Miguel Torga e a sua passagem por Vila Nova

José Vieira Lourenço

Publicado na edição de hoje (quinta-feira, 30.10.2025) do jornal digital «sinalAberto».


Consultório do médico Adolfo Rocha (escritor Miguel Torga) em Vila Nova. (Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

A convite de Jaime Ramos, fundador e presidente da Fundação Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP), que tem sede em Miranda do Corvo, estive recentemente nesta vila, onde fiz uma breve apresentação sobre Miguel Torga e a sua passagem por Vila Nova.

O cidadão Adolfo Correia da Rocha, que veio a usar o pseudónimo literário Miguel Torga, foi médico de clínica geral em Vila Nova, no concelho de Miranda do Corvo, de 1934 a 1937. Aí, ficou conhecido como o Dr. Rocha. Convém recordar que, em 2007, foi feita a geminação entre as freguesias de Vila Nova e de São Martinho de Anta (no município de Sabrosa), terra natal do poeta. Foi em Vila Nova que Torga escreveu várias páginas do volume I do “Diário”. Escreverá outras em volumes posteriores. Mas a obra que melhor retrata a sua passagem por Vila Nova é “A Criação do Mundo”Curiosamente, foi no ano de 1934 que passou a usar o pseudónimo Miguel Torga.

Monumento que assinala a geminação das freguesias de Vila Nova
(concelho de Miranda do Corvo) e de São Martinho de Anta (no
concelho de Sabrosa). (Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

Os primeiros escritos de Miguel Torga sobre Vila Nova foram, pois, registados no seu primeiro volume do “Diário”.  Depois da sua permanência na  freguesia, onde fez amizades para o resto da vida, naturalmente que o poeta terá regressado a Vila Nova inúmeras vezes, quer para visitar os amigos, quer para caçar.

Dessas passagens nem sempre terá feito registo no seu “Diário”. Porém, em 16 de Junho de 1968, escreveu (no “Diário X”) um relato curioso: “Aqui ando a visitar o túmulo de alguns anos da minha vida. A recordar com dificuldade nos rostos das velhas as raparigas que partejei, a tropeçar em desconhecidos que ajudei a nascer, a indagar de pessoas que tratei e curei, e que apodrecem no cemitério. A casa onde residi ocupada, o consultório abandonado, outra igreja no largo. Subo de automóvel à serra, que tantas vezes galguei a pé e afobado, para acudir a aflições urgentes. Nas aldeias e lugarejos, onde fui providencial tantas vezes, nem sequer me reconhecem. Perguntam-me quem sou, e apetece-me responder com o ‘ninguém’ do romeiro de Frei Luís de Sousa. Olho[,] por fim, o imenso panorama que se estende até ao mar. E tenho a impressão de que só nele encontro viva a minha imagem passada. A imagem impessoal do poeta que o cantou.”

Busto de Miguel Tiorga no largo de Vila  Nova.
(Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

Encontramos outros interessantes textos escritos em Vila Nova, sobretudo no volume I do “Diário”, registos iniciados em 3 de Janeiro de 1932 e terminados em 15 de Agosto de 1941. O primeiro registo, datado de 7 de Novembro de 1934, relata uma dor, entre tantas que terá sentido ao longo da vida, mas que o poeta, homem de esperança, confessa ser a “sensação mais dolorosa” da sua vida. Cremos que esta confissão de Torga é perfeitamente normal. Que pode alguém dizer a uma mãe perante o quadro do seu filho que morre na primeira semana? Miguel Torga, que tinha a fama de homem rijo e duro, deve ter chorado muita vez em momentos como este. Porque todos sabemos que as almas dos poetas são, por norma, sensíveis!

A vida de Miguel Torga por terras de Vila Nova, ora mais agitada ora mais monótona, não parece deixá-lo plenamente satisfeito. E, por isso, registou no seu “Diário” (volume I), a 10 de Fevereiro de 1935, este desabafo: “Não posso. Passar a vida assim, a jogar a bisca com o prior, a levantar-me às tantas da madrugada para ir ver um doente ao Gandramás, a ouvir e a contar história de caça o resto do tempo, valha eu o que valer, é um destino que não mereço.”

Sabendo-o atento ao Mundo, não podemos estranhar que, em 3 de Dezembro de 1935 (também no “Diário I”), tenhamos um dos registos mais conhecidos de Miguel Torga. Nele presta, de forma bem singela, mas sincera, uma grande homenagem ao maior poeta de Portugal, já naquele tempo: “Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao mesmo perguntar quem era.”

