*** Por João Pimenta, da agência Lusa ***
Pequim, 23 abr 2023 (Lusa) – Na história da relação entre China e Rússia, que hoje assume importância geopolítica global, um jesuíta português desempenhou outrora um papel central, ao liderar as negociações do primeiro acordo fronteiriço entre os dois países vizinhos.
Nascido em São Martinho do Vale (Famalicão, perto do Porto), em 1646, Tomás Pereira integrou durante 35 anos a corte do imperador chinês Kangxi (1654 – 1722).
Entre 1688 e 1689, Pereira representou Pequim nas negociações fronteiriças com a Rússia czarista, que resultaram no Tratado de Nerchinsk, assinado em 1689, e que durante 171 anos delimitou a fronteira entre os dois países. O instrumento foi redigido em latim, língua franca dos jesuítas, e só depois traduzido para o idioma russo e o mandarim.
“Pela primeira vez na História da China, e também da Rússia, se aceitaram as delimitações fronteiriças e os princípios da equidade entre dois Estados soberanos que, até então, e cada um deles, se percecionavam no centro do universo, em torno do qual gravitavam outros Estados a eles sujeitos, vassalos ou tributários”, escreveu a historiadora Tereza Sena, no livro “Tomás Pereira e o Imperador Kangxi – Um Diálogo entre a China e o Ocidente”, publicado no ano passado.
O Tratado de Nerchinsk foi o primeiro de uma série de seis acordos, negociados entre os séculos XVII e XIX, à medida que a Rússia se expandiu rapidamente na Sibéria, gerando escaramuças frequentes com os Qing, a última dinastia da China imperial.
Um acordo final a demarcar as últimas frações da fronteira de 4.300 quilómetros, a maior fronteira terrestre do mundo, só seria finalizado, no entanto, em julho de 2008. Este documento encerrou uma disputa que, em 1969, no auge da Guerra Fria, levou a uma breve troca de tiros entre os dois países, devido a algumas ilhas disputadas ao longo do rio Amur.
O passado expansionista da Rússia no nordeste asiático é agora tabu na China, numa altura em que a relação com Moscovo é vista como fundamental para contrapor a ordem democrática liberal, liderada pelos Estados Unidos. Pequim recusou condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia e culpou o alargamento da NATO pelo conflito. A Rússia desempenha também um papel crucial na segurança energética do país vizinho.
Mas, entre as facções nacionalistas chinesas, o tema não foi esquecido.
Em particular, a cedência da cidade de Vladivostoque à Rússia czarista, como parte dos “Tratados Desiguais”, que a China foi obrigada a assinar com as potências europeias no século XIX – o “século da humilhação” – é frequentemente lembrado com revolta nas redes sociais do país, apesar dos esforços do regime para censurar o tópico.
Em 2020, uma partilha da embaixada russa em Pequim, a celebrar a fundação de Vladivostoque, na rede social Weibo, o Twitter chinês, foi alvo de críticas por diplomatas, jornalistas e internautas chineses.
Shen Shiwei, jornalista da televisão estatal CGTN, afirmou que a partilha “reavivou as memórias [dos chineses] sobre aqueles dias de humilhação na década de 1860”. Zhang Heqing, um diplomata chinês colocado no Paquistão, reagiu assim: “Isto não é o que outrora foi a nossa ‘Haishenwai’?”, referindo-se ao nome chinês da região antes de ser anexada pela Rússia.
Em março passado, Zhou Libo, conhecido apresentador de televisão chinês, foi banido do Weibo, após ter questionado a aproximação da China à Rússia, nas vésperas da visita do Presidente chinês, Xi Jinping, a Moscovo.
Numa partilha acompanhada por uma imagem que expõe os territórios russos que, segundo Zhou, deviam pertencer à China, o apresentador escreveu: “Lembrem-se deste mapa! O retorno ao seu formato original é o desígnio do Grande Rejuvenescimento da Nação Chinesa!”.
O conceito do “Grande Rejuvenescimento da Nação Chinesa” é uma referência à agenda lançada por Xi, que visa retomar o papel secular da China como potência global. Isto inclui a reunificação com Taiwan.
Um utilizador reagiu assim: “Hoje, só podemos ser pacientes, mas o povo chinês não se esquece e, geração após geração, vai continuar a lembrar-se!”.
Outro internauta atirou: “Esta terra ancestral vai voltar a casa no futuro!”.
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Biografia de Tomás Pereira
Tomás Pereira nasceu em São Martinho do Vale, perto de Famalicão, a 1 de novembro de 1645. Após concluir o ensino secundário no colégio Jesuíta de Braga, ingressou na Companhia de Jesus, em Coimbra, em 1663.
Três anos depois, Tomás Pereira partiu para Goa, onde continuou os seus estudos até chegar a Macau em 1672. Neste território, concluiu o curso de Humanidades e Teologia no prestigiado Colégio de São Paulo.
Em 1671, o Imperador Kangxi (1654 –1722) convocou Tomás Pereira para a sua corte devido aos seus afamados conhecimentos científicos e musicais. Em pouco tempo, o jesuíta português passou a integrar os círculos mais restritos de Pequim, tendo conquistado a confiança de Kangxi, de quem foi tutor, intérprete e conselheiro até morrer em 1708.
Esta proximidade terá contribuído para que o Imperador Kangxi decretasse em 1692 o “Édito da Tolerância”, que permitia a conversão e a prática do cristianismo na China e que constitui um marco no diálogo com o Ocidente.
Durante os 36 anos em que frequentou a Cidade Proibida, Tomás Pereira exerceu várias funções de confiança do Imperador, entre as quais se destaca a direção do Observatório Astronómico em Pequim, instituição responsável pela elaboração do calendário oficial utilizado em todo império e nos seus Estados tributários. Este posto, equiparado a categoria do mandarinato, conferia considerável influência junto da corte.
Tomás Pereira contribuiu de modo significativo para a difusão da música Ocidental neste país. Traduziu livros de teoria musical, orientou a construção de instrumentos, e ensinou o Imperador Kangxi a tocar peças europeias. Enquanto Mestre de Música da Corte Imperial, impulsionou a elaboração da obra “Lülü Zhengyi Xubian” – que traduz para a língua chinesa o sistema ocidental de notas musicais – e a construção do primeiro órgão de tubos da China, localizado na igreja de Natang (atualmente conhecida por Catedral Sul ou da Imaculada Conceição).
Na tarefa de missionação que lhe tinha sido confiada, Tomás Pereira exerceu altos cargos, incluindo o de Reitor do Colégio Jesuíta (1688 – 1691), Visitador da Província do Norte da China (1687 – 1688; 1691 – 1692), e Bispo Auxiliar de Pequim (1692 – 1695).
No domínio da diplomacia, Tomás Pereira foi um dos dois jesuítas que integraram a delegação chinesa que negociou com êxito o Tratado de Nerchinsk, assinado com a Rússia czarista a 27 de agosto de 1689. Este foi o primeiro tratado de paz celebrado por Pequim e Moscovo e que durante 171 anos delimitou a fronteira entre os dois Estados. Importa observar que o referido instrumento foi redigido em latim, língua franca dos jesuítas, e traduzido para o idioma russo e o mandarim.