Viagem pela Língua Portuguesa

VIAGEM PELA LÍNGUA PORTUGUESA

 

 

“Floreça, fale, cante, ouça-se e viva

A portuguesa língua, e já, onde for,

Senhora vá de si, soberba e altiva”

(António Ferreira, séc. XVI)

A língua portuguesa é uma língua milenária. Nascida da evolução do latim vulgar, trazido pelos conquistadores romanos, pelos mercadores e colonos, foi caldeada com os dizeres indígenas e adaptada às formas de articular do povo.

Conservou a morfologia original (substantivos, adjetivos, numerais, pronomes, preposições, verbos e advérbios) e a sintaxe (sujeito, predicado, concordâncias, o uso dos tempos e modos verbais, e, “grosso modo”, as regras da colocação das palavras na oração e das orações no discurso).

Na grafia, porém, a língua portuguesa só começa a emergir do latim vulgar, com uma certa autonomia no século XIII, como testemunha a “notícia do torto” (1211?) que “fezerum a laurencius fernandiz por plazo que fez Gonçalo lauriz(?) anto a suos filios e Lourenço da quanto poderum aver de bona de suo pater”.

Em resposta a Baco que queria impedir a chegada dos portugueses à Índia, “Sustentava contra ele Vénus bela, / Afeiçoada à gente Lusitana, /Por quantas qualidades via nela / Da antiga tão amada sua Romana; /Nos fortes corações, na grande estrela, / Que mostraram na terra Tingitana, /E na língua, na qual quando imagina, /Com pouca corrupção crê que é a Latina.” (Camões, “Os Lusíadas” I, 33)

Desculpemos a simpatia de Vénus e a sua expressão “com pouca corrupção crê que é a latina”. Historicamente, não foi pouca a corrupção fonética-mórfica que sofreu o latim vulgar. Basta lembrar as várias formas que sofreu a palavra “ maculam” que, em português, evoluiu para “mancha” e para “malha”, e a substituição dos casos pela generalização progressiva da relação preposicional (por exemplo, “pax Dei” por “paz de Deus”, “Paulus Romae  praedicavit”, por “Paulo pregou  em Roma”, “iter via Appia” por “passei pela via Ápia”). Foi da pequena ou grande corrupção que nasceu a língua portuguesa.

A grafia desses textos é uma grafia foneticista, isto é, reflete a viva e dinâmica fala do povo. Foi um processo longo a tentativa de se encontrar uma grafia uniforme: Gil Vicente não grafava como D. Dinis, Camões não grafava como Gil Vicente, Bocage não grafava como Camões. Só no século XIX, devido à grande produção romanesca de Herculano, Camilo e Eça, se chegou a uma grafia consensual, uma “ortografia”, embora não oficializada. Posteriormente, fracassaram os projetos de acordo ortográfico com o Brasil (1911 e 1945). Mas o que não se conseguiu entre estes dois países, foi já conseguido entre Portugal, Brasil (aqui, adiado o acordo para 2016) e Cabo Verde, e está em vias de o ser nos restantes cinco países de expressão oficial portuguesa, que a tal se comprometeram e a ela se vincularam. É extraordinário que se tivesse acordado, ou esteja em vias de o ser, uma ortografia comum, em todos os países de expressão oficial portuguesa (uma população de cerca de 230 milhões de habitantes).

Mas, para além da ortografia, há um aspeto que se deve salientar, e é o que se relaciona com a prosódia. O latim erudito e o latim vulgar, por arrastamento, não usavam o acento gráfico para marcar a sílaba tónica. Na língua portuguesa, de uma maneira geral, as palavras conservaram a sílaba tónica que tinham na origem, (há exceções, devido a evolução fonética dessas sílabas tónicas, mulieres>mulheres, a palavra proparoxítona passou a paroxítona, pela palatalização li>lh), mas estabeleceram-se regras para a acentuação gráfica que qualquer gramática da língua portuguesa reproduz. No capítulo da prosódia, há alguns casos que convém salientar e que interessam a todos os falantes, no mundo dos quais convém destacar os tradutores, principalmente, os de tradução simultânea, portanto, oral:

1. Flórida é um dos mais importantes Estados dos Estados Unidos da América. Descoberta pelos espanhóis que, admirados pelo colorido do ambiente, deram-lhe o nome de Florida. Os ingleses “inglesaram” o nome para Flórida, mais de a harmonia com o acento inglês. Seguidores do que vem de fora, esquecemos a peninsular Florida, mas nada impede que, nos nossos dizeres, o usemos, pois, esse é o nome original.

2. Coexiste a prosódia popular e a prosódia erudita em rúbrica / rubrica, e em púdico / pudico. O VOP reconhece púdico e pudico, aceita rubrica, mas não reconhece rúbrica. Muito antes dele, já Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Gramática Portuguesa, assinalava que no Brasil prevalecia pudico e rubrica, mas em Portugal se preferia púdico e rúbrica. Os linguistas têm “razões que a razão desconhece”.

3. Por influência das outras pessoas do presente do conjuntivo, o povo, marcado fortemente pela liturgia católica (“para que sejamos dignos das promessas de Cristo”) pronuncia sejamos como proparoxítona, quando, pela etimologia ela é paroxítona. É como paroxítona que o VOP a reconhece. É de assinalar que, hoje, as novas gerações, mais escolarizadas, sabendo que a 1ª pessoa do plural do conjuntivo de todos os verbos portugueses é paroxítona, tendem a dizer sejamos (paroxítona). É um caso curioso em que o povo corrige o povo.

4. Período, palavra derivada do grego, é proparoxítona. O povo, obreiro da língua, fá-la paroxítona. Mas não parece aceitável que utentes esclarecidos escrevam-na proparoxítona e pronunciem-na, sempre, estranhamente, periudo, paroxítona. Esta falta de rigor revela um desrespeito, incompreensível, pela língua.

5. Mas a verdadeira pedra no sapato é o plural de júnior, e de sénior, respetivamente, juniores, e seniores. Os agentes desportivos, rádios, televisões, jornalistas, jogadores e comentadores desportivos e o povo, em geral, pronunciam esses plurais com as sílabas tónicas aquém da antepenúltima sílaba, isto é, pronunciam juniores, seniores, caso único, seria um verdadeiro prodígio, se não fosse contrário à índole da língua. Esses plurais são paroxítonos, são-no por etimologia e, assim, reconhecidos pelo VOP. O plural de sóror é sorores, paroxítona, assim pede a etimologia e assim é reconhecido pelo VOP, embora a proparoxitonia popular não vá contra a índole da língua. O uso popular decidirá o seu destino.

Dissemos que o povo é o verdadeiro obreiro da língua, não dono, como ficou patente nos casos referidos, e, talvez, fosse justo admitir que o podem ser, também, a comunidade mais escolarizada, estudantes esclarecidos, professores, jogadores melhor falantes, tradutores e estudiosos da língua. Todos, como povo, podem, insistentemente, pelo exemplo, pelo uso das formas prosódicas (a ortografia está “acordada”) mais conformes à índole da língua, contrariar a tendência relativista de que tudo é legítimo e aceitável.

Tem alguma atualidade o hino de Francisco Rodrigues Lobo (sec.XVII), em louvor da língua portuguesa. Pois “é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver, acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada, com um modo senhoril; para cantar é suave, com um certo sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias…. e, para que diga tudo, só um mal tem, e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte”.(“Corte na Aldeia”, Diálogo I)

Maria Manuel Monteiro Ricardo

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