Reparti entre um punhado de amigos esta nota sobre Fernando Venâncio quando há dias nos deixou.
Acompanhei-o sobretudo na primeira fase da sua carreira académica, toda nos Países Baixos, onde ensinou até à aposentação, altura em que regressou ao seu Alentejo. Em tempos idos, fomos ambos assíduos colaboradores do Jornal de Letras e ficámos amigos, trocando muita correspondência e, nessa altura, faxes. No verão de 1993, arranjei-lhe uma casa à borla para ele e a família (a Catherine e duas filhas gémeas) passarem uma semana em S. Miguel e eu fui motorista e guia turístico do clã. Numa crónica para a revista LER sobre essa viagem, Venâncio escreveu que eu conduzia como um doido pela ilha o dia inteiro; esquecendo-se que fora porque eu só conseguira casa para eles nas Furnas e nós estávamos na Caloura. Sempre que era para eles virem almoçar ou jantar connosco, tinha de ir buscá-los e levá-los e naquele tempo a viagem demorava 3/4 de hora para cada lado (multipliquem por quatro). Mais ainda, eu tinha de tratar da minha família e ao mesmo tempo andar a mostrar-lhes a ilha. Mas enfim… Ele tinha de espalhar na crónica umas pitadas de humor.
Era um purista da língua e conhecia a nossa como poucos. Escreveu uma tese de doutoramento sobre a linguagem literária em Portugal no tempo de Castilho. Um dia, numa crónica eu perguntava- lhe a brincar se estava autorizado a escrever que se me tinha rasgado (e não partido) uma lente, pois tratava-se de uma novidade linguística provocada pela novidade tecnológica das lentes de contato.
Escreveu um belo livro que na altura recomendei numa nota – Assim Nasceu uma Língua: sobre as origens do português (2019), que ultrapassou já a meia-dúzia de edições. Vale bem a pena. Entre outras coisas, nele aprendi que a palavra obrigado com o sentido de agradecimento é recentíssima. Cito: Só por 1700 encontramos giros do tipo de «Fico-vos obrigado». Mas mesmo o grande Morais, de 1789, dá obrigado como mero particípio. Só a partir de 1830 se documenta obrigados de feição moderna. «Obrigado pelo elogio», diz uma personagem de Garrett. «Muito obrigado pela agradável surpresa», escreve o próprio numa carta. Os testemunhos brasileiros são ainda mais tardios.
Li esta manhã uma crítica injusta pelo facto de ele ter sido contra o Acordo Ortográfico. Tinha as suas razões e por sinal muito boas. O meu amigo Daniel de Sá, meu patrício micaelense, também era contra e até tomou uma decisão original que conciliava a sua oposição ao acordo com o seu dever de cidadão de aceitar a decisão governamental de aprová-lo: o Daniel deixou de usar todas as palavras cuja ortografia fora alterada pelo novo AO.
Mas esta nota é sobre o Fernando Venâncio e o apreço que sempre tive pela limpidez da sua escrita e dos seus argumentos em defesa da língua, ainda que por vezes o fizesse de modo um pouco impertinente. Por exemplo, não largou a perna a Saramago apontando-lhe inúmeros espanholismos. Na defesa do vernáculo, havia no Venâncio uma tendência purista. Mas a sua escrita era sempre elegante. E como isso se lhe ressalta na ficção! Um dos seus romances merecia ter recebido um prémio da APE: El-Rei no Porto (2001). Para além da beleza da linguagem, nunca vi uma análise tão brilhante das diferenças entre o Porto e Lisboa. Tudo enredado em torno de uma história de futebol que deveria ter feito desse livro um clássico da nossa cultura.
Estilista exímio, amava a língua portuguesa como poucos e conhecia-lhe os segredos. Seu escudeiro, defendia-a como se sua dama fosse, esgrimindo agerridamente contra os agressores, incautos ou simplemente incultos. Ler as suas páginas, mesmo ao acaso, é ler um clássico que, em vez de soar a antigo resplende como moderno. Porque ele nunca foi contra uma identidade fixa da língua – acusação de alguns. Simplesmente queria que a língua se abrisse e modernizasse sem se abastardar. Caso para lhe dizer: OBRIGADO, Fernando Venâncio!
Providence, Rhode Island
Onésimo Teotónio Almeida
Onésimo Teotónio Almeida
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