A nossa língua é um instrumento fabuloso, mas – como todas as línguas – é também campo de batalha. Imagino uma família à volta da mesa, nesta Noite de Natal. Juntam-se, na verdade, duas famílias: a do Pedro e a da Ana, casados há cinco anos. Pela primeira vez, os pais de ambos passam a Consoada juntos.
O Pedro nasceu em Lisboa e os pais vivem em Oeiras. A Ana nasceu em Bragança e os pais ainda lá vivem. À volta da mesa, conversa-se animadamente, com o calor especial daquela noite. A Ana vai aproveitar para contar que está grávida, mas ainda não chegámos a esse momento da noite. Enquanto o bacalhau não sai da cozinha, há uma enormíssima discussão.
Tudo começou quando, na televisão, alguém é entrevistado e usa a palavra «vermelho». A mãe do Pedro diz que não percebe donde vem aquela moda do «vermelho». Quando era nova, todos usavam «encarnado»! Que complicação…
Os pais da Ana franzem os olhos e explicam que nunca, em toda a vida, usaram a palavra «encarnado» de forma habitual. Já a ouviram na televisão, sabem bem o que significa, mas nunca foi uma palavra corrente.
O Pedro ri-se e conta a história de uma amiga que reclamou, junto da professora do filho, por esta ter usado a palavra «encarnado», que – segundo a tal amiga – foi uma invenção do Estado Novo. A mãe dele põe as mãos na cabeça, horrorizada com tal teoria.
A discussão avança, animada. É Natal, ninguém se enerva verdadeiramente. O pai do Pedro tenta explicar que as duas palavras não significam a mesma coisa, que as cores são ligeiramente diferentes. A discussão avança para a definição do exacto tom de vermelho e o exacto tom de encarnado. Ninguém se entende.
Se por ali aparecesse o Fantasma da Língua, inevitavelmente vestido de Camões, talvez explicasse, na sua sabedoria impossível de quem conhece os usos de todos os falantes do português, que as duas palavras são usadas como sinónimos em quase todas as situações. O pai do Pedro horroriza-se. O Fantasma toca-lhe, gentilmente, nos ombros, dizendo-lhe para não se enervar: em todas as línguas existem sinónimos e as palavras, muitas vezes, ganham significados novos, aproximando-se ou afastando-se de outras palavras.
Quanto à grande questão do vermelho ou encarnado, o Fantasma não diz qual é a melhor opção: depende da família. Afirma apenas que a palavra mais usada, em todo o país, é «vermelho» – e não é de agora: aparece várias vezes n’Os Lusíadas e muitas vezes n’Os Maias (limitei-me a procurar nestas duas obras). Já a palavra «encarnado» – que não foi, note-se, inventada por Salazar (aparece n’Os Maias, por exemplo) – é usada como alternativa, principalmente na zona de Lisboa e arredores, embora também se encontre noutras zonas do país. Acredito que, em certas famílias e meios, será mais comum. Note-se que há usos diferentes para uma e outra palavra. No que toca à política, «vermelho» está associado ao PCP. No futebol, o Benfica é associado à palavra «encarnado». Há também nomes e expressões fixas em que todos usamos uma ou outra das alternativas. Em Peniche, de onde venho, há uma famosa Casa Encarnada, que não me lembraria de chamar «Casa Vermelha». Já o Capuchinho Vermelho terá sempre esse nome por esse país fora, em Oeiras ou em Bragança.
Se o Fantasma da Língua estivesse com tempo, talvez pudesse mostrar à família do Pedro e da Ana o seu telemóvel fantasmagórico, onde procuraria, numa interessante página chamada Google Trends, as diferenças de pesquisa entre «vermelho» e «encarnado» no país. As duas palavras existem e são usadas pelos portugueses. No entanto, há diferenças (muito) significativas. Não há nenhum distrito em que as pesquisas de «encarnado» sejam superiores a 10% das pesquisas relacionadas com a cor. Vamos dos 7% para «encarnado» e 93% para «vermelho» em Lisboa até aos 0% para «encarnado» e 100% para «vermelho» em Bragança. No Porto, há 1% de pesquisas por «encarnado» e 99% por «vermelho». Estes dados estão longe de explicar tudo – mas são um indício da complexidade e da distribuição do uso destas palavras. Se ambas são correctas, a palavra «encarnado» parece ter um uso mais limitado territorial e socialmente.
Se afinássemos a pesquisa e olhássemos para cada localidade, para cada bairro, para cada rua, para cada família, acredito que veríamos um mapa muito interessante, com ruas mais encarnadas, outras mais vermelhas, com famílias onde ninguém usa «encarnado» a outras onde o «vermelho» deixa um suor frio nas testas dos presentes. Este mapa muda ao longo do tempo e, no dia-a-dia, mistura-se: famílias que se juntam, gente que vai viver para outras ruas, para outros bairros, para outras zonas do país… Estas misturas internas serão, hoje em dia, bem mais comuns do que há umas décadas – e o choque das palavras diferentes cria alguns atritos, que a sabedoria ancestral das famílias lá vai resolvendo, em conversas na Consoada ou numa tolerância aprendida – sem falar dos preconceitos que vão persistindo, de quem vive entre gente que diz «vermelho», mas pensa para si, todos os dias, que «encarnado» é que é (e vice-versa).
Este exemplo da cor multiplica-se por outras palavras, por construções gramaticais, por entoações e pronúncias. A língua não é um conjunto simples de palavras fixas e regras claras – é muito mais complexa do que isso. É uma nuvem variável e complexíssima, que ninguém domina na totalidade. Quem trabalha a descrevê-la tem de estudar afincadamente, analisar dados, combater impressões vagas – e anda sempre com dúvidas: a língua é mesmo muito difícil de apanhar.
Não temos todos de estudar a língua. Mas podemos combater a doce ideia de que o correcto é apenas aquilo de que nos lembramos de ouvir desde sempre no nosso restrito meio; podemos desconfiar das explicações simples («a palavra “encarnado” foi inventada por Salazar!»); podemos aceitar que há palavras que se referem à mesma coisa e que nem todos têm de ter as mesmas preferências (aliás, com significado semelhante, temos mais palavras: «rubro», «escarlate»…).
Podemos até escavar mais: numa dissertação de mestrado — «Termos de cores (verde & vermelho)» —, Abdelkarim Diane apresenta dados que mostram a presença na nossa língua tanto de «vermelho» como de «encarnado» desde o século XIII, com predomínio da primeira forma. Curiosamente, até ao século XVIII, «roxo» era um sinónimo muito comum de vermelho, o que se enquadra no que acontece noutras línguas latinas (basta pensar no «rojo» castelhano e no «rouge» francês).
Sim, é possível viver melhor ou pior com a língua – e uma forma de viver melhor é aprender a viver, para lá das nossas palavras, com as palavras dos outros. As diferenças sociais e regionais, na língua, sempre existiram e continuarão a existir. Ainda bem: não só esta tensão social em redor das palavras é excelente material para os escritores, como as discussões à volta da língua apimentam os dias e deixam-nos de coração aos saltos, com as palavras à flor da pele. No fim, se tudo correr bem (e nem sempre corre), brindamos a rir, à volta duma mesa decorada nos tons da Consoada – e, com os olhos a brilhar das luzes da árvore, a Ana revela por fim que há-de nascer, num dia de Verão, um bebé feliz, numa família à portuguesa, que um dia visitará os avós, em Oeiras e em Bragança – onde os abraços serão igualmente apertados e felizes.
(Texto publicado em Almanaque da Língua Portuguesa.)
Marco Neves
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