Fernão Mendes Pinto – algumas verdades na Peregrinação

Marco Polo foi acusado de mentiroso por na sua narrativa de viagem na China nunca ter referido a Grande Muralha. O ignorante crítico não fazia ideia de que essa grandiosa obra de arquitetura não é milenar como tanta realidade chinesa, tendo sido construída depois da viagem do explorador veneziano.

Fernão Mendes Pinto, por seu turno, foi sempre objeto de dúvidas, e mesmo de troça, por via das suas aventuras contadas na Peregrinação.

Muitas das críticas e interrogações parecem de facto legítimas. Nem todas, porém. Já irei lá, todavia antes disso aduzirei as perguntas que teria feito a esse aventureiro-mor da história portuguesa se tivesse podido entrevistá-lo. Gostaria de obter dele alguns dados sobre banalidades como: Onde comia? Onde dormia? Como arranjou dinheiro para pagar as despesas? Como conseguiu falar com pessoas de culturas tão diversas como a China do Norte e do Sul, do Japão, da Malásia, das variadíssimas regiões linguísticas da Conchinchina, da Índia, das Arábias? Como sabia onde estava em termos de espaço geográfico? Como se orientava sem mapas? Como sabia o nome das terras a que chegava? Como fixou tantos e, mais ainda, como pôde assegurar-se de que a sua transcrição fonética para português era pelo menos aproximada? Onde arranjava roupa? Fez todas as viagens por terra a pé? Como pedia boleia nas viagens de barco? E como sobrevivia nos longos percursos desabitados? Como tinha a certeza de que aquilo que diz ter ouvido da boca das pessoas que encontrava era mesmo o que elas diziam e não o que FMPinto julgava ter percebido? Alguma vez tomou notas das suas viagens? Guardou tudo só na memória? As questões a levantar seriam bastantes mais, no entanto estas já dão uma ideia daquilo para que os leitores desse seu extraordinário livro não conseguem vislumbrar respostas.

E, no entanto, há que distinguir os relatos obtidos em encontros com pessoas daqueles que não necessitavam de intermediário porque bastava ter olhos para ver. Vou debruçar-me sobre um exemplo que abona em favor da fidedignidade do testemunho do nosso mirabolante vagabundo e escritor.

Na sua descrição da muralha da China, mais ou menos a uns 100km a norte de Pequim, FM Pinto conta como “o rei que então reinava na China […] determinou de fechar com muro toda a raia de ambos estes impérios.” […] “[D]iz a história que em  vinte e sete anos se fechou todo o extremo destes dous impérios de ponta a ponta, que segundo se afirma na mesma crónica, é distância de setenta jaus, que por nossa conta, à razão de quatro léguas, na qual obra dizem que trabalharam contínuos setecentos e cinquenta mil homens, de que o povo, como já disse, deu a terça parte, e o sacerdócio e ilhas de Ainão, outra terça parte, e el-rei com os príncipes e senhores, e chaéns, e anchacis do governo, a outra terça parte.

Até aqui, FM Pinto conta o que aprendeu, não o que viu. No entanto, o registo muda radicalmente no parágrafo seguinte e entra diretamente com o verbo de uso mais generalizado nos relatos de viagens do período da expansão: Este muro vi eu algumas vezes e o medi, que é por todo geralmente de seis braças de alto e quarenta palmos de largo no mociço da parede, mas das quatro braças para baixo corre um entulho a modo de terrapleno, alamborado da face de fora, de um betume como argamassa, de mais largura que o mesmo muro quase duas vezes, por onde fica sendo tão forte que nem mil basiliscos o poderão derrubar, e em lugar de torres ou baluartes, têm umas guaritas de dous sobrados, armadas sobre esteios de pau-preto, a que eles chamam caubesi, que quer dizer “pau-ferro”, de grossura de uma pipa cada um, e muitos altos, por onde estas guaritas parece que ficam sendo muito mais fortes que se foram  de pedra e cal.

Fica óbvio (e não é necessário nos debruçarmos analiticamente sobre cada uma das frases) que apenas quem conheceu por experiência – quem “viu” – a muralha pode dela falar assim. Não colhe, por isso, a sugestão de estar FM Pinto a servir-se de descrições feitas por outros autores. Isso acontece claramente na primeira passagem acima citada, mas não na segunda. O contraste é mais do que evidente.

