte da cultura castelhana. Segundo Eduardo Lourenço, para a Espanha de então (e a dos séculos seguintes) os seus “ser ideal” e “ser real” (conceitos de nítida inspiração freudiana) como que se identificavam, enquanto a desproporção entre a consciência nacional portuguesa e a sua “pequena” realidade geográfica peninsular se tornara imensa, gerando o desconforto ideológico do qual se origina a pulsão da escrita como justificação mental desta desproporção, nascendo assim o desejo de escrita d`Os Lusíadas. Freudianamente, entre a pulsão do desejo, alimentado pelo princípio do prazer, e o seu consequente recalcamento pelo princípio da realidade, nasce o sonho como condensação deslocada daquele realizando nocturnamente o que diurnamente é censurado. Deste modo, Os Lusíadas tornam-se, em 1572, data da sua publicação, a expressão condensada e já temporalmente deslocada do desejo diurno dos portugueses de conservarem e apregoarem retórica e patrioteiramente um Império Mundial que já de todo historicamente lhes escapava nos reinados de D. João III e D. Sebastião. Como se constata pelo exemplo, retirado da página 25 do ensaio de Eduardo Lourenço, a aplicação do método psicanalítico por parte deste autor é, de facto, muito livre, não obedecendo a protocolos rígidos. Assim, tal como Freud parte dos estados de consciência manifesta para atingir os estados de consciência recalcada, numa dialéctica de deslocações, condensações, perversões, sublimações, assim Eduardo Lourenço parte do “ser ideal” da história nacional, manifestada principalmente na literatura (neste ensaio refere explicitamente Luís de Camões e padre António Vieira) e na historiografia (neste ensaio refere explicitamente a teoria voluntarística do Estado em Oliveira Martins) para atingir o sentido recalcado da história de Portugal, evidenciando as suas patologias discursivas. como um jogo de sucessivos espelhos reflectindo uma única imagem.
De facto, não só a escolha do método da “psicanálise histórica” como o próprio conteúdo deste texto de Eduardo Lourenço sobre o colonialismo continuam a revelar na sua obra uma forte dominância do pensamento heterodoxo. Já sublinhámos a originalidade das análises de Eduardo Lourenço nos artigos dos jornais brasileiros Portugal Democrático e Portugal Livre, manifestando-se contra o regime do Estado Novo, mas também contra as posições interpretativas da Oposição democrática ao regime, isto é, contra as duas ortodoxias politicamente dominantes em Portugal. Neste seu novo texto, eis que se manifestam com igual vigor estas posições simultaneamente contra o Estado Novo e contra a Oposição, agora a propósito da questão colonial. É neste sentido, na permanente busca de um caminho singular tecido de mil artigos sobre os mais diversos temas, caminho que desde a sua juventude classifica de “heterodoxo”, que se devem interpretar as palavras de Eduardo Lourenço de crítica à ausência de um debate profundo, em Portugal, ao longo da década de 1960, sobre a descolonização, com excepção, ainda segundo o autor, dos estudos de Adriano Moreira, de Cunha Leal e de Álvaro Cunhal em Rumo à Vitória, assim sintetizando três perspectivas novas sobre a realidade colonial levantada pela emergência dos movimentos nacionalistas em Angola, Guiné-Cabo Verde e Moçambique, para além da perda de Goa, Damão e Diu: a primeira, de Adriano Moreira, moderadora da tese de absoluta inflexibilidade colonial do Estado Novo; a segunda, a de Cunha Leal, a perspectiva da oposição liberal e republicana; e a terceira, a perspectiva do Parido Comunista Português. Para Eduardo Lourenço, todas elas comungam do desconhecimento da “situação africana tal como ela se apresenta à consciência nacional”. Face à análise política directa, fundada na actualidade, Eduardo Lourenço contrapõe uma análise de carácter cultural, centrada nas imagens culturais que a historiografia portuguesa foi criando ao longo do 500 anos de colonização.