Panorama de Vila Nova,  no município de Miranda do Corvo. (Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

No volume XIV do seu “Diário”, Miguel Torga assinalará outra homenagem a Fernando Pessoa, no dia 30 de Novembro de 1983, data da inauguração de um monumento a este importante poeta modernista, em Vila da Feira, declarando que antes dele “ninguém tinha realizado o milagre de criar de raiz, um Portugal feito de versos”. Sabemos que a admiração entre os dois poetas é mútua. Fernando Pessoa, por exemplo, agradeceu a Torga o envio do seu livro “Rampa”, publicado em 1930, considerando até “que a sensibilidade de Torga é do tipo igual à do José Régio”.

Um dos registos mais curiosos, mas nem sempre lido com rigor e pendor crítico, ao ponto de alguns poderem ler coisas diferentes do que o poeta quis dizer, foi escrito em Vila Nova, a 22 de Janeiro de 1936 (em “Diário I”): “A intimidade desta vida de aldeia é um espectáculo ao mesmo tempo repugnante e maravilhoso. Estrume da cabeça aos pés. Entre o porco e o dono não há destrinça. Mas, ao cabo, esta animalidade toda, de tão natural, acaba por ser pura e limpa como a bosta de boi.”

Se atendermos só à afirmação “entre o porco e o dono não há destrinça” e se esquecermos o resto do texto em que declara que “esta animalidade toda, de tão natural, acaba por ser pura e limpa como a bosta de boi”, podemos criar confusão e deturpar o sentido do que o poeta quis dizer. Convém não esquecer as condições de um Portugal rural, em 1936: animais e humanos habitavam o mesmo edifício.

Rua Miguel Torga em Vila Nova. (Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

A 6 de Julho de 1936, Miguel Torga deveria ter largos motivos para estar feliz e disso deu conta. Todavia, ao mesmo tempo, parece pouco confiante no valor da sua última publicação – “O Outro Livro de Job” –, revelando até o seu desalento que o acompanha desde o berço. Mas não se entende muito bem este desalento do poeta, porque o citado livro teve sucesso e, pelo menos, cinco  edições: em 1936, em 1944, em 1951, em 1958 e em 1986.

Em 16 de Agosto de 1936, mais uma vez em Vila Nova, Torga escreve sobre um tema recorrente na sua obra, a religião, confessando que a esse nível, dentro dele, isso está cada vez pior e que ela vai mirrando e secando. Recordemos que a temática relacionada com o lugar de Deus na obra de Miguel Torga tem sido motivo de estudos muito variados. Para o poeta, Deus foi sempre o pesadelo dos seus dias, como escreveu no “Diário XIV”, em 25 de Dezembro de 1984, quando tinha 77 anos de idade: “Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de o esquecer.”

Placa da Rua Miguel Torga em Vila Nova.
(Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

O último registo do “Diário I” de Torga pelas terras de Vila Nova foi realizado a  5 de Fevereiro de 1937. Nesse registo diarístico escreveu uma das mais belas caracterizações das nossas gentes, nos anos 30 do século XX. Hoje, entendemos perfeitamente o desabafo do poeta e só podemos dar-lhe razão no que escreveu: “É escusado. Ou se lavram estes montes a instrução e a higiene, ou então não vale a pena um médico perder a vida aqui. Estas santas pessoas adoecem, metem-se na cama como raposas na toca, e esperam. Se Deus faz o milagre, muito que bem: erguem-se; se Deus não faz o milagre, mandam chamar o padre para os untar, o doutor para dar uma satisfação ao povo, fecham os olhos, e não dizem mais nada.”

Entende-se muito bem o registo. Naquele tempo, faltaria, decerto, nos montes da nossa freguesia, assim como em todo o país, muita higiene, mas sobretudo muita instrução. Estamos em plena época do antigo regime salazarista, mas é preciso recordar que nesse período a taxa de analfabetismo em Portugal era da ordem dos 40 %.  Salientemos ainda que, ao tempo, a maior parte das casas não tinham duche nem banho, nem tinham água canalizada.

