O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM CONTEXTOS MULTILINGUES

Por: Filipe Zau*

Para além da escola, também existe a escola da vida, o que implica que “não há uma única forma de aprendizagem nem um único modelo de educação. A escola não é, evidentemente, o único lugar onde o acto educativo se pratica, nem o professor o único responsável pela prática de ensino. “Em casa, na rua, na igreja ou na escola, aprende-se e ensina-se para saber, para saber-fazer, para saber-ser e para saber-conviver.”[1]

Para além da multiculturalidade e do plurilinguismo existentes, as populações dos diferentes Estados africanos apresentam também diferentes níveis de competência linguística, quer as línguas tenham origem africana ou europeia; quer sejam ou não maternas; quer tenham o estatuto de língua oficial, língua franca ou língua de escolaridade.

Apesar da maioria dos países africanos de expressão inglesa, independentemente do número de línguas existentes, apresentar uma maior tendência para o uso de línguas africanas durante os primeiros anos de escolaridade, há também países de expressão francesa que as utilizam. Mas, tanto quanto se sabe, ainda nenhum país de língua oficial portuguesa faz uso, no ensino oficial, do seu património linguístico africano, como meio ou matéria de ensino.

  1. Níveis de abordagem educativa

De acordo com o sociólogo Hermano Carmo, podemos encarar as questões educativas a partir de três níveis de abordagem:

– Numa perspectiva macro-sociológica, a educação é concebida como uma questão económica e política;

– Numa perspectiva meso-sociológica, a educação é entendida como um problema organizacional; e

– Numa perspectiva micro-sociológica, a educação é entendida como um problema psico-social, uma vez que o processo educativo resulta de relações inter-pessoais, estabelecidas entre os diversos protagonistas envolvidos no processo.[2] O professor é apenas um desses protagonistas.

A nível micro-sociológico (ou da sala de aula), para o cumprimento dos objectivos educacionais e de instrução, o professor selecciona os conteúdos programáticos a serem inculcados pelos estudantes com o apoio de métodos e meios de ensino. Temporariamente, através da avaliação, analisa a eficiência da sua actividade com os alunos, sem perder de vista o diálogo pedagógico as relações professor/aluno e aluno/aluno, cuja maior ou menor descodificação da linguagem depende da maior ou menor competência linguística dos alunos (crianças, adolescentes e adultos) no idioma de escolaridade.

Em todas as línguas se aprende, é certo. Mas numa língua que não se domina convenientemente, dificilmente se comunica e se aprende.

  1. A falsa ideia de linguagem e de educação universais

Friedrich Scheleiermacher, um teólogo, filósofo e filólogo do século XVIII, na sua obra Hermenêutica (um ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação), dá-nos a conhecer que, a “arte de compreender” correctamente o discurso do Outro “está internamente conectada com a arte de falar e com a arte de pensar”.[3] Depreende-se, então, que há uma relação indissociável entre o pensamento e a linguagem e que também não há uma linguagem universal. Schleiermacher observava, assim, já naquela época, “a inexistência ou impossibilidade de uma linguagem universal.”[4] Entendia aquele filósofo e filólogo alemão, que ao pensar na “unificação do realismo com o idealismo” que dominava o seu tempo, se devia pensar juntos o universal e o particular, o ideal e o histórico.”[5]

Mas, tal como não existe uma linguagem universal, também não existe uma educação universal. As sociedades encontram-se estruturadas em função de códigos sociais e interagem em função dos seus membros a partir de costumes, princípios, regras, formas de ser, que podem, ou não, estar fixadas em leis escritas. Os professores funcionam de acordo com o tipo de educação que é pensado, criado e posto a funcionar. Não para uma espécie de “educação universal” que, segundo o sociólogo Emile Durkheim, “não pode nem deve existir”. Mas, sim, para cada sociedade real e histórica que, em determinado momento do seu desenvolvimento, cria e impõe o tipo de educação que necessita. [6]

  1. Razões para a introdução das línguas africanas no ensino

As principais razões para a introdução das línguas africanas no ensino, na opinião de Joseph Poth, especialista em Didáctica das línguas junto do Instituto Nacional de Educação da República Centro Africana, decorrem, essencialmente:

