Hoje tenho um episódio muito divertido para vocês, em que vamos comparar as características de alguns dos principais sotaques de Portugal e no final vamos tentar descobrir qual deles é o sotaque mais “correto”.
Vamos analisar 8 sotaques: dois sotaques do Norte: Braga e Porto; 2 sotaques do Centro: Coimbra e Lisboa; dois sotaques do Sul: Alentejo e Algarve; e 2 sotaques das ilhas: Madeira e São Miguel, nos Açores.
E atenção que eu estou a usar a palavra “correto”, entre aspas. Não há sotaques melhores que outros e todos os sotaques são igualmente válidos.
Um sotaque, no fundo, é a personalidade linguística de uma região do país. No entanto, o português europeu tem algumas regras de fonética e aquilo que eu vou fazer hoje é simplesmente comparar as características dos diferentes sotaques para ver qual é aquele que respeita o maior número de regras teóricas de fonética do português europeu.
No final, o sotaque que se aproximar mais à pronúncia portuguesa standard, será coroado então o sotaque mais “correto” ou mais neutro, se preferirem. Por isso assistam até ao fim para verem quem ganha!
(…)
Para comparar os diferentes sotaques, eu escolhi 8 frases que têm sons que vão pôr em evidência algumas das características de cada um dos sotaques. Ou seja, há frases que vão dar destaque a características dos sotaques do Norte, há frases que vão pôr em evidência os sotaques das ilhas, há frases que vão dar destaque aos sotaques do Sul, etc.
E quais é que são então as características de cada sotaque?
Regra geral, indo de Norte para Sul e depois para as ilhas os sotaques do Norte abrem mais as vogais e pronunciam mais os ditongos, por exemplo o ditongo “ou”, que na maior parte do país é pronunciado “ô”.
Outra característica muito típica dos sotaques do Norte é que pronunciam o V como sendo um B. Não dizem vaca, dizem “baca”. Aqui vamos ver que o sotaque de Braga é um pouco mais carregado do que o sotaque do Porto.
Os sotaques do Centro já têm uma pronúncia mais neutra, com uma cadência mais constante sendo até o sotaque de Coimbra muitas vezes considerado o sotaque mais neutro de Portugal. (Vamos ver se é verdade!)
O sotaque de Lisboa é parecido ao de Coimbra, embora talvez com vogais um pouco mais fechadas, e muitas vezes mais cortadas das palavras.
Os sotaques do Sul já são talvez um pouco mais arrastados, e uma das características mais notórias é que transformam muitos ditongos em vogais únicas. Por exemplo, o ditongo “ei” fica “ê”, o ditongo “ãe”, fica “ên”, isqueiro – “isquêro”, bem – “bã”, etc.
O sotaque alentejano é talvez um pouco mais anasalado, com ênfase muito característico no final das palavras. Peço desculpa aos alentejanos pela minha péssima imitação.
Já o sotaque algarvio é muito característico por usar o som /ʒ/ em vez do som /z/ para ligar palavras que acabam em S com palavras que começam com vogal. Em vez de dizerem “tázaver?” (estás a ver?), dizem “tájaver?”. Esta característica é partilhada com o sotaque de Coimbra e de São Miguel, nos Açores. Mas é talvez mais forte no Algarve.
Finalmente, os sotaques das ilhas são caracteristicamente mais fechados e mais difíceis de perceber do que os sotaques do resto do país. As vogais são mais fechadas, eliminam-se muitas vogais e há muita transformação de ditongos. O ditongo “ões” fica “ôns”, o ditongo “ães” fica “âns”, etc.
Normalmente as pessoas do Continente, ou seja, de Portugal Continental, têm dificuldade em distinguir o sotaque da Madeira do dos Açores, mas nós vamos ver hoje que eles são diferentes e vamos ver como é que os podemos distinguir.
Vão ver que no geral o sotaque dos Açores é mais carregado do que o da Madeira, sobretudo em São Miguel.
Como já devem ter percebido eu não consigo imitar todos os sotaques na perfeição, por isso eu vou representar o sotaque de Lisboa, que é o meu sotaque, e pedi a 8 amigos dos diferentes lugares do país para gravarem as frases que vamos agora analisar.
