Quando Machado encontrou Clarice

Narrativa imagética
©️ Alberto Araújo


Era uma tarde cinzenta no Rio de Janeiro. O tempo parecia suspenso, como se o próprio relógio da cidade tivesse decidido fazer uma pausa. No Café do Largo, entre o tilintar de xícaras e o murmúrio das conversas, dois vultos se destacavam: Machado de Assis, com seu olhar perscrutador e bengala elegante, e Clarice Lispector, envolta em um silêncio que dizia mais do que palavras.

O encontro, impossível aos olhos da cronologia, era perfeitamente natural aos olhos da literatura. Machado, mestre da ironia e da dissecação social, observava Clarice com curiosidade. Ela, por sua vez, parecia mais interessada no movimento das sombras do que nas palavras do interlocutor. Ainda assim, havia entre eles uma ponte invisível: o fascínio pela complexidade humana.

— A senhora escreve como quem escava o próprio espírito — disse Machado, com um sorriso contido. — E o senhor escreve como quem observa o espírito dos outros — respondeu Clarice, sem desviar os olhos da xícara.

O diálogo entre os dois não era feito de frases longas. Era feito de pausas, de olhares, de silêncios que se estendiam como capítulos não escritos. Falavam da morte como quem fala de um vizinho antigo. Falavam do amor como quem descreve um perfume que já evaporou. Falavam do tempo como quem tenta segurar água com as mãos.

Machado citou Brás Cubas. Clarice respondeu com G.H. Ambos sabiam que seus personagens não eram apenas ficções, mas espelhos quebrados da alma brasileira. E ali, naquele café, entre o passado e o futuro, entre o real e o imaginado, os dois escritores se reconheceram: não como iguais, mas como cúmplices de uma missão impossível — entender o ser humano.

Ao final, Machado levantou-se com dificuldade. Clarice permaneceu sentada, olhando o vazio com intensidade. Ele se despediu com um aceno discreto. Ela respondeu com um silêncio profundo. O garçom, que não sabia quem eram, anotou no caderno: “Mesa 7 — dois cafés, nenhum sorriso.”

MACHADO E CLARICE DIANTE DO ENIGMA HUMANO

A cena imaginada não é apenas um exercício literário: é também uma metáfora para duas formas distintas de compreender a condição humana. Machado de Assis parte do exterior: observa a sociedade, suas máscaras, suas convenções, e revela, por meio da ironia, a fragilidade das certezas humanas. Clarice Lispector, ao contrário, parte do interior: mergulha na consciência, no instante, no indizível.

Um diálogo entre os dois, portanto, seria um confronto entre a ironia e o silêncio, entre a análise social e a introspecção existencial. Machado poderia perguntar: “Que papel desempenha o indivíduo diante das engrenagens sociais?” Clarice responderia: “Que papel desempenha a sociedade diante do abismo interior de cada indivíduo?”
Ambos, no entanto, convergem em um ponto: a recusa da superficialidade. Machado desmonta as ilusões sociais; Clarice desmonta as ilusões do eu. Se o primeiro revela que a vida é feita de aparências frágeis, a segunda mostra que, por trás da aparência, há um vazio igualmente inquietante.

Assim, imaginar Machado e Clarice em um café é mais do que fantasia: é um convite à reflexão. Entre a ironia e o silêncio, talvez resida a verdadeira condição humana.

©️ Alberto Araújo

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