Podemos encarar a totalidade de Situação Africana e Consciência Nacional (1961-63) de Eduardo Lourenço como a explicação argumentativa de uma frase sua do artigo de 1960 publicado no Portugal Livre: “somos colonialistas como somos portugueses”. Assim, neste ensaio, após o “Prólogo”, em que Eduardo Lourenço firma a sua posição de empenhamento cultural, diferenciando-se claramente das perspectivas propagandísticas do Estado Novo, das dos oposicionistas liberais (tomando como exemplo os livros de Cunha Leal) e das dos comunistas, o ensaio divide-se em dois capítulos (I e II) com o mesmo título, “Retrato (póstumo) do nosso colonialismo inocente”. Pelo título destes capítulos, entende-se que a originalidade do ensaio encontra-se no adjectivo “inocente”, ou seja, numa consciência histórica que não possui suficiente duplicidade ou reflexão para se autoconhecer (o conceito eduardino de “autognose”) como fautora do mal de que é acusada: a inocência que qualifica o título dos dois capítulos não advém à consciência nacional portuguesa como dissimulação, produto de uma manha astuciosa, mas como clara ingenuidade, directa adesão a uma realidade (o colonialismo) tida como “natural” e “permanente”. Daí a frase de Eduardo Lourenço de 1960, “Somos colonialistas como somos portugueses”, no exacto período social em que as forças oposicionistas ao Estado Novo clamavam que colonialistas eram apenas os adeptos do regime fascista, sendo o povo português por essência anti-colonialista. Não tendo sido este ensaio publicado senão em 1976, não podemos ter notícia da repercussão desta tese de Eduardo Lourenço e, consultado o leque de jornais e revistas principais existentes em Portugal nesta data, a verdade é que esta tese da natureza essencialmente colonialista do povo português não obteve nenhum eco na imprensa.
As páginas iniciais do segundo capítulo desenham, em condensado, a metodologia e os conceitos a serem aplicados ao longo do ensaio: “mitologia cultural”, “hipertrofia” da consciência como processo cultural idêntico a um “espelho deformante”, identificação de elementos da identidade nacional mitificada como “milagre”, “intrínseca fragilidade”, “consciência patológica”, “autognose”, “irealismo”, … São todos estes conceitos eduardinos que irão ser aplicados à questão colonial, ou seja, às imagens culturais criadas historicamente em torno do conceito de “colonialismo”. Esta análise inicia-se na página 23 com a diferencialidade entre “ser ideal” e “ser real” de um povo:
O «ser ideal» e o «ser real» de um povo jamais coincidem, mas há graus diversos nessa distância entre eles. A hispertrofia da nossa autoconsciência – que por seu turno não tem só a face irrealista, milagrenta, mas a oposta, a do denegrimento, da melancolia extrema – significa que essa distância entre o que nos supomos e o que somos é das mais profundas. Justamente, a hipertrofia preenche, ou melhor, resolve – em boa psicanálise histórica – esse conflito, o qual não é uma miragem mas qualquer coisa de bem adequado ao ser racional diante de si, quer dizer, no meio dos outros, relativizado pela mútua presença dos restantes povos.