Todas as frases vão ser ditas na seguinte ordem: Lisboa, Coimbra, Porto, Braga, Alentejo, Algarve, Madeira e Açores.
A primeira frase é a seguinte:
“Quis entrar na piscina, mas a água estava fria.”
Como pudemos ver, não houve quase diferença entre o meu sotaque de Lisboa e o do Rui de Coimbra. Já nos sotaques do Norte, notou-se nos dois a troca do V pelo B, “estaba” em vez de “estava”, e a Bárbara do Porto abriu um pouco mais os A’s.
No sotaque do Alentejo notou-se aquele ênfase anasalado no final das palavras, e no sotaque do Algarve, a substituição do som /z/ pelo som /ʒ/, na ligação de palavras. “Quijentrar” em vez de “quizentrar” e “majaágua” em vez de “mazaágua”.
Nesta frase não houve grande destaque das características dos sotaques das ilhas, mas deu para ver que nos Açores há aquele J algarvio do “quijentrar”, e na Madeira não.
A segunda frase é:
“Tenho um quilo de pastilha elástica na mochila.”
Aqui mais uma vez não houve grande diferença entre o meu sotaque e o de Coimbra, e honestamente, acho que não houve grande diferença entre nenhum dos sotaques do Continente. A única coisa que talvez se tenha destacado foi a cadência anasalada do sotaque alentejano, mas isso vai-se notar em todas as frases.
Agora, os sotaques que sem dúvida se destacaram nesta frase foram os das ilhas, e esta frase foi escolhida de propósito para isso, porque em ambos os sotaques, sobretudo no da Madeira, a letra L – o som L é substituído pelo som LH quando vem depois de um I e antes de uma vogal. Quilo fica “quilho”, elástica fica “elhástica” e mochila fica “mochilha”.
A terceira frase é:
“O boi passou a correr porque viu a vaca a pastar.”
Mais uma vez, não há grande diferença entre os sotaques de Lisboa e de Coimbra, nem entre estes e os do Sul, exceto talvez aquela cadência alentejana que carrega no final das palavras.
Os sotaques do Norte são aqueles que realmente se destacam, trocando os Vs por Bs. Tanto a Bárbara do Porto, como o Miguel de Braga dizem “biu a baca” em vez de “viu a vaca”.
Os sotaques das ilhas também se destacaram mais do que eu estava à espera porque realmente são sotaques bastante diferentes do resto do país, o que faz sentido tendo em conta o isolamento geográfico das ilhas.
No sotaque madeirense do Cunha parece que ele diz “corroer” em vez de “correr”, e a palavra “viu” transforma-se em “vi”.
Já o sotaque açoriano leva esta transformação de ditongos ainda mais ao extremo. Boi fica “bô”, viu fica “vi” e pastar fica “pastâ”. Aqui nota-se também uma característica muito típica do sotaque açoriano que são as vogais mais fechadas. Muito fechadas mesmo.
Quarta frase:
“A Filipa tem um coelho que come cenouras o ano inteiro.”
Aqui temos finalmente a primeira diferença entre o sotaque de Coimbra e o sotaque de Lisboa. Eu digo “coâlho”, transformando o E numa espécie de A fechado, e o Rui de Coimbra diz “coêlho”, pronunciando o E como um E fechado.
Notamos também essa diferença da palavra coelho nos sotaques das ilhas. Na Madeira dizem “coâlho” e nos Açores dizem “coêlho”. Portanto já têm uma forma de distinguir entre os sotaques dos 2 arquipélagos. Entre o Norte e o Sul do país também há essa diferença, no Sul dizem “coêlho” e no Norte, estão ali no ponto médio entre “coêlho” e “coâlho”. Sendo talvez a forma mais neutra de pronunciar a palavra. Não é nem “coêlho” nem “coâlho”, é “coalho”.
Com a palavra Filipa, também vemos que no Norte se pronunciam mais as vogais, tanto a Bárbara como o Miguel dizem Filipa, enquanto que no resto do país temos mais tendência a dizer Flipa, cortando o I átono.
Na Madeira e nos Açores, para além de cortarem o I, ainda voltam a alterar o som do L, dizendo Flhipa em vez de Filipa.
