Cabo Verde não é África, os cabo-verdianos são “pretos especiais” e os mais próximos de Portugal. É o país da mestiçagem, a “prova” da “harmonia racial” do luso-tropicalismo. Durante anos esta foi a narrativa dominante. Ser ou não ser africano ainda continua como ponto de interrogação.
Jorge Andrade só fala crioulo. Sabe português mas escolhe a língua cabo-verdiana como meio de comunicação para afirmar a sua africanidade e marcar a distância do passado colonial. “O crioulo é uma arma de intervenção”, explica no estúdio da Rádio de Cabo Verde, onde dirige o único programa de rádio que fala das questões africanas. “A nossa capacidade de perceber, comunicar, pensar, sonhar é toda em crioulo. A gente sente-se livre quando se expressa em crioulo, e se sente oprimido quando fala a língua dos colonos.”
Clarificando, Jorge Andrade não é contra Portugal, nem contra os portugueses ou contra a língua portuguesa — é contra o imperialismo cultural europeu “sobre África e os africanos”. Nem sequer tem problemas em falar português. Mas sempre que puder usa o crioulo. Sempre que consegue, força os portugueses a tentar ouvir e falar em crioulo.
Ele é uma figura carismática e isso percebe-se pela forma como chega ao bairro Ponta d’Água em Junho deste ano, se senta em plena rua em frente a um grupo de jovens e fala das questões raciais como um pastor a espalhar uma mensagem, cheio de convicção e fé. É um homem que não está com meias palavras para dizer o que pensa. Tem umas longas rastas, presas numa espécie de touca branca, que lhe cai para a camisa branca e gravata escura.
Talvez por sabermos que viveu vários anos nos Estados Unidos, ao vê-lo em conversa com os jovens do bairro, lembramo-nos de figuras como Martin Luther King. Mais facilmente recorre a uma palavra em inglês do que em português para explicar melhor o que pensa. O grupo de cerca de dez jovens olha-o e ouve-o atentamente. A noite vai caindo, mas nem por isso há desmobilização ou desinteresse — pelo contrário, a conversa aquece à medida que mais gente se junta no passeio. “O interessante é que os africanos que estão fora do continente têm mais conhecimento sobre África do que nós que estamos cá”, comenta. “O nosso conhecimento de África é quase nulo”, lamenta, quando fala para os jovens. “A presença de África dentro da Bíblia, por exemplo, como é?”
Jorge Andrade falará do papel da religião e das novas igrejas, que ficarão mais lotadas se não se conseguir passar a cultura africana aos jovens, acredita. “Se África é uma religião, eu sou um pastor”, comenta. “Mas cada um é pastor da sua própria consciência.”
A missão diária de Jorge Andrade, que anda de bairro em bairro de forma discreta, é espalhar a palavra sobre a africanidade entre os jovens que têm sido bombardeados com as imagens miserabilistas de um continente onde existiu uma História antes de os europeus lá chegarem.
Aparece uma mulher no grupo, Keyla. Vem aprender sobre África e pan-africanismo, algo que não se ensina na escola. Um dos jovens, Tosh, 35 anos, explica que acha interessante o ensino e a narrativa oficial, desde cedo, terem passado a ideia de que os cabo-verdianos são diferentes dos “irmãos da costa ocidental”. Mandados para postos de chefia em outras colónias pelos portugueses, “até hoje os cabo-verdianos acham que não são africanos, que são mais inteligentes, mais sábios do que os irmãos que estão no continente”. Isso “veio desde a colonização, foi-nos incutida essa ideia. Hoje está a repercutir-se na nossa sociedade. Temos um grande problema de identidade. Mesmo que a História o mostre, o cabo-verdiano rejeita porque está no nosso DNA desde a colonização. Essa é a sociedade que temos, uma autêntica confusão”.
Tem havido ao longo dos anos várias definições de Cabo Verde como um país que não está nem em África nem na Europa. Muitos dos próprios cabo-verdianos incorporaram este conceito, ao ponto de essa ambiguidade fazer parte da definição de identidade que é descrita por algumas pessoas. Com isso vem a questão da mestiçagem, que Jorge Andrade define como “uma violência”: “Na hora em que se pensa em mestiçagem, pensa-se automaticamente em violação sexual” de uma africana por um europeu. “Na nossa cor de pele, é constante a lembrança do impacto do colonialismo e da escravatura”, afirma.
Uma das bandeiras de Jorge Andrade é o ensino da História de Cabo Verde antes da chegada dos europeus a África: “África tinha milénios de civilizações grandes e fortes”, contextualiza. “Essa é uma falha grave, Cabo Verde fala da sua identidade a partir da chegada dos europeus. Como é que um povo pode construir a sua história num acto de degeneração? Nunca um cabo-verdiano se pode sentir livre quando a sua História começa com a escravatura — fica com crise de identidade quando pergunta: quem sou eu?” Um pequeno exemplo: “Havia o império do Mali, séculos antes da chegada de portugueses; África teve a sua renascença antes, com o Egipto.”
Jorge Andrade não tem dúvidas de que a distanciação que os cabo-verdianos fazem de África é uma questão racial. “Enquanto houver supremacia branca, todas as coisas estão confundidas.”
Ele define-se como um afro-cabo-verdiano. Lembra que no arquipélago há sangue do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné-Bissau — a mistura não é apenas Cabo Verde e Europa. Acha determinante transmitir histórias da História aos jovens cabo-verdianos para repor uma versão que é silenciada — e para elevar a auto-estima, fazê-los levantar a cabeça.
“Somos africanos, obviamente. Mas, na prática, qual foi a política aplicada desde 1975 em defesa dos interesses africanos? Nenhuma. O Ministério da Educação que modelo de educação tem?” Da Saúde ao Direito, as referências vêm todas de Portugal — e as soluções não são, nem podem ser, as mesmas porque os problemas africanos são diferentes dos europeus.
A ambiguidade é tal que um cabo-verdiano chega a uma agência de viagens na Praia, a capital, na ilha de Santiago, e só vê pacotes turísticos para a Europa — nem um para África, acusa. “Sabe que não havia mapas de África em nenhuma livraria em Cabo Verde? Como é possível num país que é um exemplo de democracia não ter um mapa só de África?”
A projecção que os europeus fazem sobre o africano, o domínio económico, social, político e cultural que exerce influência e determina a capacidade de desenvolvimento ou de subdesenvolvimento com base na raça é o que significa para ele o racismo. “Malcolm X dizia: ‘Quem vos ensinou a odiar a cor da vossa pele? Quem ensinou a odiar o formato do vosso nariz, da vossa boca, da textura do vosso cabelo? Foi o mesmo homem que quer continuar a ter domínio sobre vocês’.” Ler o artigo completo (Público)