É justamente deste conflito dialéctico interno à consciência nacional de se saber realmente “pequena”, isto é, nascida de um “pequeno” território, de uma “pequena” população e com uma “pequena” influência no concurso internacional, e de se “sonhar” grande, sonho provado e cumprido pelos Descobrimentos, que se gera a “hipertrofia da consciência nacional”. Esta “hipertrofia”, ou seja, este sentimento ideal ou este “ser ideal” identificador da consciência nacional, que projecta na existência do povo português um destino providencialista, da ordem do “milagre”, desenvolveu-se em duas fases diferenciadas: a primeira, de um cunho histórico realista, do “realismo da [mentalidade de] cruzada de que era parte”, consolidando-se ao longo da Idade Média, através da “Reconquista”, instaurando definitivamente em Portugal uma consciência cristã salvífica do mundo através da reconversão do mouro e do judeu; a segunda fase da hipertrofia da consciência nacional, ou “para bem dizer, a primeira a merecer tal nome”, “um só documento a resume: Os Lusíadas”. Assim, a epopeia de Luís de Camões constitui-se como síntese da consciência nacional enquanto “consciência de epopeia que só podia surgir então com tal esplendor e com a ingenuidade requeridas pelo facto da desproporção grandiosa entre o agente e a acção” e enquanto tornada “fonte de heroísmo verbal” como expressão histórica decaída de um “antigo esplendor”. Deste modo, os Descobrimentos e posterior colonização “vão projectar[-se] sobre o Poema, como os herdeiros empobrecidos de parentela rica”. É este o estatuto cultural ambíguo d’Os Lusíadas na consciência nacional:
O que no Poema era eco ampliado de grandeza verdadeira volve-se então em fonte de heroísmo verbal, em álibi imaginário e caução suspeita de nacionalismos contrários ao interesse nacional. A idealização natural da gesta lusíada, uma vez esta gesta desfeita em fumo ou tornada pálida sombra – como à nossa sucedeu -, tornou-se fautora de irrealismo, de retórica nada inocente, de justificação hipócrita de más causas no espírito daquela classe que tem tudo a ganhar hipnotizando a consciência portuguesa na contemplação de um passado glorioso para a distrair do presente , onde nada de exaltante lhe é oferecido. Mas que culpa têm nisto Os Lusíadas? Uma só, a do génio que autoriza a nossa fixação cultural no século XVI, e, indirectamente, prolonga uma nostalgia tanto mais profunda quanto é certa que a existência nacional no seu conjunto nunca mais pôde encontrar um momento histórico semelhante, nem de certo modo tal é possível. Assim, ao desencontro normal entre o «ser ideal» e o «ser real» de um povo acrescenta-se entre nós, e mormente devido a Os Lusíadas, o desencontro já patológico entre o presente e esse passado, onde só verdadeiramente somos quem somos. Mas sabemos ser por tê-lo sido um dia.
Nenhuma destas palavras intenta denegrir a imagem cultural d’Os Lusíadas. Diferentemente, Eduardo Lourenço visa estatuir o livro de Camões no centro de um imaginário cultural (ou “mitologia”, como refere Eduardo Lourenço) que, começando por ser reflexo sublime e sublimado da gesta marítima portuguesa, torna-se ele próprio em ideal fixo e permanente ou centro de uma escala de valores histórico-culturais permanentes e, por isso, actualmente anacrónicos: “o Poema não inventou a nossa realidade de descobridores de mundos e colonizadores, mas converteu um momento privilegiado em Eterno presente da alma portuguesa”. O “hipertrofismo”, ou a “hiperidentidade”, como na década de 1970 Eduardo Lourenço designa este conceito, não apenas não desapareceu após o período dos Descobrimentos como mentalmente se solidificou, permanecendo, agora sem suporte histórico presente, nomeadamente após Alcácer-Quibir, ou tendo como único suporte o esqueleto geográfico das colónias ultramarinas: “A colónia (…) preenchia bem o seu papel, que era tanto o de mina de vária riqueza que esse, mais importante, de nos compensar da nossa pequeneza ou, mais radicalmente ainda, de no-la tornar invisível”.Aqui reside justamente o cerne explicativo da frase de Eduardo Lourenço de 1960, “somos colonialistas como somos portugueses” – se ser colonialista faz parte da essência do povo português tal se deve, depois de Seiscentos, à permanente “fixação” (termo técnico freudiano) da nossa consciência nacional no orgulhoso sentimento de grandeza realisticamente criado nos séculos XV e XVI, tornado agora em magnificência delirante