Casa onde nasceu o escritor Miguel Torga, em São Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa, às portas do Douro vinhateiro. (Créditos fotográficos: João-Afonso Machado – jamachadosemterra.blogs.sapo.pt)

Curiosa é também uma declaração do Ministro da Educação desse tempo,  Eusébio Tamagnini, que tinha a preocupação de extinguir o analfabetismo, embora reconhecesse que não tinha verbas suficientes para acudir a todos os casos.  Este senhor ministro propunha simplificar o problema de “acordo com as modernas descobertas pedagógicas” e, para tal, dividiu a população portuguesa em cinco grupos: 1.º – ineducáveis (8%); 2.º –  normais estúpidos (15%); 3.º –  inteligência média (60%); 4.º –  inteligência superior (15%); e 5.º –  notáveis (2%).

Não dá consolo a ninguém que este senhor acreditasse no fatalismo biológico, ou seja, que uns nascem completamente estúpidos e, assim, não se podem educar; que outros serão estúpidos, mas mais perto da normalidade; que a maioria é portadora de inteligência média; e que, a par destes, exista a elite: as inteligências superiores e os notáveis. Custa-nos até imaginar como é que esse senhor ministro conseguiu apurar tais dados! Quais terão sido os instrumentos de medida? Em face do que se sabe hoje, sob o ponto de vista das Ciências Sociais e Humanas, nomeadamente a Pedagogia e a Psicologia, todos os seres humanos, com mais ou com menos capacidade, podem libertar-se da escravidão da ignorância. Não há qualquer fatalismo biológico. Admitamos que uns têm mais potencialidades, sejam elas ditadas pela genética que herdaram, mas principalmente pelo meio social em que crescem e se educam.

Largo do Eiro, em São Martinho de Anta, no município de Sabrosa. (Créditos fotográficos: João-Afonso Machado – jamachadosemterra.blogs.sapo.pt)

Outra fonte notável para conhecermos as gentes de Vila Nova é a obra “A Criação do Mundo”. Os três primeiros volumes são escritos entre 1937 e 1938 . O livro “O Quarto Dia da Criação do Mundo” foi escrito em 1939 e trata criticamente a Guerra Civil de Espanha. Esta obra levou Torga até à prisão. O poeta foi preso em Leiria – onde, entretanto, abriu consultório – e depois levado para a prisão do Aljube, em Lisboa.

Fotografia da Cadeia do Aljube, por Joshua Benoliel, datada do início do
século XX. (Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa – pt.wikipedia.org)

Refira-se que, em “A Criação do Mundo”, Vila Nova aparece sob o nome de Sendim. Das razões da escolha deste nome não sabemos. Sabemos, sim, que temos em Portugal várias terras com este nome e que Miguel Torga as conheceria, certamente. As razões por que usou tal nome para designar Vila Nova não são conhecidas. Uma hipótese que apresentamos pode ser esta: a palavra “Sendim” deriva do étimo latino “sendinus”, que significa “caminho”. Será que Torga, ao escolher este nome, não terá pretendido dizer que a Vila Nova, que se esconde por detrás de Sendim, foi o início do seu caminho profissional?

É, principalmente, no segundo volume de “A Criação do Mundo” que ficamos a conhecer a vida do poeta em Vila Nova. As razões dessa presença são claramente enunciadas. Ficamos a saber que era uma solução precária, mas a necessidade de ganhar a vida assim o obrigava. Concluímos que Torga gostou da aldeia e das suas figuras mais típicas. Ficamos também a conhecer as  condições em que o médico Adolfo Correia da Rocha vivia, numa casa hoje devidamente assinalada com uma placa: “Aqui viveu Miguel Torga, 1934-1937. E pude devotamente levar durante alguns anos a saúde e a esperança a muitos lares.” A casa, ao fundo do lugar, era pequena, sem grande conforto, mas teria o mínimo indispensável. Naquela época, contou com a colaboração da criada Isabel, nome atrás do qual se esconde a senhora Cristina Mateus, que ainda bem conheci. Aí, deu conta, igualmente, da pobreza do seu consultório, que ficava debaixo da casa paroquial e que levou, um dia, uma professora primária da aldeia do Torno (que, então, o visitou a pedir um atestado médico) a fazer um comentário cruel: “Tem isto tão pobrinho!” Ficamos igualmente a saber  que esses tempos não foram fáceis para o poeta, porque o médico municipal de Fornos (no concelho de Miranda do Corvo) “lhe fazia a vida negra”, como o amigo Raimundo (José Simões Pereira) lhe dava conta.

