Eduardo Lourenço – Uma Visão de Portugal

Escritor Eduardo Lourenço durante o colóquio "ficção e realidade" realizado na câmara municipal da Guarda. FRANCISCO BARBEIRA / LUSA

Em 1949, Eduardo Lourenço (EL), em Heterodoxia I, seu primeiro livro, tem uma frase absolutamente demolidora do então estado da culturva portuguesa: “o mundo da cultura portuguesa arrasta há quatro séculos uma existência crepuscular”. Assim, o caudal de conhecimentos que tínhamos erguido com a empresa dos Descobrimentos “perdeu tudo o que tinha de vivo e prometedor, para conservar apenas o comentarismo ruminante estéril”. Porém, e paradoxalmente, a cultura portuguesa dos últimos 300 anos fora edificada por todos aqueles que, em contacto com as manifestações culturais superiores da Europa (o Liberalismo; o Positivismo e o Socialismo de Antrero), tinham criado uma obra pessoal conflituadora com a mentalidade dominante do Estado, da Igreja e do Ensino. Este raciocínio do jovem EL muito devia à lição de António Sérgio. O que já não acontece trinta anos depois, quando publica O Labirinto da Saudade, em 1978, livro crítico de Sérgio.

Em O Labirinto da Saudade, EL faz publicar o seu artigo de 1969, em O Tempo e o Modo, “Sérgio como mito cultural”, que evidencia filosoficamente a intrínseca constitutividade débil da razão. Com este artigo, o iluminismo pombalino, o positivismo republicano e o racionalismo forte da primeira metade do século XX, que, com Sérgio tinha elevado a razão a fortaleza epistenológica da Verdade, soçobravam às mãos de uma concepção perspectivística e instrumental de razão e de verdade: é o relativismo ético da democracia a anunciar-se. É com EL que, em Portugal, a Razão, acossada pelos estudos epistemológicos, psicanalíticos e linguísticos, perde o privilégio de um superior instrumento de conhecimento. A partir deste artigo, os estudos sobre a razão em Portugal desenvolverão uma teoria fraca ou fragilizada de razão: Fernando Gil, Manuel Maria Carrilho, Boaventura de Sousa Santos, José Gil, José Mattoso,Viriato Soromenho-Marques, António Damásio.

Bastaria aquele capítulo de O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português para tornar este um livro admirável, vocacionado para ser acolhido na história do pensamento em Portugal. Porém, então, como hoje, todas as atenções se centraram no capítulo que dá nome ao livro. Foi como se, nele, os portugueses se vissem despido, sem a envoltura dos ouropéis ideológicos, mirando-se frágeis, menores e diminuídos ao espelho de si próprio e da Europa. É um dos pouco livros publicados no último quartel do século XX que ficará na história da cultura portuguesa. 

Segundo EL, temos historicamente caminhado num espaço conflitual entre o modo como somos e o modo como nos imaginamos ser. Existe, portanto, na mente de cada português, uma desproporção, uma clivagem, melhor, um duplo estado de espírito em que cada um sente o que ontologicamente é (pequeno país, pobre e carenciado país, recursos limitados, baixa qualidade de vida, forte ruralismo tradicional, incipiente indústria, frágil organização financeira nacional, hábitos passadistas, tecnologia nacional infíma) e o que imageticamente lhe é dado ver através da leitura da história pátria (o mito dos Descobrimentos, a aventura da Expansão Ultramarina, o sonho do Quinto Império, o desejo do progresso antevisto na Europa iluminista e positivista, a quimera de um Estado imperial uno, do Minho a Timor, e do seu contraponto socialista-comunista, o Estado solidário e igualitário dos trabalhadores salvadores do mundo). É a esta dupla consciência que tem animado a maioria dos portugueses, sintetizada na diferença imaginária, em cada época histórica, entre a realidade e a ficção, que E. L. designa por “o irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses fazem de si mesmos”. Este “irrealismo”, esta “forma mentis” de ser português, condição histórica permanente de Portugal, tanto tem arrastado Portugal para o maior dos miserabilismos culturais (o espírito decadentista entre os séculos XVII e XX) como para a crença de que somos por condição e destino um povo eleito, por vezes adormecido, mas sempre virtualmente preparado para lançar as “novas naus” da civilização. Esta “forma mentis” portuguesa, é designada por EL como de tipo “traumático”, ao modo psicanalítico, querendo com isso dizer que algo na nossa cultura nacional sofreu de fortíssimas perturbações civilizacionais que lhe recalcaram a possibilidade de uma vivência integrada na normalização média da existência europeia. Ser sempre mais ou menos, tudo ou nada, superior ou inferior, vanguarda ou proscrito, princípe ou gáfaro, não é, sejam quais forem os padrões epocais de estandartização dos comportamentos, um modo habitual de vida. 