alimentadora de uma retórica patrioteira: “Termos colónias não foi um simples a mais, resultado de um excesso de poderio e vitalidade, mas necessidade de fracos e pobres dispostos a pagar caro um lugar ao sol um pouco mais confortável que o caseiro”. Assim, possuir “colónias” torna-se não só a prova material actual desse antigo poder que a História providenciou a Portugal, mas igualmente a marca de identidade por que nos vamos vendo como povo, a ponto de, animados por uma consciência grandiloquente e imperial, agora sem Império, auto-contemplarmo-nos como “povo indispensável aos negros e aos índios, quando o mais evidente é que são eles que nos são indispensáveis”. Assim, “o problema da descolonização é o problema do país”, porque, sem colónias, reduzido ao espaço metropolitano, o mesmo de Quatrocentos, é como se Portugal tivesse perdido a sua identidade, ou, dito de outro modo, como não se justificasse já a existência de Portugal como este sempre se conhecera autognosicamente – povo guerreiro, expansivo, descobridor, cristianizador e civilizador. É justamente esta a “consciência nacional prodigiosa”, como Eduardo Lourenço a designará em 1978, que, fixada como marca distintiva da identidade nacional, numa dialéctica patológica de inversão de causa histórica e consequência civilizacional, que tornou o “nosso colonialismo, antigo e moderno, um fenómeno realmente «orgânico»”, ou seja, um fenómeno social de tal modo integrado no corpo geral da nação que tudo se passa “como se esse Outro [os povos colonizados] jamais tivessem constituído um problema”.
A “raiz compensatória” da nossa colonização foi assim transformando historicamente os povos indígenas, da Carta de Pêro Vaz de Caminha ao “Acto Colonial” de 1951, em povos integrados na pátria portuguesa segundo a:
celebrada «filosofia da colonização portuguesa», cuja essência seria a de uma natural e cristã faculdade de trazer o colonizado segundo normas políticas e humanas não especificamente diversas daquelas que em Portugal foram ou são vigentes. Se não houvesse um abismo entre eles – ou melhor, a sua oportunista versão recente – e a realidade colonial, seria exacto afirmar que nós – e nós apenas – nos aproximámos do ideal do que a política ultramarina neles explícita se reclama, a saber, o integracionismo ou a assimilação, abolindo assim a essência mesma da colonização – a diferença entre colonizador e colonizado.
Reside aqui, segundo Eduardo Lourenço, a singularidade da “mitologia” da nossa colonização pós-Descobrimentos – o facto de, existindo, não existir, ou de, sendo, permanecer invisível, como se Angola, Moçambique e as restantes colónias mais não fossem do que o prolongamento geograficamente diferido do Algarve ou do Minho. Esta ausência de consciência colonial na metrópole deve-se antes de mais a paralela ausência de uma “autêntica colonização, se entendermos por isso uma empresa da totalidade da Nação, concertada e levada a cabo com método e continuidade”. Segundo o autor, tendo havido Descobrimentos, nunca houve verdadeiramente colonização no sentido acima definido, e, sintetizando numa página a história da colonização portuguesa que houve, Eduardo Lourenço conclui:
Só recentemente uma certa camada de portugueses – a que dá o tom a Luanda ou a Lourenço Marques – pôde adquirir uma autêntica mentalidade colonialista. Por um lado, a sua superioridade técnica, enquanto pertence à raça branca, é inegável; por outro, usufrui de maneira convincente não só de consciência dessa superioridade e do bem-estar que lhe assegura, como do salto que a sua condição significa em relação à que seria normalmente a sua na Metrópole.
É a esta colonização sem “colonização”, isto é, sem consciência colonial e sem colonialistas assumidos, que Eduardo Lourenço designa por “colonialismo inocente”, o título dos dois capítulos principais do ensaio: um colonialismo tão entranhadamente integrado e assimilado na imagem consciente da historiografia cultural de Portugal que verdadeiramente não se considera colonialista… até ao momento em que, do lado do colonizado, este facto histórico foi lembrado nos alvores da década de 1960. A declaração de guerra dos diversos movimentos de libertação das colónias portuguesas, fez apagar o ilusório “sentimento profundo de não contradição em matéria colonial” na consciência nacional, começando então a desabar a “mitologia colonialista” que alimentara a retórica nacionalista portuguesa ao longo de 400 anos.
