Independências: Uma “cartucheira” de canções de ‘griots’ que motivou combatentes na Guiné

Redação, 01 jun 2025 (Lusa) – No interior da Guiné-Bissau, em campos militares e nas zonas libertadas, músicos e contadores de histórias, conhecidos como ‘griots’ e ‘djidius’, notabilizaram-se por uma “cartucheira” de cantos-poemas que motivava os combatentes.

Numa das suas intervenções, o líder e um dos fundadores do PAIGC (Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde) Amílcar Cabral afirmou que a cultura era uma “fonte inesgotável de coragem, de meios materiais e morais, de energia física e psíquica”, que permitia ao povo aceitar sacrifícios e até fazer milagres.

Nas zonas libertadas da Guiné-Bissau e nas bases militares, esse pensamento ganhou forma com cantos-poemas que motivavam os guerrilheiros e que terão ajudado a mobilizar outros jovens para a luta, a partir da tradição dos ‘djidius’, nome dado aos ‘griots’ (músicos e contadores de histórias) daquele país, considerados uma espécie de guardadores e difusores da memória coletiva que atuavam sobretudo em festas e rituais locais.

Para o sociólogo guineense Miguel de Barros, no contexto da luta de libertação, a música surgiu “de várias necessidades”, como a descontração, a pura e simples animação dos combatentes, mas também a consolação dos guerrilheiros, depois de uma batalha com baixas ou de um bombardeamento.

“A música na guerrilha aparece para celebrar as vitórias, para motivar os combatentes e também para os apaziguar ou para lhes dar alento”, afirmou à agência Lusa o investigador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral de Bissau.

No contexto da guerra de libertação, os ‘djidius’ entoavam cantigas que apelavam à mobilização, criticavam o regime colonial português e exaltavam o PAIGC, fosse apenas com a voz, a toque de ‘siko’ (caixa de madeira revestida de pele de cabra que era tocada com um par de baquetas) ou acompanhados de flauta (das etnias balanta e papel).

As cantigas eram entoadas “nas guarnições, nas bases onde os guerrilheiros estavam, e surgiam antes e depois dos combates”, sem eufemismos ou metáforas, relatando as derrotas, as vitórias e sinalizando combatentes memoráveis, afirmou Miguel de Barros.

Segundo o sociólogo, muitas dessas cantigas surgiam de forma espontânea, num momento de inspiração, moldado pelo que acontecia à volta.

Esses cantos-poemas tanto poderiam ser mais lentos e com tons soturnos, como mais rápidos e celebratórios, sendo também influenciados pelos diferentes grupos étnicos que os interpretavam, com cantigas em crioulo, que se consolidou e tornou-se língua franca no contexto da luta, mas também em línguas locais, representando a diversidade étnica que marca a Guiné-Bissau.

“Até hoje, nas datas históricas, essas cantigas emergem”, contou o sociólogo.

As cantigas eram também difundidas pela Rádio Libertação (do PAIGC), localizada na Guiné Conacri, e alguns desses ‘djidius’ ficaram famosos, como José Lopes, N’Fore Sambu ou Famara Mané – este último seria homenageado num álbum do grupo Super Mama Djombo lançado já depois da independência.

“Eles foram importantes para que as pessoas não perdessem a esperança de que íamos ganhar, de que íamos vencer a luta armada”, disse à Lusa o músico guineense Ivan Barbosa, diretor musical dos Super Mama Djombo desde 2006, referindo que vários homens que estiveram na frente sul disseram-lhe que Famara Mané, com a sua guitarra tradicional de três cordas, “teve esse papel de mobilizar jovens para pegar em armas e lutar pela liberdade”.

No seu livro de memórias, Aristides Pereira, primeiro Presidente de Cabo Verde e um dos fundadores do PAIGC, recordava que o movimento gravava músicas “de todas ou de quase todas as etnias” na Rádio Libertação, considerada “o canhão de boca da luta” por Cabral.

“Quando vinham a Conacri buscar abastecimento e armamento, aproveitávamos para juntar um grupo e gravar”, afirmava, acreditando que levar “a todos os cantos da Guiné a música balanta, fula, mandinga e mancanha” terá tido impacto na mobilização.

“Imagino o prazer com que as populações, tanto das regiões libertadas como de Bissau, ouviam as suas canções”, que tanto falavam do quotidiano da luta armada como seriam um registo e celebração de música tradicional, dizia Aristides Pereira.

Algumas dessas gravações acabariam por ser editadas num vinil, intitulado “Uma Cartucheira Cheia de Canções”, ainda antes da independência, onde figuravam nomes como Famara Mané, N’Fore Sambu, José Lopes, Dominik ou Sia Caby.

No disco, estão canções que celebram o PAIGC, que atacam o regime colonial português, em letras diretas em que reclamam independência e soberania sobre a sua terra. Numa das canções, goza-se com Salazar, afirmando que o ditador tem a boca de uma bentana (um peixe) e pernas que são como lianas.

Numa tese de mestrado da autoria de Júlio Té sobre música e identidade nacional guineense, é entrevistado José Lopes, ‘djidiu’, antigo combatente do PAIGC e locutor na Rádio Libertação, que se recorda da importância do ‘siko’, cujo toque expressava a “velocidade da guerra”.

Na entrevista, recorda uma canção que incentivava os jovens a participar numa guerra onde os meios pareciam desiguais: “Eu estou ciente que vou morrer jovem, mas mesmo morrendo novo vou deixar nome. […] Vou enfrentar a batalha de fogo batendo as balas”.

Para a ex-combatente do PAIGC Adja Djassi, enfermeira e cantora durante a luta, citada na mesma tese, aquelas canções terão levado muitos a aderir à luta.

Além disso, num contexto de guerra, a música servia também como forma de superar momentos mais difíceis.

“Nós, no hospital, recebíamos as pessoas que tinham sido feridas na guerra com a música. […] A gente percebia nos rostos deles a tristeza, mas continuávamos a cantar e o ‘siko’ continuava a ser tocado em ambiente de animação entre os camaradas. Neste ambiente, cada um abraçado ao outro, parecia que não tinha acontecido nada”, recordava.

JGA // MLL – Lusa/Fim

Foto de destaque: Elementos de um grupo de folclore participam nas cerimónias comemorativas dos 50 anos da independência da Guiné-Bissau, em Bissau, Guiné-Bissau, 16 denovembro de 2023. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

 

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