  1. Lourenço tenta sintetizar genealogicamente a origem histórica desta particular maneira de ser português erguendo três momentos-chave por que a nossa consciência se feriu ou se imaginou ferida. A nossa personalidade cultural desloca-se não especificamente em função destes três “traumatismos”, mas mais em função das suas consequências no modo social de vivermos e, especialmente, no modo como imaginamos as causas do nosso viver. Trata-se de fundamentar não a realidade histórica tout court, mas de compreendê-la na mediação imagética (a “imagologia”) pela qual os protagonistas da nação interiorizam culturalmente o passado e as exigências do presente, isto é, se auto-conhecem (a “auto-gnose” eduardina). Deste auto-conhecimento nasce um conjunto de imagens históricas epocais, umas gloriosas, outras trágicas, registadas na historiografia portuguesa, as quais, por sua vez, cruzadas e organizadas, constituem a imagologia que define a análise cultural propriamente dito de E. L. O primeiro traumatismo da história de Portugal relaciona-se directamente com o espírito de cruzada por que o Condado Portucalense nasceu, espírito aventureiro, simultaneamente santo e guerreiro, mártir e heróico: “O nosso surgimento como Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levantámos até à plena assumpção da maturidade histórica prometida pelos céus e pelos séculos a esse rebento incrivelmente frágil [Portugal] para ter podido aparecer, e misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os mitos historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão feudiano com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa, Egas Moniz…)”. O acto de nascimento de Portugal “apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável, do incrível e do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do providencial” (é a lição de Oliveira Martins). Assim, a “conjunção de um complexo de inferioridade e de superioridade” cumpre “uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade”. Como se lê, esta “intrínseca fragilidade” tem sido compensada pelo “irrealismo prodigioso” por que nos vemos a nós próprios como seres dotados de uma missão histórica providencial.. A verdade é que, mesmo na “hora solar da nossa afirmação histórica, essa grandeza era, concretamente, uma ficção”: “Da nossa intrínseca e gloriosa ficção os Lusíadas são a ficção. Da nossa sonâmbula e trágica grandeza de um dia de cinquenta anos, ferida e corroída pela morte próxima, o poema é o eco sumptuoso e triste. Já se viu um poema ‘épico’ assim tão triste, tão heroicamente triste ou tristemente heróico, simultaneamente sinfonia e ‘requiem’?”. Desta magnificiência ilusória, incapazes de controlar tão vasto império, enredados na política de europeia de expansão, acordámos sentindo-nos “às avessas”, experimentando “na carne que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas que o primeiro”: “Nesses sessenta anos (de perda da independância) o nosso ser profundo mudou de sinal”. De povo excelso passámos a povo subalterno, inferior, desprezado politicamente pela restante Europa: “Tornou-se então claro que a consciência nacional (…), que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova de fogo. O viver nacional (…) orienta-se nessa época para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva do passado” – nasce o sebastianismo, nasce o Quinto Império de pe. António Vieira, como liquidação “no imaginário e em termos magníficos (d)o segundo traumatismo, numa barroca inversão que vale bem outras futuras. Esta imagem invertida da nossa real situação histórica acompanhar-nos-á sempre até ao século XX, servindo de suporte imagológico para a política de Pombal e para a “Viradeira” subsequente; para a emergência do liberalismo e consequente guerra civil;  para a modernização impetuosa do Fontismo e das Conferências do Casino e consequente melancolia nacional com o Ultimatum; para a salvação social prometida pela República e consequente derrocada com a subida ao poder do Estado Novo de Salazar. Ou seja, “cada período de forçado dinamismo tem sido seguido sempre do que, em linguagem freudiana, se chamaria o regresso do recalcado”. O saudosismo de Teixeira de Pascoais, o Integralismo Lusitano de António Sardinha,   Filosofiam Portuguesa e o Nacionalismo do Estado Novo, assumem-se, no século XX, como expressões imagológicas do ser profundo de Portugal enquanto país intrinsecamente fragilizado pela sua actual impotência económica e política, mas também como sucedâneos actuais do messianismo sebastianista do século XVII. Contra-imagem verdadeira é marcada pelo surrealismo, “que soube encontrar os gestos, as imagens, picturais ou poéticas, menos lusitanistas no sentido tradicional do termo”. Porém, diferentemente de outros autores, como A.  Sérgio, que viam no salazarismo uma doutrina espúria à consciência nacional, reflexo prolongado de uma moda política europeia, EL declara que “Não se percebeu nada do espírito do antigo regime [Estado Novo] e do seu êxito histórico quando não se vê até que ponto ele foi a mais grandiosa e sistemática exploração do fervor nacionalista de um povo que precisa dele como de pão para a boca em virtude da distância objectiva que separa a sua mitologia de antiga nação gloriosa da sua (actual, nosso) diminuída realidade presente “. É justamente esta contradição entre passado glorioso e “diminuída realidade presente” que levará à persistência de treze anos de guerra colonial, defendendo um sonho passado já sem expressão concreta presente senão no campo do imaginário (“Portugal Uno do Minho a Timor”), e que conduzirá ao 3º “traumatismo profundo – análogo ao da perda da independência” e a “um repensamento em profundidade da totalidade da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo”, isto é, à perda do Império em 1975. Ainda sob o efeito desta amputação do corpo-uno da imagem que sobre nós mesmos fazíamos, terá sido o projecto político de integração na Europa comunitária, a que aderimos em 1980, compensando a ferida da “descolonização”, que permitiu a ultrapassagem incicatrizada desta ferida simbólica que, “em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis”. 