2.1. – O “colonialismo orgânico”
Desde “Europa ou o Diálogo que nos Falta”, de Heterodoxia I, publicado em 1949, que a opção política de Eduardo Lourenço é indubitavelmente pelo sistema democrático. Em 1958, no texto analítico referente às Forças Armadas portuguesas, de novo se revigora a pulsão democrática de Eduardo Lourenço, repetida no texto “A nova República deve nascer adulta” publicado em 1959 no jornal paulista Portugal Democrático, já referido, onde o autor apela para a construção de uma democracia europeia em Portugal. Em “Contribuição para um «Debate Difícil»”, “carta fechada às oposições portuguesas”, escrito em 1969, na véspera das primeiras eleições para a Assembleia Nacional após a subida a Primeiro-Ministro de Marcello Caetano, Eduardo Lourenço confessa o seu apoio à CEUD – Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, influenciada pela corrente socialista, que se opunha à CDE – Comissão Democrática Eleitoral, influenciada por sectores particularmente ligados ao Partido Comunista Português.
Assim, no interior de uma permanente opção pela democracia, podemos datar a opção de Eduardo Lourenço pela corrente política do socialismo democrático do ano de 1969. O livro de Eduardo Lourenço O Fascismo Nunca Existiu evidencia o empenho político de Eduardo Lourenço após a revolução do 25 de Abril de 1974 em dois temas maiores, bem como a sua opção político-ideológica. Os dois temas, disseminados ao longo dos artigos, prendem-se, por um lado, com a democratização geral de Portugal, ameaçada pela avalancha revolucionária do Partido Comunista Português e de pequenos mas aguerridos movimentos políticos trotskistas e maoistas, e, por outro, com a ingente questão da descolonização. Em 1960, como vimos, interpretando a viagem a Portugal do presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek no artigo “Brasil – caução do colonialismo”, publicado no jornal oposicionista português de São Paulo, Portugal Livre, Eduardo Lourenço considerara que, no interior do “irrealismo prodigioso” desenvolvido pela “mitologia” heróica e patrioteira portuguesa do Estado Novo, Portugal “não é acidental mas essencialmente colonialista, único no mundo (…) tragicamente conforme a essa vocação…”. Agora, em 1974, três meses depois do 25 de Abril de 1974, à beira do início da descolonização e consequente fim do Império, Eduardo Lourenço alerta para a existência de ´”Africa”, isto é, para a ingente questão colonial, como verdadeiro “centro da política portuguesa”. Com efeito, face ao dilema “autodeterminação” ou “independência” dos povos colonizados, Lisboa, capital do Império, pressionada pelos movimentos de libertação das colónias, responde com o arrastamento da situação política, que, breve, declara Eduardo Lourenço, se veria impossibilitada de acautelar um duplo interesse português em África – o da perpetuidade da língua portuguesa e o dos interesses da minoria branca nos novos países:
… nenhum independentista branco está em condições está em condições de afiançar e garantir de maneira absoluta a presença branca numa África independente. Ou só o está a título de aposta que até hoje não foi ganha em parte alguma. É o colonialismo português essa mítica excepção que permitirá pôr-lhe fim evitando a tragédia humana e política a que deu lugar noutras latitudes e noutros contextos? Tanto os autodeterministas como os independentistas partilham essa esperança que nalguns é da ordem da fé. Mas o que os distingue é o grau de confiança nessa possibilidade. É porque o general Spínola [defensor de uma política federalista para as colónias portuguesas assente na autodeterminação e, só posteriormente, na independência] e aqueles que pensam como ele não estão seguros dessa permanência no caso de concessão de independência sem processo estruturado de autodeterminação, que recusam tal hipótese. E nenhum independentista pode asseverar que ele se engane. Ao fim e ao cabo, a hipótese do general Spínola (vista a questão sempre do lado português…) não é menos lógica que a do entreguismo concebido como não-entreguismo [tanto se arrasta a situação 1que no final não existe outra hipótese que entregar as colónias ao movimentos nacionalistas]. Trata-se de duas apostas que excluem a única questão-tabu, aquela que nenhum político responsável ousa formular abertamente e menos ainda fornecer-lhe uma resposta: que atitude deve tomar o País diante da perspectiva de uma independência sem fatal presença branca?”.
