Ensaio de Annabela Rita, “Eça de Queirós Cronista”

Prefácio de Miguel Real ao livro de Annabela Rita, que acaba de sair na Gradiva

“Primeiro ensaio de Annabela Rita, Eça de Queirós Cronista — Do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72), publicado em 1998, conhece agora uma justa segunda edição.

Num primeiro momento, do ponto de vista da análise, Annabela Rita opera a desconstrução histórica dos dois conjuntos de crónicas, o primeiro evidenciando um Eça entretecido no Rotativismo, fazendo do Distrito de Évora um jornal tanto representativo do liberalismo do Estado como oposicionista ao «Governo da Fusão» (Regeneradores e Progressistas) de Joaquim António de Aguiar; o segundo, esclarecendo Eça d’As Farpas, da colaboração com Ramalho Ortigão, precursor do Eça da década de 1880, experimentando na crónica o futuro estilo literário presente nos seus romances, sobretudo a singularidade estilística que o identificará como autor de crítica e denúncia social por via do humor e da ironia.

Annabela Rita (3) (1)Porventura, o elemento de maior interesse do ensaio de Annabela Rita residirá na integração do pensamento do jovem Eça (entre os 22 e os 27 anos) no ideário crítico da Geração de 70, sobretudo na vertente que conduzirá todos os autores desta Geração na acentuação da categoria de Decadência como perfil histórico de Portugal desde o século XVII. N’As Farpas, Eça de Queirós brilhará na revelação dos costumes sociais tradicionais portugueses, efeito daquela decadência histórica, evidenciando a necessidade da passagem do português do estatuto de súbdito para o estatuto de cidadão, dotado de uma consciência lúcida, «europeia», por assim dizer. Assim, Annabela Rita evidencia o «nosso» Eça literário a nascer, o Eça estabelecido pelo cânone interpretativo do século XX.

Por via de protocolos retóricos e efabulativos, Annabela Rita demonstra a ligação entre a crónica da juventude e o romance do autor adulto, não distinguindo assim, como o faziam os intérpretes clássicos, o Eça cronista do Eça romancista, integrando ambas as vertentes literárias do autor na categoria histórica do Realismo. Não o realismo seco centrado nos dados científicos como retrato de uma sociedade, um realismo limitado, como o de Pinheiro Chagas, com continuidade em Júlio Dantas, mas, como especifica a autora, um realismo «carnavalizado»: a exploração lúdica do signo, partilhando tanto de uma teoria do referente semântico concreto (o Realismo), como de uma aproximação ao símbolo cultural — o Ludismo literário como singularidade estética.

É justamente esta vertente da obra de Eça — a de, com o dedo literário, apontar para a realidade, tomando-a como ponto de partida do texto, sem, porém, reduzir este a uma mera representação direta da realidade imediata, carnavalizando-o — que o identifica com a modernidade e que nos permite lê-lo como se tivesse ontem escrito para nós, leitores do presente.

Neste sentido, o ensaio de Annabela Rita integra-se no que designámos, em O Último Eça (2006), por «Período Crítico» da historiografia queirosiana, iniciado em 1954 com a publicação de Lengua y Estilo de Eça de Queiroz, de Ernesto Guerra Da Cal, que intenta não tanto problematizar a relação vida/obra do autor (característica saliente do período anterior), mas sublinhar, como afirma Carlos Reis, sintetizando o espírito deste período, que «o escritor está na sua obra». Deste modo, tal como Annabela Rita o pratica, a heurística do texto queirosiano, independentemente da subjetividade de Eça no momento da criação da crónica, torna-se estimulante em soluções literárias, duas das quais a autora evidencia através de um conjunto de argumentos incontestáveis: por um lado, a autonomia da crónica como género literário e, por outro, a sua continuidade estética em forma de romance.”

MIGUEL REAL
Annabela Rita Eça de Queirós Cronista
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