Maputo, 17 nov 2021 (Lusa) – O editor executivo do Canal de Moçambique, jornal incendiado em 2020 por desconhecidos, diz que o prémio de liberdade de imprensa que vai receber na quinta-feira mostra que o mundo está atento e é um sinal para os jovens.
“É uma influência para os jovens jornalistas” e “uma grande mensagem face às vicissitudes pelas quais a imprensa independente está a passar em Moçambique”, mostrando que “o mundo está atento” ao que se passa no país, referiu hoje Matias Guente, em entrevista à Lusa
A liberdade de imprensa “é um bem universal” e “não há país, governo ou grupos de interesse que possam moldar a forma como é exercida”, sublinhou.
O Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), uma organização independente sediada em Nova Iorque, atribuiu o Prémio Internacional da Liberdade de Imprensa 2021 a quatro jornalistas, entre eles Matias Guente, decorrendo a entrega em formato híbrido (presencial e através de Internet).
A organização destaca o jornalista moçambicano porque “ao longo dos anos tem enfrentado uma série de ameaças pelas suas duras reportagens, incluindo interrogatórios policiais, acusações de violação de segredo de Estado e conspiração e uma tentativa de rapto em 2019”.
Em agosto de 2020, desconhecidos atearam o fogo durante a noite ao Canal de Moçambique, no rés-do-chão de um prédio de habitação, em Maputo, uma agressão que “passou todos os limites: não pensei que chegássemos a esse extremo”, disse à Lusa.
Ninguém estava nas instalações, mas a destruição foi total.
O jornal recebeu donativos e a redação foi montada sob toldos à porta do prédio para dar à estampa a edição seguinte.
Hoje o rés-do-chão está renovado, mas o editor executivo diz que o caso o marcou por nunca terem sido apuradas responsabilidades, como seria de esperar “num país normal”.
A investigação ao incêndio foi arquivada por falta de provas.
“Ficámos com o fantasma de que [os agressores] poderão regressar, porque está aberto o caminho da não responsabilização”, disse.
Atribui ao arquivamento um significado mais amplo, considerando que “estão a calar o direito à opinião”, uma maré dirigida por grupos de interesses que se sentem atingidos e contra a qual diz continuar a remar.
Mostra a capa da edição desta semana: “Subsídios Milionários”, um artigo que questiona a auto atribuição de subsídios por administradores da Segurança Social.
“Não somos necessariamente ‘kamikazes’, mas acreditamos que existe uma democracia para ser defendida, que a liberdade dos cidadãos tem de ser defendida a todo o custo, porque custou sangue e a nossa forma de honrar aqueles que lutaram é defender a própria liberdade”, disse.
Solteiro, nascido na cidade da Beira, escusa-se a dizer a idade, referindo apenas que assumiu responsabilidades muito cedo.
Já cuidava de uma publicação na escola secundária e, mais tarde, ao estudar jornalismo na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), escreveu um artigo de opinião a questionar o aumento de preços da cantina.
O artigo chamou a atenção de um professor e abriu-lhe portas para um estágio no Tribuna Fax, em 2007, passando dois anos depois para a redação do Canal.
Já teve procuradores e juízes a pedir-lhe para revelar fontes, sem saberem que a lei protege o sigilo pelos jornalistas, contou à Lusa.
“Os jornalistas sabem mais de legislação de imprensa na maior parte dos casos do que os advogados”, referiu, alertando para a necessidade de especialização na área.
Assim, inscreveu-se no curso de Direito em 2009, participando na definição de estratégias de vários casos em que se viu envolvido.
“Muitos processos nem teriam começado se houvesse o domínio da lei”, referiu, contestando as propostas de lei da comunicação social e radiodifusão que estão na agenda para debate no parlamento até final do ano.
“A impressão que fica é que [o pacote legislativo] foi concebida numa esquadra de polícia” e que “o jornalista é tratado como inimigo”.
E refere alguns pontos que o preocupam na proposta de lei: o jornalista perde o direito a defender-se em casos de difamação contra o Presidente da República – sendo que o direito à defesa faz parte da Constituição -, redefinem-se restrições ao investimento privado na comunicação social e há sobreposições entre órgãos de disciplina e fiscalização.
Classifica tais tentativas de legislar como uma “máquina formal” de limitação ao trabalho dos jornalistas, a par de uma “máquina informal”, responsável por atos como o incêndio da redação do Canal ou raptos – recordando que o jornalista Ibraimo Mbaruco está desaparecido desde abril de 2020 em Cabo Delgado depois de ter enviado uma mensagem por telefone em que se dizia estar “cercado por militares”.
“Tenho esperança, porque sou moçambicano e acredito que um dia este país vai melhorar, mas a cronologia dos acontecimentos deixa-me profundamente preocupado”, concluiu Matias Guente.
O jornalista moçambicano surge ao lado de outros da Bielorrússia, Guatemala e Myanmar, que enfrentaram “a violência, o assédio, a repressão e a perseguição, mas recusaram-se a recuar” na sua missão, justificou o diretor executivo do Comité para a Proteção dos Jornalistas, Joel Simon, aquando do anúncio dos prémios, em junho.
LFO // MLS – Lusa/Fim