Segundo Eduardo Lourenço, Portugal deveria ter tomado primazia na iniciativa política, não permitindo a radicalização acelerada dos movimentos de libertação das colónias, a ponto de, breve, se tornar impossível a coexistência “que se quer salvaguardar” e de nada haver a “negociar”, passando-se aos factos consumados. Eduardo Lourenço acertou. A independência das ex-colónias precipitou-se entre 1975 e 1976 e Portugal teve de acolher cerca de 500 000 “retornados” através de uma das maiores pontes aéreas da história. Em “Requiem para um Império que nunca existiu”, datado de Setembro de 1974, Eduardo Lourenço antevê este final abrupto e sem glória do Império português. Com efeito, o Império fora vivido por via do “irrealismo histórico intenso” do regime do Estado Novo, criador de “uma das mais grotescas mitologias colonialistas de que há memória ao equipar Angola e Moçambique ao Minho ou a Trás-os-Montes”, cristalizando assim, em profundidade, a noção delirante de Portugal não existir na história como um país colonialista. Assim, porque nunca problematizámos historicamente o Império, sempre nos sentimos tão portugueses quanto povoadores de novas parcelas do mundo. Não havia que disfarçar, éramos portugueses como éramos colonialistas e assim nos deveríamos assumir quando nos encontrávamos perto de arriscar o Império. Porém, o novo poder democrático portava-se internacionalmente como o antigo poder autoritário – como se o problema das colónias não existisse, no passado porque estas se encontravam “naturalmente” integradas no território português; actualmente porque, face a tão ingente problema como o da perda do Império, Portugal parecia desconhecer que tem o dever de responsabilidades políticas, económicas, culturais e, até, civilizacionais, isto é, portava-se como se o Império nunca tivesse existido. Tão entranhado está em nós a consciência de um Portugal imperial que, verdadeiramente, “quer queiram, quer não, todos os portugueses são colonialistas até ao fundo da alma” – reiteração, em 1974, da sua tese de 1960, que designa como “colonialismo orgânico”, isto é, invisivelmente entranhado no corpo da nação. Assim, sonhando, Portugal visava simultaneamente descolonizar e manter laços exemplares com os povos descolonizados, o que a Bélgica, a Inglaterra e a França não conseguiram, uma espécie de união pós-colonial sem “neocolonialismo”. Conseguirá Portugal?:
A descolonização é irreversível. Ela impõe o dever de descolonizar sem arrières-pensées, quer dizer, em função dos interesses efectivos e inegáveis dos antigos colonizados e da complexa situação que lhes foi criada pelos agentes da colonização. O que o Ultramar era ou é constitui razão suficiente para o descolonizar, agora e antes. Não é lícito nem são operar a descolonização na óptica do nosso interesse específico de metropolitanos que precisam dela para poder construir a Democracia em casa. Em suma, não é legítimo subordinar o processo descolonizador a imperativos que são ainda, em prioridade, os da política metropolitana e, por conseguinte, do colonialismo voltado do avesso. Na realidade, os autênticos interesses da descolonização são só, e apenas os dos antigos colonizados e por isso mesmo nem é a nós que incumbe determinar a priori o seu perfil [político] futuro. Mas, queiramo-lo ou não, e paralelamente, estarmos implicados mais do que num processo sem dor de descolonização requeria, num contexto que comporta um segundo elemento, ou questão, aquela que a presença branca representa.
Breve, o Império cairia e a “minoria branca”, santo e senha das trovas gloriosas do colonialismo, fugiria do teatro de guerra, atropelada pela precipitação histórica de um Império há muito à deriva, “mais sonho compensador do que verdade histórica”.
