Macau, China, 01 mar (Lusa) – Em Macau, quando o tema é Camilo Pessanha é difícil dizer onde termina o homem e começa o mito, havendo quem o recorde afável, exótico e à frente do seu tempo, mas também cáustico, alucinado, opiómano.
“Cresci a ouvir as histórias que o meu pai contava do Camilo Pessanha. Tinha uma personalidade muito característica, peculiar”, conta António Conceição Júnior, lembrando as recordações do seu pai, António Maria da Conceição, aluno de Pessanha no Liceu de Macau.
São avulsas as recordações que ainda guarda – de como Pessanha escrevia registos da conservatória com um fósforo queimado ou de como tinha uma memória invejável–, mas também de caráter e valor artístico.
“Socialmente ele era muito peculiar. Mas se estabelecermos um paralelo com Camões, com Fernão Mendes Pinto, com Mário de Sá Carneiro, com o próprio Fernando Pessoa, não vejo em nenhum deles vulgaridade”, comenta.
Há uma ideia, frequente em Macau na altura e propagada em livros, de um homem envolto numa aura de alucinação.
“Magro esquálido, a barba hirsuta, o cabelo colado à testa, seminu sobre o leito, aspirando voluptuosamente o longo cachimbo sobre a chama amarelada da lâmpada de cristal, que lhe projetava a sombra desfigurada nas paredes obscurecidas, tendo no semblante a expressão hipnótica dos opiómanos”: assim o descreveu Danilo Barreiros, em “O testamento de Camilo Pessanha”:
Para Conceição Júnior, este tipo de imagem é fruto, pelo menos em parte, de um olhar conservador da Macau do início do século XX.
“Isto era uma província, ainda hoje é, mas na altura muito mais”, conta.
Pessanha era “muito distraído” e também “tinha os seus escapes”, “o ópio era comum nessa altura e não era nenhum pecado por aí além”, ressalva.
“Há coisas que são esquisitas, não são anormais mas saem da norma. Diria apenas que Camilo não era convencional”, acrescenta, confirmando que sim, houve tempos em que recebia as visitas despido, ainda que tapado com um lençol, pormenor que considera “do anedotário” e sem importância.
O certo é que “causava alguns incómodos a Macau”, uma cidade onde “apenas um pequeno número de pessoas” saberia que escrevia.
Os incómodos não se terão devido apenas a uma questão de excentricidade, já que Pessanha foi crítico de Macau, que descreveu como “um meio acanhadíssimo, mexeriqueiro e boçal, a todos os respeitos misérrimo”.
Além de professor, foi advogado, juiz e conservador do registo predial e foi criticado também a nível profissional. Em 1904, dois advogados acusaram-no de “desorganização no cumprimento das suas tarefas judiciais, incúria relativamente aos registos da conservatória, ausência do local de trabalho, corrupção”, de acordo com uma cronologia elaborada pela Biblioteca Nacional.
Entre 1894 e 1926, período em que viveu em Macau, onde morreu, faz na terça-feira 90 anos, também se interessou pela cultura e língua chinesas, colecionando antiguidades.
Em Macau tornou-se amigo de José Vicente Jorge, intelectual macaense, que lhe cultivou o gosto pela poesia chinesa e foi considerado por Pessanha amigo e mestre.
“Ao contrário da maioria dos portugueses que vieram para Macau, Pessanha logo que aqui chegou começou a estudar chinês, língua que o encantou”, recordou Pedro Barreiros, neto de José Vicente Jorge.
Tendo começado as aulas de chinês em 1895, Pessanha traduziu, com o apoio de Vicente Jorge, oito elegias chinesas, em 1914.
Barreiros recorda a amizade entre o poeta e o seu avô como baseada “numa grande admiração a respeito mútuos, mantendo muitas ideias, gostos e atividades comuns, como o direito, a língua, poesia e arte chinesas e, evidentemente, a maçonaria”.
A impressão que Pessanha causou em José Vicente Jorge transpirou para as gerações seguintes. “O meu avô e a minha tia Amália vieram viver na nossa casa e, com a minha mãe e o meu pai, fizeram com que a presença do poeta fosse permanente. Desde muito novo fui ‘embalado’ com a música dos seus poemas e aos 16 anos desenhei o meu primeiro retrato de Pessanha, que a minha mãe recortou e colou na sua Clepsidra”, conta.
A amizade entre os dois era tal que Pessanha ajudou mesmo esta tia Amália, filha de José Vicente Jorge, a ir estudar para Lisboa, algo incomum para as mulheres na altura.
Esta “rapariguinha”, como Pessanha afetuosamente lhe chamou numa carta a Ana de Castro Osório, que “ao avesso de toda esta gentinha, [está] verdadeiramente ansiosa de instruir-se”, foi quem levou, no dia do enterro do poeta, a 02 de março de 1926, as únicas flores que acompanharam a urna.
Hoje, Barreiros é um especialista em Pessanha, de quem guarda ainda manuscritos: “Vivi sempre apaixonado pelos seus poemas, todos marcados por uma perfeição igual, que raramente voltei a encontrar. Pelas histórias que a minha mãe, avô e os meus tios, que foram seus alunos, me contavam, tinha inveja por não o ter tido como professor”.