Timor-Leste: Massacre de Santa Cruz, 30 anos depois

No dia 12 de novembro de 1991 um acontecimento trágico, conhecido como o Massacre de Santa Cruz, mudaria drasticamente o rumo da luta do povo timorense pela sua independência, mostrando ao mundo a justeza da sua pretensão e o ambiente de opressão e violação dos direitos humanos que o ocupante ali impusera desde os primeiros minutos da invasão em 1975. Para aqueles que nasceram já depois desses acontecimentos, por exemplo a maioria dos atuais estudantes universitários, vale a pena começar por dizer que Timor era nessa altura uma província portuguesa do Ultramar à qual, depois do 25 de abril, se decidiu conceder a independência, feita de forma atabalhoada, gerando uma guerra civil fratricida e a invasão da Indonésia, que ali ficou ilegalmente até ao referendo de 1999, realizado sob a égide da ONU.

Uns dias antes desse dia 12, um grupo de jovens timorenses independentistas, que preparava manifestações para uma visita a Timor de uma delegação parlamentar portuguesa (DPP)  – que vinha sendo negociada entre Portugal e a Indonésia, mas que acabou cancelada por divergências sobre a composição da comitiva portuguesa, que integrava jornalistas persona non grata do regime indonésio, como Rui Araújo e Jill Jollife – refugiou-se na residência do pároco da Igreja de Santo António de Motael (bairro de Díli, em frente da baía), com medo das perseguições que se adivinhavam.

Algum tempo atrás, um desses jovens, tinha acompanhado o Bispo Ximenes Belo, a seu pedido, em viagens ao interior. Era aluno do secundário, mas faltava muito às aulas, justificando-se a D. Carlos que mais valia “perder o exame do que perder a independência”. Numa dessas viagens, a Maliana, conta o Bispo, «nas curvas da estrada de Hatolia, ao divisar, ao longe, as montanhas de Lahurus, no então Timor indonésio, dizia, cheio de orgulho: ‘Amo [termo muito usado no tétum para tratar clero], qualquer dia, aquelas montanhas serão nossas!’»

Sebastião Gomes estava longe de imaginar que teria um papel tão determinante na luta pela independência, pois daí a pouco tempo, na madrugada de 28 de outubro, elementos dos serviços secretos indonésios e timorenses pró-Indonésia invadiriam com violência os espaços da igreja de Santo António de Motael, resultando, do confronto, a sua morte e a de outro jovem timorense, este favorável à integração.

Estas iniciativas da frente clandestina, de ligação dos guerrilheiros (frente armada) à diáspora timorense (frente diplomática) e à comunidade internacional, mas também de mobilização das comunidades, tinham ganho muito relevo. Era crescente a capacidade de atuação em ligação com o líder da Resistência, Xanana Gusmão, procurando aproveitar a excelente oportunidade da visita da DPP para mostrar ao mundo, sem equívocos, que a sua identidade cultural era distinta da indonésia, e que ela e o desejo de independência não eram uma coisa de velhos, educados no tempo português, agora guerrilheiros nas montanhas, mas algo herdado pelos mais novos, algo que fervilhava no sangue que estavam dispostos a verter.

Uma mudança profunda que muito contribuíra para a unificação dos timorenses tinha ocorrido em dezembro de 1988, quando o comandante e líder histórico Xanana Gusmão decidira despartidarizar a luta pela independência e criar o CNRM (Conselho Nacional da Resistência Maubere). Consequentemente, em 1990, realizou-se uma reunião extraordinária do Comando Superior da Luta, em Aitana, para reestruturação do CNRM, que, nomeadamente, formalizou a saída de Xanana da FRETILIN e criou o Comité Executivo da Frente Clandestina, para organizar e dar coerência à atuação dos diversos grupos clandestinos existentes. Constâncio Pinto, professor do Externato de São José, em Balide (Díli) – única escola que persistiu contra as proibições indonésias no ensino em língua portuguesa, de que já falei noutro artigo (Salvar a língua portuguesa e a identidade distintiva), e que foi determinante na luta pela independência –, avançou para a materialização desse Comité sob a alçada do CNRM. Numa certa noite de julho de 1990, líderes dos diversos grupos clandestinos reuniram no Externato S. José para o criar e eleger a sua liderança. Foi eleito Secretário do Movimento Constâncio Pinto, tendo sido escolhidos José Manuel Fernandes (“Makfilak”), como Primeiro Vice-Secretário, e Donaciano Gomes (“Buras”), como Segundo Vice-Secretário, ambos estudantes do Externato, também conhecido como “escola portuguesa”, por defender a língua e a cultura resultante de séculos de convívio, marcas distintivas de uma identidade singular, não indonésia.