Em 27 de Dezembro de 1976, no artigo “Apelo aos retornados”, publicado no Diário de Notícias, Eduardo Lourenço relembra que nem antes nem depois do 25 de Abril de 1974 a descolonização fora elevada a questão central da política portuguesa, precavendo o descalabro que seria (foi, de facto) a fuga em massa da minoria branca das ex-colónias: “em função de urgências históricas que não estão provadas, os colonos foram pura e simplesmente leiloados ou pouco menos, que a noite a que foram deixados, pagando por todos um colonialismo orgânico, a nada mais se parece que a um leilão histórico, a um atroz desfazer da feira imperial. A pedagogia da descolonização não mobilizou seriamente ninguém e não o podia fazer quando os dados já estavam lançados no tapete de um auto-ilusionismo que é o último e o mais funesto reflexo da colonização e do colonialismo”. Eduardo Lourenço continua: “tudo isto se passou [uma descolonização impensada] como se não houvesse dificuldade de maior, nesta brutal indolência ou incapacidade de prever os dias de amanhã, que parece ser uma das constante do comportamento nacional”. Com efeito, o “colonialismo diferente” que existia em Portugal (o “colonialismo orgânico”) a todos vedava a real e normal dimensão colonialista de Portugal, como se fosse invisível ou se assumisse inocente aos olhos da História. Invisível para Portugal, mas bem visível para os povos sofredores do nosso colonialismo e, neste sentido, Eduardo Lourenço prevê, em “Ressentimento e colonização ou o complexo de Caliban”, publicado em 4 de Maio de 1976, após o auge da descolonização, que a “forma mentis” da relação dos povos descolonizados para com Portugal será durante longo tempo a do “ressentimento”, “labirinto de que ninguém sai sem ajuda”, em que só “a tragédia se estabelece (…) e só o sacrifício, como os Gregos o souberam, restabelece a ponte entre o homem do ressentimento e aquele que é a sua origem ou pretexto [o colonizado]”. Acordámos tarde e violentamente para o processo de descolonização e acordámos como se todo o processo tivesse sido pervertido pelos povos africanos colonizados, esquecendo-nos – porque o nosso colonialismo nos vestia como uma segunda pele – da “incicatrizável ferida da negação absoluta de que [os povos colonizados] foram objecto pelo facto mesmo da nossa colonização”, que os tornara povos não-existentes, por sós próprios rasurados da História. Neste sentido, a nós, cabe-nos a compreensão sem lamentações do nosso passado histórico e aos povos ex-colonizados o “ressentimento” de Caliban contra Próspero, seu criador, segundo o drama A Tempestade, de Shakespeare
- Eduardo Lourenço, “Camões – Actéon. (Para um reexame da mitologia cultural portuguesa), in Poesia e Metafísica, ed. cit. [2ª ed.: 2002]António José Saraiva, Luís de Camões, Lisboa, Edições Europa-América, 1959.
- Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, ed. cit. [2ª ed.: 2002]
- Eduardo Lourenço, “Camões e a visão neoplatónica do mundo”, in Poesia e Metafísica, ed. cit. [2ª ed.: 2002]
- Eduardo Lourenço, “Camões 80”; “O século de Camões”; “Camões e Gôngora”; “Camões ou a nossa alma” e “Camões diferente”, in Poesia e Metafísica, ed. cit. [2ª ed.: 2002]
- Cf. Eduardo Lourenço, “Camões e Frei Heitor Pinto”, in Poesia e Metafísica, ed. cit. [2ª ed.: 2002]
Miguel Real
últimos artigos de Miguel Real (ver todos)
- Eduardo Lourenço e Os Lusíadas - 2 de Março, 2024
- “Camões interpretado por Eduardo Lourenço” - 29 de Fevereiro, 2024
- Miguel Real, “Nova Teoria do Sebastianismo” (2014) - 15 de Novembro, 2023
- Miguel Real foi agraciado com Prémio Matriz Portuguesa – Cultura e Conhecimento 2023 - 13 de Novembro, 2023