Efeitos da “Ode Marítima” em chinês
Eu a enviar ontem uma nota a explicar que não vivo devotado à causa açoriana e nem me ocorreu acrescentar em prova que nesse mesmo dia iria palrar, via Zoom, num colóquio sobre Camões organizado pelo Centro de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra e pelo Centro de Estudos Portugueses da Universidade da California em Santa Barbara. O meu tema foi “Camões e Garcia de Orta”, a desenvolver um assunto que abordei no meu O Século dos Prodígios. Mas agora aproveito para mais uma história da série small world piccolo mondo. Uma das palestrantes (ver foto anexa), interveio a partir de Coimbra. É a chinesa Cristina Zhou, com quem eu não me cruzava há dez anos.
Um dia, viajava eu de comboio rumo a Wassenaar, nos Países Baixos (já não se chama Holanda, pois não?), onde se ia realizar um congresso Pessoano. A meio da viagem, veio ter comigo uma chinesa falando um português impecável. Explicou que lhe parecera reconhecer a minha cara e, porque sabia que eu constava no programa do congresso, apostou que seria eu e decidiu cumprimentar-me, mas desfazendo-se em desculpas por me incomodar. Pensei logo que se trataria de uma macaense e fiquei curiosíssimo acerca do seu percurso. Nada. Chinesíssima dos quatro costados. E contou-me então que um dia leu a “Ode Marítima” de Pessoa em tradução chinesa e ficou tão assarapantada que jurou: vou aprender português para ler este poema no original. E cumpriu.
Hoje é diretora do Centro de Estudos Sino-Portugueses na Universidade de Coimbra.
Ontem foi uma delícia ouvi-la dissertar num português escorreito sobre como ensinar Camões aos chineses. Até contou que um embaixador da China em Portugal obrigou os seus funcionários a ler Camões em tradução a fim de poderem compreender melhor a cultura portuguesa.
As coisas que a gente aprende nestas rotas lusófonas.
Onésimo Teotónio Almeida
Camões em versão brasileira de cordel
A propósito de Camões, a Fátima Medeiros enviou-me este conselho de Bocage:
“Lê Camões, lê Camões; com ele a mente
Fertiliza, afervora,
Povoa, fortalece, apura, eleva;”
Bocage, “Ode ao Senhor José Bersane Leite”, in Opera Omnia, vol. II, Lisboa, Bertrand, 1979, p. 68 [Dir. Hernani Cidade].
Veio a talhe de foice. Eu tinha acabado de escrever a seguinte nota:
Presente no colóquio sobre Camões na Califórnia estava o Professor José Carlos Seabra Pereira, da Universidade de Coimbra, que encontrei pela primeira vez em 1984 num congresso da Associação de Lusitanistas em Poitiers, França. Eu conhecia o livro resultante da sua tese de licenciatura Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa (1975), onde por sinal aprendi muito sobre o nosso florentino Roberto de Mesquita. E, aliás, serviu de introdução à nossa primeira conversa.
Ficámos logo amigos nessa altura por causa da sua simpática maneira de ser. Num dos momentos de diálogo no colóquio, Seabra Pereira (é assim que é conhecido) fez referência a uma história que o brasileiro, professor e escritor, Gilberto Mendonça Teles um dia contou numa conferência em Coimbra, ainda no tempo em que tudo ali era pompa e circunstância. Basta lembrar que na assistência estava a velha guarda, figuras como Américo Costa Ramalho, Maria Helena da Rocha Pereira e outros luminares.
O Seabra Pereira não quis contar a história toda, por ser um pouco brejeira (quem conhece a figura do Gilberto Mendonça Teles sabe que ele é de língua solta e está sempre pronto a contar uma fresca). Mas eu não desisti de lhe ouvir a dita. No final do dia de colóquio, liguei ao André Corrêa de Sá, professor na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, no lugar que foi de Jorge de Sena, e pedi-lhe que, quando voltasse a ver o Seabra Pereira, me ligasse. Prometeu-me que o faria no jantar, pois iriam estar juntos.
Dito e feito. O André ligou-me e passou-lhe o telefone.
Então foi assim: numa conferência no pesado e circunspeto ambiente da vetusta universidade de Coimbra quando o Seabra era ainda um jovem assistente, a dada altura, a propósito de Camões, o Gilberto Mendonça Teles referiu que no Brasil encontrara num folheto de literatura de cordel a seguinte história atribuída ao poeta Camoge (era esse o nome referido no folheto, provavelmente uma justaposição dos nomes Camões e Bocage – terá o G M Teles explicado).
Camoge frequentava com regularidade uma taberna e ouvia o dono queixar-se de caloteiros que há muito não lhe pagavam. Um dia o taberneiro pediu ajuda ao celebrado poeta. Queria uns versos para colocar na parede e pagar-lhe-ia com um copo de vinho. Então Camoge saiu-se com esta quadra:
Para não haver transtorno
Neste tão digno balcão,
Só vendo fiado a corno,
Filho da puta ou ladrão.
O auditório coimbrão gelou. O riso também. Se alguém esboçou um sorriso, foi só para dentro.
Eram outros tempos. Hoje não passam de banais vocábulos na TV e até na Assembleia da República. Pelo menos em versões sinónimas.
Onésimo Teotónio Almeida
Onésimo Teotónio Almeida
últimos artigos de Onésimo Teotónio Almeida (ver todos)
- Efeitos da “Ode Marítima” em chinês /e/ Camões em versão brasileira de cordel - 11 de Dezembro, 2024
- “Diálogos Lusitanos” nas livrarias - 24 de Setembro, 2024
- … ainda a morte de Eugénio Lisboa - 10 de Abril, 2024
- Eugénio Lisboa – mais um amigo que se vai - 9 de Abril, 2024