Por mais de um ano, a visita da delegação parlamentar, finalmente agendada para 4 de novembro, fez parte das orações diárias do povo timorense e das, vista como uma oportunidade única de mostrar ao mundo o seu desejo de liberdade. Os jovens tinham trabalhado muito para que aquela visita fosse o momento de viragem na luta pela independência. Todos saudariam efusivamente os portugueses, exigindo o seu regresso para concretizar a descolonização interrompida pela invasão. À medida que a data se aproximava, o clima ficou muito tenso, com os militares indonésios a ir de casa em casa dizer às pessoas como se deviam comportar e a lançar uma campanha de intimidação, ameaçando de morte aqueles que se atrevessem a prejudicar a imagem da Indonésia. Segundo Constâncio Pinto, chegaram mesmo a abrir valas comuns em várias localidades para deixar no ar um aviso claro.

No final de outubro, fortalecidos pelo cancelamento da visita da DPP, os militares indonésios propagandearam o desinteresse dos portugueses e intensificaram a repressão, que culminou com o ataque à Igreja de Motael, onde sabiam estar reunido um grupo da clandestina, matando Sebastião e prendendo mais 25. O tapete que parecia poder levar à porta da liberdade tinha-lhes subitamente sido tirado de baixo dos pés, mas era preciso reagir, não podiam desistir. Tendo sabido da chegada a Díli, em 11 de novembro, do Relator Especial das Nações Unidas sobre a Tortura, Pieter Koojimans, decidiram avançar para uma marcha pacífica até ao Cemitério de Santa Cruz, onde estava sepultado Sebastião, depois da missa de 14.º dia na mesma igreja onde havia sido assassinado, para depois se manifestarem com força em frente do Hotel Turismo em Díli, onde se alojava o alto dignitário da ONU.

Uma vez que havia jornalistas estrangeiros em Timor, como o inglês Max Stahl ou os americanos Allan Nairn e Amy Goodman, que tinham vindo para preparar a visita da DPP, pareceu aos jovens ser o momento ideal para exibir tarjas a enaltecer Xanana, a mostrar a força da luta e a exigir um referendo. Nunca pensaram ser possível que a Indonésia, sob o olhar de testemunhas, atacasse os manifestantes. Porém, quando estes chegaram ao cemitério, já os aguardavam muitos soldados indonésios de arma em punho. Os jovens não se amedrontaram e gritavam “Viva Xanana”, “Viva Timor-Leste independente”, exibindo as tarjas de protesto. Sem aviso, os militares começaram a disparar sobre aqueles jovens indefesos. Morreram mais de 200. Muitos foram capturados, torturados posteriormente, alguns dos quais mortos no hospital militar, primeiro com pedras e depois com drogas químicas. De muitos outros nunca se soube o paradeiro, para desgraça das suas famílias.

Nada disto teria tido um papel tão decisivo se não fossem as imagens captadas no local pelo jornalista inglês Christopher Wenner (conhecido como Max Stahl*) e gravadas numa cassete que este, perspicaz e rápido, teve a sagacidade de esconder numa campa, inserindo outra na máquina, para voltar a filmar, que foi, naturalmente, aprisionada pelos militares. Depois de tudo, Max teria a coragem para regressar à noite ao cemitério, recolher as imagens e procurar ajuda para as enviar para o exterior de Timor. A sua divulgação, alguns dias depois nas cadeias de televisão um pouco por todo o lado, mostraria ao mundo a impiedosa atitude indonésia e despertaria a opinião pública internacional para a justiça da causa timorense.

No mundo de língua portuguesa, à força das imagens juntaram-se, em som de fundo, as orações em língua portuguesa que se ouviam da boca dos jovens ensanguentados que se haviam refugiado na pequena capela do cemitério. Foram muitos os que sentiram, em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, na Guiné-Bissau, em Moçambique ou em São Tomé e Príncipe, mas também nas diásporas da lusofonia, o apelo desesperado daqueles seus irmãos, longe da vista, mas perto do coração (como tanto se diz em Timor).

A partir das imagens do Massacre a mobilização externa não mais descansaria. A justiça a favor do sofrido e resistente povo irmão de Timor-Leste estava finalmente a caminho.

 

* Quero dedicar este artigo ao povo timorense e ao grande jornalista Max Stahl, um homem bom, um homem maior, que tive a honra de conhecer e que, infelizmente, nos deixou, vítima de doença prolongada, coincidentemente, no passado dia 28 de outubro, 30 anos depois de Sebastião Gomes. Obrigado Max.

 

Ângelo Ferreira

Coluna com publicação nos jornais Diário de Aveiro, Timor Post, Mundo Português, Diário dos Açores, LusoPresse (Canadá) e Portuguese Times (EUA).

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