Nos musseques de Luanda, guitarras elétricas deram som à ideia de ser angolano

Lisboa, 07 set 2025 (Lusa) – A guitarra começou por ser uma viola, nas mãos de Vieira Dias, que esboçou uma nova música angolana, próximo da Luanda asfaltada. Mais tarde, passou para os musseques e a guitarra tornou-se elétrica, consolidando o som de “ser angolano”.

A modernização e afirmação da música popular angolana confunde-se com a própria evolução e transformação de Luanda ao longo do século XX, num movimento que começa nos anos 1940, próximo do centro e da cidade asfaltada, e que se consolida nos anos 60 e 70, nos musseques (areia, em quimbundo).

Depois de uma elite local ser afastada do centro nos anos 1940 e ensaiar uma nova música angolana, a partir do N’Gola Ritmos de Liceu Vieira Dias, o movimento que se segue dá-lhe outro corpo, alimentado pelas mudanças que se faziam sentir na cidade.

Além dos portugueses atraídos pelo ‘boom’ do café, a população do interior de Angola migra para a capital em grande número.

Segundo a investigadora americana Marissa Moorman, autora do livro “Os Sons da Nação – História Política e Social da Música Urbana de Luanda”, entre 1950 e 1970, a população de Luanda triplica. A pressão sobre as infraestruturas urbanas empurra ainda mais os angolanos para as franjas da cidade, para acomodar os brancos no seu centro.

Os musseques crescem ao redor de Luanda, afirmando-se não como periferia urbana, mas como uma zona de fronteira entre um espaço urbano e rural, diz à Lusa Jomo Fortunato, historiador da música angolana e antigo ministro da Cultura de Angola.

“Em casa da minha mãe, não sabias se eras do campo ou da cidade”, recorda.

A divisão social e física entre baixa e musseques é clara. A música “Chofer de Praça”, de Luiz Visconde, cantada em português, representava essa divisão, com o chofer a recusar levar o narrador aos subúrbios.

Tudo isso torna a população dos musseques entre os anos 1960 e 1970 diversa, quer em termos de classe quer na sua origem, diz à Lusa Marissa Moorman.

Os músicos que surgiam nessas últimas duas décadas antes da independência também vinham de diferentes pontos do país e traziam consigo outras bagagens musicais que acrescentavam riqueza à música criada, nota o jornalista cultural angolano Analtino Santos.

Também por isso, o jornalista aclara que apesar de se falar da música desta época apenas como semba, o nome do género estava por se estabelecer e outras sonoridades e ritmos do resto do país estavam também representados.

Para Jomo Fortunato, é nesse momento que o semba e a música popular angolana se consolidam na tal areia dos musseques, em que os sons tocados, com ou sem letra, eram a mensagem – a afirmação de uma identidade própria.

É entre meados dos anos 60 e início dos anos 70 que surge uma confluência de condições que cria aquilo que alguns apelidam de época dourada da música angolana.

Os discos de vinil começam a ser produzidos no país pela Fadiang, surgem várias editoras de música e aparecem os Kutonocas, concertos de bairro em bairro aos sábados (dinamizados por Luis Montez, pai do empresário português responsável por vários festivais de música), onde foram descobertos nomes como Carlos Lamartine e Elias Dya Kimwezu.

Nas ruas, surgiam as primeiras festas com colunas e gira-discos ligados às baterias dos carros, que tocavam música angolana, mas também música latina trazida pelos marinheiros que passavam pelo porto.

Via terra, pela mão dos camionistas, chegavam as rumbas congolesas, com os solos do músico Franco a passarem a ser referência para muitos dos guitarristas.

Os clubes nos musseques despontavam e a música deixava de estar apenas presente em funjadas de fim de semana e aniversários.

Esta nova música também ganhava espaço na rádio, sobretudo pela voz de Sebastião Coelho, com um programa dedicado à música angolana na Rádio Clube de Angola, e, mais tarde, na Rádio Ecclesia, conta à Lusa Marissa Moorman.

Com espaços para tocar e editoras para lançar os discos, cria-se um contexto propício para a música crescer. A vibrante cena musical dos musseques torna-se central, apesar de feita nas franjas de Luanda.

“Cria-se toda uma ecologia à volta da música, que lhe dá a capacidade de crescer”, afirma a investigadora americana.

O som criado pelas bandas que emergem é completamente distinto do legado deixado por N’Gola Ritmos.

Para Analtino Santos, o semba passa definitivamente do asfalto para a areia.

“O pessoal que faz essa transição e consolida. Aquilo a que chamamos de semba está já longe de N’Gola Ritmos. É outro andamento, é outra referência, é a voz dos musseques”, vinca.

Os vocalistas das bandas que aparecem eram importantes, mas os grupos são sobretudo marcados pelos mestres da guitarra, agora eletrificada, diz o jornalista.

“Quando falamos dos Kiezos, falamos logo do Marito [Arcanjo], quando falamos de Jovens do Prenda, falamos do Zé Keno e do Mingo. Os solistas comandavam”, diz.

Apesar de surgirem músicas com letras críticas ao regime colonial ou que relatavam um quotidiano difícil bebendo do lamento da música tradicional angolana, a revolução fazia-se a partir da forma e da estética.

“A PIDE estava muito preocupada com as letras”, constata Marissa Moorman.

Mas a historiadora afasta a obsessão recorrente com a análise de letras, quando a música em si tinha a capacidade de ser “o som da cidade, o som de ser angolano e era algo muito forte”.

“A questão é que estar num clube ou num espaço a ouvir música angolana tocada por angolanos alimentava um sonho, um desejo. A baixa de Luanda parecia-se mais com Portugal, mas é nos musseques que se desenvolve e se dá sentido a esta ideia de ser angolano e, para isso, a música foi fundamental”, disse à Lusa Marissa Moorman, acreditando que aquelas canções assumiam um papel de “língua franca”.

“A música tem um segredo. Não podes aborrecer ninguém”, contava à historiadora Matumona Sebastião, dos N’Goma Jazz e Quinteto Angolano.

JGA // MLL – Lusa/Fim

Foto de destaque: Facebook

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