A Casa Fernando Pessoa homenageou José Blanco, em sessão pública, por ocasião da oferta àquela instituição de parte do seu espólio pessoano. Porque palavras leva-as o vento, pensei oportuno deixar aqui nas páginas do JL uma versão truncada do texto que, imprevistamente impossibilitado de estar presente, pedi à directora, Clara Riso, o favor de ler.
Há nestas linhas muito de pessoal, que farei por puxar para a ilharga à medida que for desbravando parágrafos.
O meu contacto com José Blanco remonta à década de setenta quando, numa passagem sua pelos EUA, em conversa com que se tornaria um dos grandes pessoanos no mundo anglófono, George Monteiro, se dispôs a apoiar a realização do que acabou sendo o primeiro simpósio internacional sobre Fernando Pessoa, que teve lugar na Brown University em Outubro de 1977, com a presença de, entre outros pessoanos, Jorge de Sena, naquela que foi a sua última aparição pública, e João Gaspar Simões. As actas desse encontro, organizadas em volume por George Monteiro (Fernando Pessoa: The Man Who Never Was, 1980), constituiram a primeira publicação da editora Gávea-Brown, por mim criada, mas que viu a luz novamente graças ao apoio da Fundação Gulbenkian, no caso sinónimo de José Blanco. Idem para Self-Analysis and Thirty Other Poems, traduções pesosanas de George Monteiro, por sinal o segundo tradutor de Pessoa na Brown, já que o primeiro tinha sido o poeta Edwin Honig, colega de George Monteiro no Departamento de Inglês da Brown (Fernando Pessoa – Selected Poems, 1971).
Escusado será dizer que não foi apenas sobre a Brown, lugar onde José Blanco disse uma vez que “viviam mais pessoanos por quilómetro quadrado”, que choveram as graças desse que foi durante muitos anos o rosto internacional da Fundação Calouste Gulbenkian. A lista que possuo é enorme e nem sequer é exaustiva. Será publicada em apêndice a este texto, no entanto registarei aqui apenas alguns dados estatísticos. Contei 79 estudiosos contemplados com bolsas da Gulbenkian para projectos pessoanos, provenientes dos seguintes países: Brasil, EUA, Itália, Espanha, Bélgica, Holanda, Reino Unido, Roménia, França, Cannadá, Rússia, Hungria, Alemanha, África do Sul, Polónia, Colômbia, Espanha, República Checa, Bulgária, Israel, Argentina, Índia. Os nomes dos scholars são fáceis de se imaginar pois são praticamente os Who’s who dos pessoanos do mundo inteiro. (Uma nota de rodapé como disclosure: não estou nessa lista porque fiz questão de nunca pedir a nenhuma fundação ou instituição portuguesa um único centavo para mim; pedi para causas colectivas e para outros. Para mim, nunca o fiz.)
Mas José Blanco não foi simplesmente um Mecenas visionário ou “iluminado” que, antes de muita gente, se apercebeu da importância de tornar conhecida internacionalmente a obra de Fernando Pessoa. Ele próprio se empenhou em fazê-lo sempre que as oportunidades lhe surgiram. A lista de conferências suas sobre temas pessoanos é também de dimensão global. Senão vejamos alguns exemplos dos lugares onde falou sobre Pessoa: Austrian College, na Áustria; Europália 91, na Bélgica; Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil; Universidade de Sofia, Bulgária; Louisiana Museum of Modern Art, na Dinamarca; universidades de Tulane (New Orleans), Wisconsin (Madison), Harvard (Cambridge), Brown (Providence), Columbia (New York) e Academy of American Poets (também em New York); Universidade de Helsínquia, Finlândia; na Índia, International Centre (Delhi), no Poetry Circle (Mumbay) e na Kala Academy (Goa); no Japão, na Asiatic Society of Japan (Tóquio) e na Kioto University of Foreign Studies (Kioto); na Associação de Escritores da Letónia (Riga); na Universidade de Varsóvia, Polónia; e, no Reino Unido, no King’s College e na Anglo-Portuguese Society (Londres). Além disso, com Teresa Rita Lopes foi comissário da exposição Pessoa Poète Pluriel, realizada no Centro Georges Pompidou, de Paris, em 1985. No mesmo ano foi comissário ainda de outra exposição: Fernando Pessoa. A Galaxy of Poets, realizada no Camden Arts Centre, de Londres.
Neste longo desfile de contributos pessoanos terão de entrar os seus trabalhos académicos, nunca assumidos como tal por modéstia sua e firme desejo de não passar por scholar, mas a verdade é que a sua curiosidade de investigador, o seu espírito metódico, minucioso e crítico lhe permitiram a elaboração de uma respeitável série de textos, o mais conhecido sendo a sua bibliografia pessoana em duas edições, a segunda das quais teve de ser desdobrada em dois volumes, um deles monumental. Mas há muito mais. Deixemos, porém, de lado o que sobre Pessoa José Blanco escreveu em português e lancemos um olhar de relance sobre alguns dos seus muitos trabalhos publicados em livros estrangeiros, já que a tónica desta homenagem consiste no seu contributo para a universalização de Pessoa. São, no mínimo duas dezenas de textos que surgiram na França, Inglaterra, Áustria, Israel e Estados Unidos. De uma uma lista de dúzia e meia de textos incluídos em volumes colectivos, demasiado longa para inserir aqui, retiro dois ou três títulos em jeito de amostra: “PESSOA EN PERSONNE. LETTRES ET DOCUMENTS. Tradução de Simone Biberfeld. Paris: Editions de la Différence, 1986. 2ª. ed., revista e corrigida, Paris: La Différence, Col. Minos, 2003; OEUVRES COMPLÈTES DE FERNANDO PESSOA. 3 – POÉSIES ET PROSES DE ÁLVARO DE CAMPOS PUBLIÉES DU VIVANT DE FERNANDO PESSOA. Réunies et annotées par José Blanco. Tradução de Dominique Touati e Simone Biberfeld, apresentação de Teresa Rita Lopes. Paris: Editions de la Différence, 1989; “Cronologia abreviada”, in FERNANDO PESSOA. DA MAIS ALTA JANELA (ALBERTO CAEIRO: POESIA). Tradução de Francisco da Costa Reis e Yoram Bronowski. Introdução, edição e notas de Rami Saari. Tel Aviv: Carmel, 2004, pp. 170-177.