Em 1936, Miguel Torga publica “O Outro Livro de Job”, livro de poesia, que se impõe no meio literário português. (espacomigueltorga.pt)

Uma das histórias mais curiosas desta obra é a de um sujeito que, um dia, lhe apareceu com um frango dentro de um cesto. Ele tinha um filho que faltou à inspecção militar e precisava de um atestado médico. O poeta, avesso a passar atestados falsos, recordou a situação anterior da professora do Torno. E manteve-se irredutível, sugerindo ao homem que fosse bater a outra porta! Só que o homem não tinha dinheiro e, por isso, trazia o frango! Acabou por lhe dar 50 escudos e, mais tarde, o homem agradeceu e veio gabar-se de que o filho ficou livre da tropa.

Casa onde viveu Miguel Torga, em Vila Nova.
(Créditos fotográficos: Nuno Sampaio)

Algum tempo após, Torga adoeceu e partiu para Coimbra, onde foi operado.  Provavelmente, foi uma apendicite aguda. Posteriormente, sentiu dificuldade em regressar a Vila Nova e começou a praticar num consultório de um colega em Coimbra, na especialização de Otorrinolaringologia, adivinhando que lhe traria vantagens futuras, como veio a acontecer. Contudo,  ao tempo, sentia igualmente vontade de arejar, como dará conta no terceiro volume de “A Criação do Mundo”. Assim, iniciou uma viagem por várias cidades da Europa.

Ao terminar esta “viagem” com Miguel Torga por Vila Nova, julgo conveniente recordar que não é difícil percebermos que um escritor do seu calibre só podia chamar-se Miguel Torga. Quando, em 1934, lhe perguntaram a razão desse nome, a sua resposta foi cristalina: “Porque eu sou quem sou. Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas na terra, como eu que sou duro e tenho raízes. Miguel é um nome ibérico… Uma homenagem a duas grandes figuras espanholas: Miguel [de] Unamuno e Miguel de Cervantes.”

Relembro que Miguel Torga recusou o panteão nacional, a que os grandes da pátria têm direito. Por vontade própria, quis regressar à sua terra natal, para ali ficar em campa rasa, naquele cemitério de gente simples, como sempre também gostou de ser, apesar da sua grandeza. Ali quis ficar, naquele “cemitério pobre”, “à beira da estrada”, onde vão a enterrar “Pobres almas singelas / Que viveram aqui, / E só ali são elas”, como escreveu num dos seus poemas.

Adolfo Correia Rocha nasceu em 12 de Agosto de 1907, em São Martinho de Anta, no concelho de Sabrosa, distrito de Vila real, no seio de uma família de camponeses. Os pais (Francisco Correia Rocha e Maria da Conceição de Barros) têm mais dois filhos: José, que cedo emigra para o Brasil, e Maria, que permanecerá na aldeia natal. (espacomigueltorga.pt)

Nascido em terras da serrania transmontana, foi também na nossa freguesia beirã, de Vila Nova, irmã gémea de São Martinho da Anta, que viveu bonitos anos da sua vida. Ali fez o bem e muitos amigos. Ali ajudou todos os que dele precisaram e, quantas vezes, gratuitamente. Ali amadureceu como homem, graças à dureza da vida desse tempo e ali cresceu igualmente como escritor e poeta.

A maior homenagem que podemos prestar, hoje, a Miguel Torga, que no “Diário XIV” assumiu que lhe calhou em sorte “ser o mau da peça, o inconformado, o frontal, o desmancha prazeres” é continuarmos a ler, com redobrada atenção, a sua obra. O seu “Diário” é um manancial inesgotável de reflexão sobre a nossa condição humana. Os seus “Contos da Montanha” e “Bichos”, entre outros, os seus romances e novelas são verdadeiros espelhos de Portugal. Os seus poemas são um desafio constante à nossa capacidade de admiração e de revolta, mas sobretudo um convite permanente à resistência contra a opressão e um convite permanente a descobrirmos o sentido da vida!  E que, ao seu modo, ainda hoje todos possamos dizer, como ele disse em 1973: É escusado. Não posso ter outro partido senão o da Liberdade.”

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Nota da Redacção:

Este artigo tem como fonte a obra “Evocação de Miguel Torga, nos 118 anos da Freguesia de Vila Nova, Miranda do Corvo”, da autoria de José Vieira Lourenço e publicada em 2025, pelas Edições Minerva Coimbra, com a participação da referida autarquia.


Foto de destaque: O escritor Miguel Torga acompanhado da sua esposa Andrée Jeanne Françoise Crabbé Rocha, durante a presidência aberta do Presidente Mário Soares, em Coimbra, a 29 Junho 1990. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

 

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