De notar mais uma vez o /ʒ/ do Algarve e dos Açores em “Cenourajoano inteiro”.
“O meu sotaque é especial e também se percebe bem.”
Nesta frase o que se destaca são os sotaques do Sul e das ilhas, que mudam os ditongos das palavras “meu” e “bem”, dizendo “mê” e “bêm”.
Notamos também a cadência um pouco mais musical do Norte no sotaque de Braga. O Miguel diz “o mieu” em vez de “o meu” e “beim” em vez de “bem”.
A sexta frase é:
“Eu tenho muitos amigos, mas tu és o número um.”
Esta frase põe em evidência aquela característica que já vimos do Algarve e dos Açores, de trocar o som /z/ pelo som /ʒ/ o som /ʒ/ pelo som /z/ quando ligamos palavras: “muitojamigos” e “éjo número um”.
E aqui vemos que o sotaque de Coimbra também faz isso de vez em quando. O Rui diz “tenho muitozamigos”, mas depois diz “éjo número um”. Às vezes usa o som /z/ e outras vezes o som /ʒ/.
E claro, aqui notamos bem as vogais fechadas dos Açores, muito patentes no som U, que eles pronunciam quase como “Û” francês: “Éjunúmerúm”.
Sétima frase:
“Todos os verões eu faço uma viagem com os meus cães.”
Nesta frase temos muitos sons que são pronunciados de forma diferente em cada sotaque, e começando pelo Norte, vemos que a Bárbara pronunciou os Vs como o som /v/ e não /b/, enquanto que o Miguel de Braga manteve o som /b/. Por isso é que eu vos dizia no início que o sotaque de Braga é um pouco mais carregado.
Vemos também que mais uma vez, o Rui de Coimbra utilizou o som /ʒ/ e não /z/ para ligar palavras, mas não tanto como no Algarve e nos Açores. O Dário de Olhão e a Catarina de São Miguel disseram “Todojos verõejeu faço”, enquanto que o Rui disse “Todozos verõejeu faço”, /z/ – /ʒ/.
Vemos ainda que nas ilhas os ditongos “ões” e “ães” ficam “ôns” e “âns”.
E finalmente, a última frase:
“O quê?! Não percebi nada do que disseste.”
Nesta frase um pouco mais expressiva, vemos logo a forma particular dos sotaques do Norte de dizer “O quê?”, acrescentando um I e abrindo o E final. “O quiê?”.
Outro sotaque que se destaca é o do Alentejo, sempre com aquele ênfase final anasalado nas palavras. “O quêê?”
Notamos também que o sotaque dos Açores tem uma forma muito particular e diferente de dizer “o quê” e notamos mais uma vez aquele U muito fechado, quase francês, “tu disseste”.
E pronto, depois de ouvir estas frases todas e de analisar as características de cada sotaque, qual é que vocês acham que é o mais “correto”?
Vou tentar ser o mais imparcial possível na escolha do sotaque que me parece mais neutro, e por isso escolhi 4 características da fonética portuguesa, e vou analisar cada um dos sotaques e atribuir 1 ponto àqueles que seguirem cada uma dessas características, cada uma dessas regras “corretamente”.
A primeira característica são as consoantes. E aqui os sotaques do Norte não levam pontos, porque pronunciam os V’s como B’s, que não é o som correto. As palavras “vem” e “bem” são diferentes mas no Norte ficam iguais, “bem” – “bem”. Os sotaques das ilhas também não levam pontos porque também trocam a pronúncia da consoante L transformando-a muitas vezes em “LH”. A palavra “fila” e “filha” são palavras diferentes mas nas ilhas ficam as duas “filha”.
O sotaque algarvio não parece pronunciar nenhuma consoante isolada de forma errada, mas na ligação entre palavras sim pronunciam o som /z/ como /ʒ/ o que é errado porque teoricamente o S entre 2 vogais lê-se /z/ e não /ʒ/, como na palavra “casa” ou “causa” ou “coisa”, etc.
O sotaque de Coimbra também faz este erro mas só de vez em quando, e os sotaques de Lisboa e do Alentejo não me pareceram pronunciar nenhuma consoante de forma errada, por isso Coimbra leva meio ponto e Lisboa e Alentejo levam um ponto cada um!
