Clara Pinto Correia – Adeus, princesa

Sobre a Clara Pinto Correia, falecida aos 65 anos, tudo já tem sido dito.

Nesta nota, apenas importará contar algo de pessoal que possa ter algum interesse para os meus leitores. O tempo disponível, porém, não me permite alongamentos.

Conhecia a escrita da Clara, mas creio que só a vi pela primeira vez num daqueles pródigos lançamentos do Círculo de Leitores em que todos os presentes levavam de brinde um exemplar da obra. E não eram propriamente livros, mas volumosos e vistosos calhamaços ilustrados. Foi na segunda metade dos anos 80, num claustro do Mosteiro dos Jerónimos, aonde fui na companhia de Vergílio Ferreira. De repente, quando o espaço abarrotava de gente da cultura, entrou um espampanante casal: a Clara e o António Mega Ferreira, conscientes de que toda a gente se fixava naquele novo mediático namoro. Era óbvio que entravam em cena esperando uma chuva de atenções. Saviam que estavam a épater.

Essa marca da Clara nunca a deixou. Tinha, contudo, razões de sobra para isso por ser uma beleza de mulher, vivaça, com inteligência a saltar-lhe dos olhos e do sorriso. 

Cruzámo-nos algumas vezes na redação do Jornal de Letras. Foi, porém, nos EUA que a conheci mais de perto. Descobriu cedo a Internet e criou, na segunda metade da década de 90, suponho que a primeira rede social entre portugueses – a PT Net (julgo que era assim que se intitulava), sobretudo universitários naquele país, a grande maioria em programas de doutoramento, à semelhança de outras que já abundavam no meio americano. Insistiu para eu participar. Inscrevi-me, todavia fui sempre mais leitor do que interveniente. Tinha as minhas razões e reservas. A iniciativa teve o mérito de criar diálogos animados entre pessoas desconhecidas entre si, que sentiram necessidade de se encontrar pessoalmente. Daí terem organizado uma festa em Cambridge, Massachusetts, na qual a Clara era a abelha-mestra. Também lá estive.

Um dia, em 1992, pedi-lhe que fizesse a apresentação do livro Ilha em Terra, de João Teixeira de Medeiros, o poeta que eu descobrira e de quem coordenara e publicara o livro Do Tempo e de Mim em 1982. Agora era uma segunda coletânea de poemas do saudoso amigo. Ela fez um brilharete de improviso. Infelizmente, nunca passou à escrita essa intervenção, apesar dos meus insistentes pedidos.

Gostei particularmente do seu romance Adeus, Princesa e sugeri à minha mulher que o lesse, pois talvez o achasse bom para ser incluído nas leituras do curso de Literatura Portuguesa sobre Portugal Pós-25 de Abril por ela lecionado. A Leonor leu-o e passou a incluí-lo. Numa das vezes que deu esse curso, a Clara foi até à Brown para falar com os alunos sobre o romance.

Os nossos encontros foram sempre casuais porque, muito embora admirasse a sua escrita (ficção e ensaio – sim, O Ovário de Eva é também uma obra notável!) e me rendesse ao seu rasgo de comunicadora, nunca senti que se encaixaria no meu estilo de amigos próximos.  Saltarei por cima das razões, pois não é este o momento para falar disso. 

A última vez que nos cruzámos foi em fevereiro deste ano nas Correntes d’Escritas. Estava eu com a Leonor e mais uns amigos; ela aproximou-se e perguntou-me com estranheza: Não me reconheces? Sou a Clara! Não, nem eu nem ninguém ali a reconheceu; confirmaram-me depois. A volta que deu à sua vida há década e meia (creio eu) marcaram-lhe o corpo. Mas não o espírito porque, quando interveio na mesa em que a colocaram, ela manteve o auditório suspenso na sua voz, essa facilmente reconhecível no brilho sagaz de sempre.

A Clara Pinto Correia deixou uma obra única e teve uma primeira fase de vida fulgurante. Deixou marca e influenciou sobretudo muitos jovens. Razões de sobejo para ser lembrada com admiração e respeito.

Foto: Facebook

Onésimo Teotónio Almeida

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Onésimo Teotónio Almeida

Onésimo Teotónio Pereira de Almeida - Natural de S. Miguel, Açores, é doutorado em Filosofia pela Brown University em Providence, Rhode Island (EUA). Professor Emérito dessa mesma universidade, foi Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, bem como no Center for the Study of the Early Modern World e no Wayland Collegium for Liberal Learning. Autor de dezenas de livros. Alguns dos mais recentes: Despenteando Parágrafos, A Obsessão da Portugalidade, O Século dos Prodígios. A ciência no Portugal da expansão e Diálogos Lusitanos , na área do ensaio. Em escrita criativa: Livro-me do Desassossego, Aventuras de um Nabogador e Quando os Bobos Uivam. Co-dirige as revistas Gávea-Brown e Pessoa Plural, bem como quatro séries de livros sobre temática lusófona em várias editoras. É membro da Academia da Marinha, da Academia das Ciências e doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro e Universidade Lusófona. A Brown Universitiu concedeu-lhe uma cátedra de mérito, a Royce Family Professorship in Teching Excellence.
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