Avançarei, porém, rumo a um reforço do meu argumento: se FM Pinto se tivesse servido de fontes alheias para fingir ter estado na muralha da China, por que razão não teria agido identicamente em relação à Cidade Proibida, que fica mesmo no centro de Pequim? Mas vejamos primeiro o que, numa descrição pormenorizada sobre a cidade, Pinto escreve a dada altura: A cidade em si é cercada de muro muito forte e de boa cantaria, onde tem cento e trinta portas para a serventia da gente, as quais todas têm pontes por cima das cavas. A cada porta delas estava um porteiro com dous albardeiros, para darem razão de tudo o que entra e sai. Tem doze fortalezas roqueiras quase ao nosso modo, com baluartes e torres muito altas, mas não tem artilharia nenhuma. Também nos afirmaram que rendia esta cidade a el-rei todos os dias dous mil taéis de prata, que são três mil cruzados, como já disse muitas vezes. A avaliação “boa cantaria” parece o comentário de quem tem opinião sobre o que viu. Os pormenores sobre os guardas às portas da cidade também soam perfeitamente a uma observação direta. Mas a comparação das “fortalezas artilheiras” com as portuguesas – “quase a nosso modo” – é um pormenor notável. Mais: observe-se que logo de seguida Pinto regista uma informação que ouviu e refere como tal: “Também nos afirmaram”. O mesmo poderia ser também o caso de certas informações anteriores, como o número de portas que a cidade possui; no entanto o registo de detalhes como “mas não tem artilharia nenhuma” parece, de novo, fruto de observação direta. Os informadores não lhe iriam dizer: Olha, Fernão, nós não temos artilharia. Inventamos a pólvora mas só a usamos para fogo de artifício.

Passemos então à passagem mais importante para o meu argumento. Prossseguindo no relato das suas experiências em Pequim, Pinto escreve: Dos paços reais não direi nada, porque os não vimos senão de fora, nem deles soubemos mais que o que os chinos nos disseram o qual é tanto que é muito para arrecear contá-lo, e por isso não tratarei por agora deles porque tenho por davante contar o que vimos nos da cidade de Pequim, dos quais confesso que estou já agora arreceando haver de vir a contar ainda esse pouco que deles vimos, não porque isto possa parecer estranho a quem viu as outras grandezas deste reino da China, senão porque temo que os que quiserem medir o muito que há pelas terras que eles não viram, com o pouco que vêem nas terras em que se criaram, queiram pôr dúvida ou porventura negar de todo o crédito àquelas cousas que se não conformam com o seu entendimento e com a sua pouca experiência.

Está aqui um tratado sobre a objetividade e sobre o problema da credibilidade com que se confronta um autor que pretende narrar aos seus leitores realidades que transcendem os parâmetros da experiência deles. Contudo não avançaremos por aqui. Note-se que FM Pinto confessa ter visto pouco, todavia prefere falar desse pouco a espraiar-se sobre o grandioso que terá ouvido descrever aos chineses sobre “os paços reais”, isto é, a “cidade proibida”, que ele só viu por fora.

Se Pinto se estivesse a servir-se de narrativas de outros autores para forjar a sua, teria nas descrições da Cidade Proibida páginas das Mil e Uma Noites capazes de fazerem os seus leitores entrar em êxtase. Mas não o faz. O contraste entre as citadas passagens é marcante e significativo.

Quem conhece a Cidade Proibida tem clara noção do fabuloso, do autênticamente extraordinário que seria para um português deparar-se com tão empolgante esplendor. Mas ele não viu; apenas ouviu dele falar. E tendo plena consciência de já ser difícil tornar-se credível junto dos seus leitores contando o que viu, imagina o que seria se ele se pusesse a narrar as maravilhas de que só ouvira falar.

Evidentemente que não posso a partir deste exemplo fazer ilações aplicáveis a todas as narrativas do livro. E cinjo-me a descrições de realidades vistas, contempladas, observadas, que são muito menos complexas do que aquelas que envolvem trocas de conversa com os locais e que implicam conhecimento aprofundado da língua levantando muitos outros problemas.

Onésimo Teotónio Almeida

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Onésimo Teotónio Almeida

Onésimo Teotónio Pereira de Almeida - Natural de S. Miguel, Açores, é doutorado em Filosofia pela Brown University em Providemce, Rhode Island (EUA). Nessa mesma universidade é Professor Catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, bem como no Center for the Study of the Early Modern World e no Wayland Collegium for Liberal Learning. Autor de dezenas de livros. Alguns dos mais recentes: Despenteando Parágrafos, A Obsessão da Portugalidade, e O Século dos Prodígios. A ciência no Portugal da Expansão, na área do ensaio. Em escrita criativa: Livro-me do Desassossego, Aventuras de um Nabogador e Quando os Bobos Uivam. Co-dirige as revistas Gávea-Brown, Pessoa Plural e e-Journal of Portuguese History bem como a uma série de livros sobre temática lusófona na Sussex Academic Press, no Reino Unido. É membro da Academia da Marinha, da Academia das Ciências e doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro.
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