José Blanco, 91 – mais um amigo que parte

Caros amigos,
Mais um amigo acaba de partir.
Conheci José Blanco, Administrador da Gulbenkian e diretor do Serviço Internacional, mas também do pelouro da Música, ainda nos anos 70. Recebi uma carta dele e castigar-me por estar a manifestar-me publicamente contra as teses do Dr. Manuel Luciano da Silva, o louco “amante” da Pedra de Dighton e defensor da teoria de os portugueses terem descoberto a América.
Respondi-lhe, seca mas delicadamente, que se ele tivesse conhecimento a sério das balelas do historiador-de-algibeira, do seu comportamento incivilizado e das suas invetivas ditatoriais contra quem dele discordava, não escreveria a carta que me escreveu.
Creio que a minha resposta deve ter servido de bom cartão de visita. Numa vinda aos EUA, procurou-me e iniciámos uma longa relação de colaboração que redundou numa longa e gostosa amizade.
Apoiou vários projetos da Brown, desde o primeiro colóquio internacional sobre Fernando Pessoa, em 1977, e outro, em 1981, sobre José Rodrigues Miguéis. Apoiou a edição do primeiro livro publicado pela editora Gávea-Brown, que fundei em 1980, uma antologia de poemas de Pessoa traduzida por George Monteiro. Apoiou a edição do volume de Richard Beale Davis com a  correspondência do Abade Corrêa da Serra e outros founding fathers da República Americana, e foi o grande impulsionador em Portugal da minha ideia de criar a cátedra Vasco da Gama, na Brown, que acabou sendo possível graças ao apoio de cinco fundações e instituições, com a Gulbenkian a liderar o pelotão.
Mas à margem de todos estes apoios profissionais (nunca lhe pedi um centavo para mim) encontrávamo-nos regularmente nas minhas idas a Lisboa. Convidava-me sempre a almoçar na sala de jantar privada da Gulbenkian e aí conversávamos imenso sobre tudo, caindo regularmente em temas como os Estudos Portugueses no estrangeiro e, infalivelmente, sobre  a obra de Fernando Pessoa, seu cresente interesse que redundou em verdadeira paixão.
Não me vou pôr aqui a deslindar esse relacionamento que foi inteletual, social e também de genuína amizade.
Ouvi-lhe muitas histórias e temos também muitas em conjunto. Ficam aqui apenas umas poucas:
1. Foi responsável pela reescrita do livro Portugal e o Futuro, do General Spínola, quando era ajudante de campo dele na Guiné. Aliás, o título do livro é dele.
2. Na aposentação, usou os seus contatos internacionais para obter apoio estrangeiro para a restauração de monumento nacionais, um deles o Mosteiro dos Jerónimos.
3. Foi ele o responsável pela vinda de José Martins Garcia como leitor para a Brown, em 1979. A ideia surgiu numa conversa comigo quando o Martins Garcia tinha saído da Universidade de Lisboa em guerra com os Prado Coelho, pai e filho.
4. Quando Rebecca Catz, desanimada por não conseguir editora para a sua tradução para inglês da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, um trabalho que lhe demorara 15 anos, me entregou o manuscrito para eu o publicar na Gávea-Brown, achei que uma obra daquela envergadura merecia uma grande editora. Contatámos a University of Chicago Press, que respondeu que uma obra daquelas dimensões mas de interesse limitado só seria publicada se subsidiada. Perguntei quanto. 15 mil dólares. Liguei a José Blanco e tudo ficou resolvido. Uma calorosa recensão do famoso sinólogo Jonathan D. Spence, da Yale Univerity, na New York Review of Books produziu um rápido esgotamento da edição. Em pouco tempo saía uma segunda.