Passando agora às vogais, quais é que são os sotaques que pronunciam as vogais mais corretamente? Aqui vou ter que dar um ponto aos sotaques do Norte que pronunciam o I da palavra Filipa e pronunciam a palavra coelho de forma relativamente neutra. Coimbra também leva um ponto porque diz “coêlho” em vez de “coâlho”.
O Alentejo, o Algarve e os Açores também dizem “coelho”, que está certo, mas não levam pontos porque também alteram muito as vogais, como por exemplo o U açoriano, e cortam muitas outras.
A seguir, os ditongos! Aqui tenho que dar zero pontos aos sotaques das ilhas e do Sul, porque realmente mudam quase todos os ditongos. “Eu” fica “ê”, “ãe” fica “ân”, “oi” fica “ô”, “ois” fica “ôs”, etc.
Coimbra e Lisboa levam meio ponto cada uma porque pronunciam quase todos os ditongos corretamente, exceto o ditongo “ou” que pronunciamos “ô”.
Só os sotaques do Norte é que pronunciam este ditongo corretamente “ou” portanto só Porto e Braga é que levam 1 ponto.
E se ficássemos por aqui já teríamos um empate a 2 pontos entre Porto, Braga e Coimbra, e portanto de um ponto de vista de regras e de pronúncia de vogais, consoantes e ditongos podemos dizer que estes são os que mais respeitam a fonética portuguesa.
No entanto, para encontrar o sotaque mais neutro, temos que ir à quarta característica que é a sonoridade, a cadência. A sonoridade é aquela característica mais subjetiva e difícil de descrever que quando ouvimos uma pessoa a falar percebemos exatamente de onde é que ela é. Há ali algo no sotaque que nos diz a zona do país, às vezes até a cidade de onde ela é, e portanto eu vou dar pontos àqueles sotaques que forem mais neutros. Aqueles sotaques que quando a pessoa fala é difícil perceber de onde ela é. Poderia ser de um vasto leque de diferentes cidades ou áreas geográficas do país.
E indo pela sonoridade, acho que é aqui que o Centro do país, neste caso Lisboa e Coimbra se destacam por serem mais neutras. Quando ouvimos uma pessoa do Norte a falar sabemos imediatamente que é do Norte. Tem uma cadência mais musical, tem umas vogais mais abertas, é muito óbvio.
Os sotaques das ilhas também se destacam por serem muito obvios, assim que alguém da Madeira ou dos Açores abre a boca, é muito fácil perceber de onde é que eles são e muito difícil perceber aquilo que eles dizem.
Os sotaques do Alentejo e do Algarve também têm aquela cadência mais arrastada e anasalada, que permite perceber exatamente que uma pessoa é dali e portanto acho que só ali aquela região do centro do país, desde Lisboa até Coimbra e um bocadinho mais acima é que têm um sotaque mais neutro. Que quando ouvimos uma pessoa a falar não conseguimos perceber se ela é de Lisboa ou de Setúbal ou de Leiria ou de Coimbra; é tudo assim um bocado mais parecido.
Portanto tenho de dar um ponto ao sotaque de Lisboa e ao de Coimbra, o que faz com que o sotaque de Coimbra ganhe então o prémio de sotaque mais neutro de Portugal. O meu amigo Rui de Coimbra vai ficar muito contente quando vir este vídeo, porque ele disse-me isto quando me enviou as gravações das frases:
“Eu não tenho sotaque por isso o meu sotaque não existe. Coimbra não tem sotaque.”
E ficamos por aqui, espero que tenham gostado e que tenham aprendido a distinguir alguns dos diferentes sotaques de Portugal.
Tenho de agradecer a todos os meus amigos que me enviaram as gravações com as diferentes frases para eu poder analisar os seus sotaques e um grande muito obrigado a todos aqueles que me apoiam no Patreon e que ajudam a manter este canal vivo, para aqueles de vocês que me quiserem apoiar e ter acesso a conteúdos exclusivos, à comunidade Portuguese with Leo no Discord e a muitas outras coisas, o link está na descrição.
Muito obrigado, um grande abraço e até para a semana!