Independências: Uma nova e moderna música guineense foi “balão de oxigénio” para a luta

Redação, 01 jun 2025 (Lusa) – Nos últimos anos antes da independência da Guiné-Bissau, surgiu uma nova e moderna música guineense, que foi como que um “balão de oxigénio” para a luta e uma consolidação do crioulo como elemento unitário.

No arranque da década de 1970, surgiu o conjunto Cobiana Djazz, criado inicialmente por José Carlos Schwarz, Aliu Bari, Mamadu Bá e Samakê, que celebrava uma manifestação cultural e artística local, reprimida pelo sistema colonial, e cantada em crioulo, que funcionava como língua franca num território cheio de línguas locais.

Sem oportunidade de concertos, foi Óscar Barbosa, mais conhecido por Cancan, que assumiu a gravação das músicas e lançou os Cobiana Jazz na rádio, quando trabalhava na Emissora Nacional.

“Porque não? Uma pessoa só morre um dia e uma vez”, recordou Cancan, no documentário “José Carlos Schwarz – A Voz do Povo”, de Adulai Jamanca.

Pela primeira vez, músicas guineenses, cantadas em crioulo, passavam na rádio, durante um programa matinal da Emissora.

“Aquilo foi uma autêntica bomba. Penso mesmo que um ataque em Bissau tinha menos efeito psicológico do que essa música. O sentimento dos guineenses, sobretudo em Bissau, foi qualquer coisa de extraordinário. Não havia conversa que não fosse sobre essa música”, afirmou Cancan.

De acordo com Ernesto Dabo, que também fez parte dos Cobiana Djazz, as gravações chegaram depois à Rádio Libertação e passaram a ser difundidas, acreditando que terão motivado “muitos jovens dos centros urbanos a irem para a frente da guerra”.

“Com a emergência desses ritmos, dessas sonoridades, criou-se uma questão da consciência sobre a própria valorização da cultura local, sobretudo com o fenómeno dos Cobiana Jazz, com música em língua crioula e que era difundida nas rádios nacionais”, disse à Lusa Miguel de Barros, investigador do Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral de Bissau.

No período colonial tardio, os Cobiana Djazz resgatavam géneros tradicionais como o gumbé, aliando-o a instrumentos eletrificados e às influências dos grandes grupos que surgiam na África Ocidental, como os Bembeya Jazz, na vizinha Conacri.

Nas canções, que só viriam ser editadas mais tarde, já depois da morte precoce de Schwarz, faziam-se referências mais ou menos explícitas à guerra.

Em “Ntchanga”, um menino chora de fome, às costas da mãe, que não tem tempo para lhe dar de mamar, porque “Guerra Ribeiro vem aí”, numa referência a um intendente do regime colonial na Guiné. Em “Ke ki mininu na tchora”, difundida na Rádio Libertação, são relatados os bombardeamentos sobre aldeias e zonas libertadas, por um avião de combate português retratado como um “pássaro grande” com “seus ovos de fogo”.

“São sobretudo os Cobiana Djazz que difundem essa nova ideologia para as cidades”, fazendo parte do imaginário da última fase antes da independência, afirma o sociólogo Miguel de Barros.

Aliu Bari, José Carlos Schwarz, assim como o seu amigo de infância e baixista Ducko Castro Fernandes, acabariam presos pela PIDE durante dois anos até o Estado Novo cair.

Ainda antes da independência, surgem o Super Mama Djombo, uma banda que começou por tocar em batizados e casamentos e que se tornou num dos maiores símbolos musicais da Guiné-Bissau.

Na sua formação original, encontram-se dois membros dos Cobiana Djazz, os guitarristas Miguelinho e Adriano Tundu, cuja integração foi articulada pelo líder do Super Mama Djombo, Adriano Gomes Ferreira “Atchutchi”, junto de Schwarz, conta à Lusa Ivan Barbosa, músico guineense de 41 anos e que assume a direção musical do grupo desde 2006.

A banda prosseguiu o trabalho de modernização da música guineense, valorizando os instrumentos tradicionais e ajudando também a propagar o crioulo como língua nacional, nota Miguel de Barros.

“Acaba por ter um papel na afirmação de uma identidade nacional. Eles cantaram e enalteceram essa soberania”, vinca, considerando que à volta das suas canções há toda uma “questão de autoestima, de orgulho, de pertença, de identidade”.

Para Ivan Barbosa, os Mama Djombo e os Cobiana Djazz serviram “de balão de oxigénio para alimentar aquilo que era a luta” – como que um símbolo de esperança.

No repertório, estava espelhada a riqueza de um país multiétnico, em que os ritmos e instrumentos tradicionais eram transpostos para a guitarra elétrica e para a bateria.

Ouviam-se estilos mandingas como o djambadon, em “Amélia Mané”, ou músicas de etnia balanta, como é o caso de “Pansau na Isna”, podendo ainda encontrar-se em “Guiné-Cabral” uma música que parece feita com base na kora (instrumento de cordas da África ocidental), “mesmo não tendo kora”, nota Ivan Barbosa.

Ainda hoje se sentem os ecos da música feita há 50 anos e das inovações e riqueza lírica de canções como “Midjeres di Panu Pretu”, dos Cobiana Djazz, ou “Dissan Na M’Bera”, de Super Mama Djombo.

“Nós, enquanto músicos, procuramos manter esse padrão da forma como eles tocavam o nosso gumbé, na altura da luta, e essa marca peculiar sente-se no ritmo, na percussão, mas também no dedilhar da guitarra”, diz Ivan Barbosa.

Miguel de Barros encontra ainda ecos dessas músicas no rap guineense que hoje assume a dianteira na canção de protesto.

Além do legado e de reapropriações, as músicas continuam a ser ouvidas.

“Aqui na Guiné, quando acontece algo que é complicado, que é negativo para o povo, abrem-se logo as rádios com as músicas dos Cobiana. Durante a guerra civil, não faltavam essas músicas e sentia-se aquele ar de tristeza, da morte a aproximar-se e isso também marcou a nossa geração”, recorda Ivan.

O artista também entende que a música destes conjunto celebrou, ao mesmo tempo, a própria diversidade da Guiné.

“É nessa diversidade que nos sentimos representados. Ouvimos a música e sentimo-nos fula, manjaca, ou balanta. Sentimos que é a Guiné. A música serviu e serve como cola”, diz.

JGA // MLL – Lusa/Fim

 

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