Estava detectada as causas da “ferida traumática” da cultura portuguesa.

Miguel Real

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Miguel Real

Miguel Real, investigador do CLEPUL - Centro de Literaturas e Culturas Europeias e Lusófonas da Universidade de Lisboa, publicou os romances Memórias de Branca Dias (2003), A Voz da Terra (2005), O Último Negreiro (2006), O Último Minuto na Vida de S. (2007), O Sal da Terra (2008), A Ministra (2009), As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia (2010), A Guerra dos Mascates (2011), O Feitiço da Índia (2012), A Cidade do Fim (2014), O Último Europeu (2015), O Deputado da Nação (em co-autoria com Manuel da Silva Ramos – 2016), Cadáveres às Costas (2018), e (em co-autoria com Filomena Oliveira) as peças de teatro Uma Família Portuguesa e Europa, Europa! (2016), e os ensaios Narração, Maravilhoso, Trágico e Sagrado em “Memorial do Convento” de José Saramago (1998), O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa (2005), O Último Eça (2006), Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa (2007), Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (2008) e Padre António Vieira e a Cultura Portuguesa (2008), A Morte de Portugal (2007), Matias Aires. As Máscaras da Vaidade (2008), José Enes. Filosofia, Açores e Poesia (2009), Introdução à Cultura Portuguesa (2011), O Pensamento Português Contemporâneo. 1890 – 2010 (2011), Nova Teoria do Mal (2012), Romance Português Contemporâneo. 1950 – 2010 (2012), Nova Teoria da Felicidade (2013), Comentário a "Mensagem" de F. Pessoa (2013), Nova Teoria do Sebastianismo (2014), O Futuro da Religião (2014), Manifesto em Defesa de uma Morte Livre (2015), Portugal – Um País Parado no Meio do Caminho. 2000 – 2015 (2015), O Teatro na Cultura Portuguesa do Século XX (2016), Nova Teoria do Pecado (2017), Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (2017) e Fátima e a Cultura Portuguesa (2018). Recebeu o Prémio Revelação Ficção da As. Port. de Escritores; Prémio revelação de Ensaio da As. Port. de Escritores; Prémio Fernando Namora de Literatura; Prémio Ficção Ler/Círculo de Leitores; Prémio Ficção da Sociedade Portuguesa de Autores, Prémio Jacinto do Prado Coelho da Associação Portuguesa de Críticos Literários e, em conjunto com Filomena Oliveira, o Grande Prémio de Teatro do Teatro Aberto e SPA.
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