5. Quando em 2001 organizei na Brown um evento sobre a África lusófona cobrindo quatro facetas – história, ciências sociais, literatura e arte -, aventurei-me a uma exposição de Malangatana, o famoso pintor moçambicano. O orçamento era puxado: 80 mil dólares. Cheguei aos 70 mil e estanquei sem conseguir os últimos dez mil. Era uma sexta-feira e o prazo terminava. Ficaria a exposição gorada porque havia que tomar compromissos diversos e fazê-los atempadamente. Lembrei-me de ligar para José Blanco. Em Lisboa era noite e ele já estava em casa mas, mesmo ali, em minutos prometeu-me o apoio. A exposição constituiu um êxito.
6. Foi também ele que deu guarida a Eduardo Lourenço como Administrador da Gulbenkian quando Lourenço se aposentou da universidade de Nice, ficando com dificuldades económicas visto a reforma de um Maître-en-Conférences não lhe ser suficiente.
7. Foi José Blanco que, na mesma altura (1996), quando lhe referi as dificuldades económicas a mim reveladas pelo próprio Eduardo Lourenço (escrevera-me a oferecer os seus préstimos para qualquer eventual contribuito na Brown),  propus-lhe a vinda de Lourenço a dar um seminário que teria lugar ao fim-de-semana, de modo a poder ser aberto a professores das universidades vizinhas. E foi assim que Lourenço lecionou aqui no outono desse ano. A Brown contribuiu, mas o grosso da maquia veio da Gulbenkian.
Poderia continuar, pois a lista é longa. Terminarei com esta nota de humor:
8. Num dia de visita aqui, fomos comer lagosta a um restaurante em Bristol. Estava acompanhado da Margarida, sua mulher. Gostou tanto (a Leonor não se esquece do reparo dela: Isto não é lagosta; é lavagante! – eu não sabia e registei; aqui, é sempre lobster). Mas apreciaram tanto que, como partiam para Lisboa naquela noite, perguntei-lhes se queriam arriscar a levar consigo algumas vivas, pois elas sobrevivem 24 horas fora de água.
Aceitaram e levaram quatro.
No outro dia, José Blanco telefonou-me de Lisboa a rir. À chegada, de manhã cedo, puseram o saco com as lagostas no frigorífico e foram dormir. Quando a empregada chegou, ao abrir o frigorífico, ouviu barulho dentro do saco (as lagostas nunca param quietas) e deu um berro que os acordou.
Enfim, petites histoires. Um retrato dele mais ajeitado vai em anexo. Há uma década sugeri à Clara Riso, diretora da Casa Fernando Pessoa, que homenageasse José Blanco por ocasião da entrega da sua biblioteca pessoana à Casa. A ideia foi bem acolhida e fiquei de abrir o evento. Não me recordo a razão porque tive de cancelar a minha ida a Lisboa, mas enviei o meu texto para ser lido. Ela própria o leu. Posteriormente, preparei dele uma versão curta que saiu no Jornal de Letras. É essa versão que incluo em anexo.
Tenho montes de razões para homenagear José Blanco, mas acima de tudo queria agradecer-lhe as muitas, instrutivas e calorosas horas de convívio e a genuína amizade.
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Onésimo Teotónio Almeida

Onésimo Teotónio Pereira de Almeida - Natural de S. Miguel, Açores, é doutorado em Filosofia pela Brown University em Providence, Rhode Island (EUA). Professor Emérito dessa mesma universidade, foi Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, bem como no Center for the Study of the Early Modern World e no Wayland Collegium for Liberal Learning. Autor de dezenas de livros. Alguns dos mais recentes: Despenteando Parágrafos, A Obsessão da Portugalidade, O Século dos Prodígios. A ciência no Portugal da expansão e Diálogos Lusitanos , na área do ensaio. Em escrita criativa: Livro-me do Desassossego, Aventuras de um Nabogador e Quando os Bobos Uivam. Co-dirige as revistas Gávea-Brown e Pessoa Plural, bem como quatro séries de livros sobre temática lusófona em várias editoras. É membro da Academia da Marinha, da Academia das Ciências e doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro e Universidade Lusófona. A Brown Universitiu concedeu-lhe uma cátedra de mérito, a Royce Family Professorship in Teching Excellence.
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