Pedro Calafate, Professor catedrático da Universidade de Lisboa |
O benefício da unidade da língua pode ser avaliado pelos textos de António Vieira sobre a pluralidade das línguas no Brasil
«Há línguas entre eles de tão escura e cerrada pronunciação, que verdadeiramente se pode afirmar que se não ouvem. Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais, ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas ou três semelhantes, ou compondo-se com mistura de todas elas: uma tão delgadas e subtis, outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua: outras tão curtas e subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão, sendo certo, em todo o rigor, que as tais línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido»
António Vieira, Sermão do Espírito Santo.
«Chegada a navegação ao fim, acrescentem-se os fortíssimos obstáculos com que, contrariados, somos retardados e impedidos, por longa fatalidade, do múnus da pregação. Quando, finalmente, penetramos nas selvas e florestas da barbárie, achamo-nos completamente mudos e surdos; mudos, porque falando não somos entendidos; surdos, porque ouvindo não entendemos; por isso, somos forçados a incumbir-nos, ou quase a sucumbir, da pesadíssima tarefa de aprender as suas dificílimas ou obscuríssimas línguas, sem nenhum guia ou luz que nos oriente, arrancando dos fundamentos as formas totalmente abstrusas das novas gramáticas e, de tão obscuras, como que adivinhando-as: quando aos Apóstolos, pelo contrário, foram ensinados num momento, sem esforço nem estudo da sua parte, os dialectos de todos os povos»
António Vieira, Clavis Prophetarum, livro III, trad. de Arnaldo Espírito Santo, p. 156/7.
«Mas se os ministros do Evangelho se aplicassem à propagação da fé para a promoverem do mesmo modo que até hoje, seria necessário que os pregadores, distribuídos por toda a parte, visitassem, penetrassem e profundamente perscrutassem todas as regiões do mundo integralmente, sem deixar de fora nenhuma cidade, nenhuma vila, nenhuma aldeia, nenhuma casa, nenhuma choupana ou tugúrio, nenhum monte, nenhum vale, nenhum recanto, nenhum antro, nenhuma caverna ou esconderijo, enfim, nenhuma toca de árvore carregada de anos, que pudesse acoitar um homem; seria necessário que vivessem, e mais, morressem com os que aí habitam, até que mutuamente se entendessem e compreendessem, o que ensina e o que ouve, nesta espécie de comunicação sensível e oral em que se encontrassem presos e enredados em novas dificuldades, nunca imaginadas, ao contactarem com uma tal rudeza dos selvagens que, em palavras articuladas, não como os restantes seres humanos, mas à maneira do mais baixo refugo dos irracionais, parecem coaxar como rãs, grunhir como porcos, assobiar como as serpentes e, deste modo soando ou zunindo, mais propriamente do que falando, comunicam entre si e dão a conhecer os seus pensamentos, se é que os têm, perante a estupefacção dos estranhos que nada compreendem»