– Do elevado índice de reprovações que se verificam na escola primária, por falta da necessária competência linguística nas línguas de escolarização de origem europeia;

– Dos avanços alcançados pela linguística, no que se refere aos sistemas de funcionamento das línguas, o que, no plano teórico, acabou por ultrapassar dificuldades consideradas, até bem pouco tempo, insuperáveis;

– Dos progressos alcançados pela psicologia, que realçou a importância primordial da língua materna no desenvolvimento psicomotor, afectivo, moral e cognitivo da criança;

– Do imperativo de, pedagogicamente, organizar os programas do ensino e da formação, de acordo com a realidade cultural, linguística e humana de África.

O paradigma de aprendizagem em línguas africanas não levanta problemas relacionados com o discurso pedagógico. Este modelo de educação, criado para dar resposta às questões de diversidade cultural e linguística, falha ou apresenta sérias dificuldades na sua operacionalização, tal como já ocorreu em vários países africanos, se a Educação não for reconhecida como um sector de eleição. Se houver falta:

– de materiais didácticos adequados,

– de formação pedagógica apropriada e, principalmente, falta de vontade política, falta de apoio das populações e das diferentes elites existentes no país.[7]

Joseph Poth também nos informa, que a criança africana é marcada, desde o início da sua escolaridade, por uma situação de grave conflito:

“(…) na grande maioria dos casos, a criança africana é marcada desde o início da sua escolaridade por uma situação de conflito grave, na medida em que a língua materna, na qual até então se exprimiu e se afirmou, corre o risco de ser brutamente rejeitada. Esta língua, embora rica em valores profundos e em meios de expressão, passa a ter, aos olhos da criança, um valor social inferior ao da língua de importação, pelo simples facto de só esta última ser julgada digna de ser ensinada e estudada. O conflito linguístico degenera, facilmente, em conflito cultural porque o estudo exclusivo de uma língua supõe uma referência permanente a uma escala de valores extralinguísticos de ordem cultural e moral”.[8]

O estatuto de “parente pobre” atribuído à sua língua africana, em grande parte dos casos, sua língua materna, leva a criança a considerar pejorativo, tudo aquilo que se encontra ligado ao seu património cultural, nomeadamente, o seu próprio património linguístico.[9]

  1. Políticas linguísticas em África

Nos dias de hoje, a realidade face à utilização ou não das línguas africanas no ensino é-nos apresentada da seguinte forma:

– Monolinguismo de origem africana, política linguística endoglótica;

– Bilinguismo de origem afro-europeia, política linguística mixoglótica;

-. Monolinguismo de origem europeia, política linguística exoglótica.

As duas primeiras representam as situações prevalecentes nos sistemas escolares africanos, sendo o monolinguismo africano uma excepção.[10]

Passemos agora a observar os diferentes papéis representados pelas línguas de comunicação, como meios de ensino, na África Sub-sahariana, até 1990.

  1. Diferentes estatutos das línguas africanas

Tal como a grande maioria dos Estados africanos, a República Sul-Africana é constituída por uma sociedade multicultural e plurilingue. Mas, ao contrário de muitos outros Estados, passou a consagrar este facto na sua própria Constituição e a estar comprometida com estes dois princípios em todos os domínios da sua vida pública, apesar das experiencias bilingues já existentes na instrução primária, desde o tempo do apartheid.[11] Nas chamadas escolas negras, a língua materna era usada durante os primeiros quatro anos de escolaridade em cooperação com mais uma das duas línguas oficiais da altura: o Inglês e o Africkaans.

Deste modo, procurou superar os possíveis problemas relacionados com o uso da língua, como são os casos de: conflito étnico; restrições, por razões linguísticas, de acesso dos cidadãos aos direitos e privilégios do país em todos os domínios importantes da vida pública (participação política; desenvolvimento educativo, oportunidades económicas; e mobilidade social); possibilidade de alienação; morte cultural e linguística.

  1. Conclusões

Através da análise de experiências educativas em países africanos, alguns deles vizinhos de Angola, podemos verificar a relevância e a necessidade de uma política educativa, pragmática e realista, em países multiculturais e plurilingues, como é o caso de Angola. A maior tendência, nos sistemas educativos analisados, é o uso de uma política linguística mixoglótica, através de uma cooperação linguística entre as línguas africanas e a língua europeia herdada da colonização, com especial ênfase para a língua materna nos três primeiros anos de escolaridade, quer em escolas públicas, quer em escolas subsidiadas pelo Estado.