Para além disso, em revistas ou publicações periódicas, tem José Blanco uma dezena de textos incluídos por exemplo na Magazine Littéraire, na Europe e na Partial Answers. Journal of Literature and the History of Ideas, da Johns Hopkins University. E repita-se: só se menciona aqui os publicados no estrangeiro. Também como exemplo “Le Livre de l’Inquiétude: vers une édition définitive”, in Magazine Littéraire, nº 291, Paris, Setembro 1991, pp. 48-49; “Fernando Pessoa – Nelja Runoilijaa”, in Suomi-Portugali – Yhdistys R.Y., nº. 2, Helsínquia, 1991, pp.5-16; “Fernão and Fernando: Two Great Travelers”, in Partial Answers, Journal of Literature and The History of Ideas. Johns Hopkins University Press, Vol. 10, No. 1, Janeiro 2012. Tudo isto, claro, para além da sua opus magnus, Fernando Pessoa: esboço de uma Bibliografia (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983 e Pessoana, dois volumes coligindo toda a bibilgrafia pessoa, ativa e passiva – Assírio & Alvim, 2008.
Quer dizer, pois, que José Blanco não se propôs apenas dar bom caminho aos dinheiros da Fundação Gulbenkian porque ele, afinal, como se diz em inglês, put his money where his mouth was. Ouso mesmo acrescentar que o seu currículo de scholar é mais rico do que o de muitos académicos de carreira que lecionaram e lecionam neste nosso país. Temos razões de sobra para lhe agradecermos por toda essa sua actividade em prol da internacionalização de Fernando Pessoa e da sua obra.
Todavia, obviamente que não foi em exclusivo ao legado de Fernando Pessoa que José Blanco investiu. Seria injusto deixar tal ideia no ar. É só porque estamos na Casa Fernando Pessoa celebrando o que ele fez pelo poeta que até este momento me limitei aos projectos pessoanos. Deve porém, ressalvar-se que foram muitos e diversos os projectos que mereceram o seu apoio, só que o espaço disponível para esta crónica está a esgotar-se.
Vartan Gregorian, que José Blanco conheceu muito bem pois ficaram amigos, foi um carismático reitor da Brown de há duas décadas, depois de ter liderado várias instituições universitárias e de ter sido director da New York Public Library. Após os seus anos na Brown, foi nomedo presidente da Carnegie Mellon Foundation. Por essa altura, um jornalista de The New York Times perguntou-lhe como se sentia na sua nova função. Gregorian, que tem um magnífico sentido de humor, respondeu: Olhe, toda a vida andei assim (mão em concha para cima em gesto de pedinte); ao menos agora posso andar assim (mão com dedos para baixo a abrirem e a fecharem como quem distribui). José Blanco nunca andou de mãos para cima assim (gesto de pedir). Mesmo aposentado, continua assim (gesto de dar), como o comprova esta oferta à Casa Fernando Pessoa.
Não faltarão más-línguas portuguesas, hostis ao reconhecimento dos méritos alheios, comentando que dar o dinheiro dos outros não custa. Mas todos nós sabemos quanto desperdício, quanto de compadrio, quanto de abuso e sobretudo quanto de vistas curtas por aí vai nessa matéria. José Blanco foi um humanista visionário que teve sempre o coração nas causas certas e soube ser um Mecenas no melhor estilo da Renascença. Isso é obra.
Um dia um turista em Israel estava a admirar o fabuloso Mann Auditorium em Tel-Aviv e perguntou se o nome Mann era em homenagem ao escritor Thomas Mann. Não, não! – responderam-lhe. É um tal Frederic Mann, de Filadélfia. Surpreendido, o turista inquiriu ainda: E o que foi que ele escreveu? A resposta veio pronta: Um cheque!
Cheques passam-se para muito projecto. Passá-los para custear algo como o Mann Auditorium de Tel Aviv, ou para a miríade de iniciativas em que José Blanco investiu, não é para qualquer um. No caso específico que aqui nos reúne, o apoio à internacionalização da obra de Fernando Pessoa, hoje um nome verdadeiramente universal, o grande nome português universal se exceptuarmos os conhecidos do desporto, o sucesso deve-se em grande parte às vistas largas, à inteligência e ao humanismo de José Blanco. Por isso esta homenagem deveria ser nacional e não apenas da Casa Fernando Pessoa. Mas ao menos a Casa Fernanda Pessoa está fazendo a parte que lhe compete. Por isso estou grato a Clara Riso por ter desde o início aceitado incondicionalmente a ideia desta homenagem.
Quanto a mim, concluo manifestando a minha profunda pena de não poder nesta ocasião abraçar José Blanco em pessoa. Nunca imaginei que iria ter de cancelar a viagem que me traria aqui. Não tive outro remédio senão aceitar a vontade dos deuses. A propósito, parece que Pessoa terá dito: A vida é assim, mas eu não concordo. Isso podia ele dizer. Agora eu, quem sou para discordar?
Providence, Rhode Island, 23 de Setembro de 2015
Onésimo Teotónio Almeida
Onésimo Teotónio Almeida
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