Contudo, todos países da África sub-sahaarina apresentam um mesmo aspecto comum: o fraco domínio das línguas oficiais de origem europeia, independentemente do ex-país colonizador e do maior ou menor número de anos de independência. No fundo, cada país, de acordo com os aspectos de ordem psico-social, deve procurar adoptar as políticas linguísticas que melhor se coadunem com as suas políticas educativas, desde que estas estejam, evidentemente, em consonância com o contexto sócio-cultural das populações que procuram atender.

No que se refere a Angola, poderá ser estabelecida uma estratégia direccionada para uma educação bilingue e intercultural, sem esquecer a importância da Língua Portuguesa, que, pelo seu percurso histórico no nosso país, ganhou esse direito. Como referiu Paulo Freire, “a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros.”[12] Assim sendo, a lógica da complementaridade terá, necessariamente, de se sobrepor à lógica da exclusão.

BIBLIOGRAFIA

– BRANDÃO, Carlos Rodrigues (1986), O que é a Educação, Editora Brasiliense, São Paulo;

– CARMO, Hermano (1999), Desenvolvimento Comunitário; Universidade Aberta, Lisboa,

– FREIRE, Paulo1997), Pedagogia da Autonomia; saberes necessários à prática educativa, Editora Paz e Terra S/A, Colecção Leitura, São Paulo

– MAZULA, Brazão (2002), Para a Edificação do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, In, Cadernos CPLP, Instituto Internacional de Língua Portuguesa, CPLP, Lisboa,

– POTH, Joseph (1979), Línguas Nacionais e Formação de Professores em África, Edições 70, Lisboa,

– STROUD, Christopher; TUZINE, António, org, (1998), Uso de Línguas Africanas no Ensino: Problemas e Perspectivas, INDE, Maputo.

[1] BRANDÃO, Carlos Rodrigues (1986), O que é a Educação, Editora Brasiliense, São Paulo, p.7

[2] CARMO, Hermano (1999), Desenvolvimento Comunitário; Universidade Aberta, Lisboa, p.251

[3] SCHLEIERMACHER, F.(2000), Hermenêutica, Arte e Técnica da Interpretação, Vozes, Rio de Janeiro, Petropolis, p. 15, cit. in, MAZULA, Brazão (2002), Para a Edificação do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, In, Cadernos CPLP, Instituto Internacional de Língua Portuguesa, CPLP, Lisboa, p.9

[4] Idem, p.11, cit, in, MAZULA, Brazão, op. cit., p.9

[5] Ibidem

[6] Cf., BRANDÃO, Carlos Rodrigues, op. cit., p.9

[7] POTH, Joseph (1979), Línguas Nacionais e Formação de Professores em África, Edições 70, Lisboa, p.11 e p.21

[8] Idem, p.28

[9] Idem, p.32

[10] Idem, p.21

[11] “11 línguas foram designadas como línguas oficiais a nível nacional; existe a garantia de que todas as línguas serão promovidas, porém, com particular destaque para as 11 línguas oficiais; os direitos das línguas devem ser alargados; existe a garantia de que os sul-africanos poderão usar todas as suas línguas livre e igualmente; é proibida a manipulação, discriminação e exploração na base da língua; e é garantida a promoção do multilinguísmo”. Cf., CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA SUL-AFRICANA (s/d), Secção 3 e as secções sobre Direitos Fundamentais, Língua nos Tribunais e Princípios Obrigatórios, cit. in, WEBB, Vic (1998), Ensino Multicultural da Língua, In, STROUD, Christopher; TUZINE, António, org, (1998), Uso de Línguas Africanas no Ensino: Problemas e Perspectivas, INDE, Maputo, p.69

[12] FREIRE, Paulo1997), Pedagogia da Autonomia; saberes necessários à prática educativa, Editora Paz e Terra S/A, Colecção Leitura, São Paulo, p.46

Filipe Zau
Fotografia: Paulino Damião (Jornal angolano de Artes e Letras)

 

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