Texto de Lauro Moreira, em quincasblog
O próprio título que escolhi – Se Calhar…- já denota uma certa diferença de acepções, uma vez que no Brasil a expressão é sinônimo de ocorrer ao mesmo tempo, coincidir, ocorrer no tempo oportuno, etc., enquanto em Portugal ela é sobretudo sinônimo muito usado de talvez, pode ser que…, etc. Por outro lado, as disparidades são por vêzes tão acentuadas, que achei melhor acrescentar ao final do texto um glossário para o melhor entendimento dos utentes brasileiros da última flor do Lácio… Bom proveito!
SE CALHAR
Em Lisboa, Manuel encontra-se um dia com António, seu antigo colega e amigo de Coimbra:
Manuel – Olá António, muito gosto em vê-lo. Há imenso tempo não nos encontrávamos! E veja lá a coincidência: na semana próxima vamos fazer uma reunião do nosso grupo a Coimbra, sabias? Se calhar, podias vir também. Eu gostava muito de conversar com o António com mais calma, a relembrar nossos velhos tempos de estudantes.
António – Ó pá, tenho muito pena, mas não creio que possa, pois estou agora a trabalhar numa gelataria, que me consome todo tempo. Uma maçada! Entretanto, eu também gostava de vê-lo logo, pois creio que temos imensas coisas a conversar. Inclusive desejava contar-lhe umas passagens engraçadas que vivi nos últimos meses, quando ainda trabalhava na agência de viagens e lidava amiúde com turistas brasileiros em digressão por Portugal. São simpáticos esses brasileiros, pá, mas de língua portuguesa não percebem nada.
Manuel– Pois não é? Também eu tenho imensas histórias com esses brasileiros, que vêm passear a Portugal e muitas vezes acabam por não perceber o que estamos a dizer. E ainda nos acusam de ter um “sotaque” difícil. Ora, pá, acento tem eles, pois a língua nasceu cá e se chama portuguesa…E os gajos a reclamar de nosso “sotaque” e de nossas palavras e expressões que eles não conseguem perceber…Tem piada tudo isso! Pois imagine que quando lhes dizia coisas como multibanco, pastilha elástica, penso rápido, dorido, fita-cola, verniz de unhas e pica no rabo, eles me “corrigiam”, dizendo tratar-se, no Brasil, de caixa eletrônico, chicletes, esparadrapo (veja que loucura!), dolorido, durex (essa é muito boa), esmalte e injeção na nádega (essa, então, é ótima, não achas?).
António – Pois, pois. Eu cá também já tive essa experiência curiosa em minhas várias viagens ao Brasil. Os advogados cariocas, meus interlocutores, não percebiam quando lhes falava sobre pessoa singular ou pessoa coletiva, ou, quando ao telefone, lhes perguntava “Está lá?”. Nem quando eu mencionava palavras como auscultador, sinal de marcar, atendedor de chamada, impedido, ou serviço automático.
E uma certa vez minha mulher entrou numa loja de roupas em São Paulo e, aproveitando os saldos, pediu umas cuecas castanhas para ela, mas de tamanho mais pequeno que as da montra…. E, como prendas de Pai Natal, quis comprar para mim um fato de linho, uma camisola e uma gabardine, e para os miúdos, algumas calças de ganga, dois fatos-macaco, umas peúgas, três fatos-de-banho, etc. Depois, pediu ao atendente que embrulhasse tudo para oferta e metesse num saco. O gajo não percebeu nada… Aliás, como era uma loja grossista, saiu tudo por uma bagatela. Pena que os fatos-macaco dos putos não lhes assentaram nada bem.
Doutra feita, como pretendíamos oferecer um jantar a uns amigos, no apartamento que havíamos arrendado por uns meses no Jardim Paulista, fomos às compras ao Mercado Municipal – e novamente tivemos algumas dificuldades linguísticas. Tudo começou quando passamos pelo talho para comprar uns kilos de carne de borrego, vitela e lombo, além de umas febras, já que pretendíamos preparar uma barbacoa, com umas bifanas e uns bifes empanados e uns pregos… Passámos em seguida a procurar hortaliças, grelos, filetes, gambas, fiambre e espargos. De entrada, pretendíamos oferecer um esparregado, um esparguete e uns pastéis de bacalhau com batata a murro e batata salteada, ao molho de piri-piri. De sobremesa, umas frutas, como dióspiro, ananás e alperce, além de doces conventuais, pastéis de nata e leite-creme. Como bebida, vinho verde tinto, espumante e um bom bagaço. Pois saiba que quase tivemos que voltar à casa de mãos vazias, resignados a servir aos convidados apenas uns ovos escalfados, uns joaquinzinhos que tínhamos ao frigorífico, umas tostas mistas e umas sandes de fiambre. E o escândalo maior deu-se quando passamos pela padaria e pedimos um cacete e uma carcaça. Os gajos quase morriam de rir, e nós não conseguíamos perceber a razão de todo esse gozo.
Manuel – Muito boa essa! Pois isso lembra-me também uma vez que acompanhei outra malta de brasileiros aldrabões cá em Lisboa. Chegaram ao aeroporto queixando-se do voo, das hospedeiras da TAP, do atraso na descolagem e na aterragem, da ementa, de tudo. Mais tarde, decidiram apanhar o eléctrico e viajaram em grande algazarra até a estação de comboios, e nem deram atenção ao picas, quando este lhes pediu um pouco de silêncio. Em seguida, alguns foram a uma paragem de autocarro, entraram no rabo da bicha e apanharam uma lagarta, enquanto outros acharam que, se calhar, o melhor era subir a uma carrinha de aluguer e dar um passeio pela cidade. Os restantes desceram ao metro, picaram o módulo e não deixaram de se impressionar com a educação dos utentes. Os da carrinha queixaram-se dos travões, do preço do gasóleo, das motas, das coimas, das bermas estreitas e do alcatrão da autoestrada para Cascais, de um furo inesperado, do preço da portagem, do trânsito infernal na hora de ponta, dos peões que pediam boleia, da falta de passadeiras e de parques para o veículo.
No hotel, a malta dirigiu-se à receção, ao rés-do-chão, para registar-se. Entregaram os passaportes, declinaram nome, apelido e morada de cada qual, pediram quarto no sétimo piso, com casa de banho, subiram ao ascensor, carregaram no botão e foram todos tomar um duche. Ao cabo de minutos, um deles chama à receção para queixar-se do autoclismo, que estava sem água.
Uma hora depois, já estavam no bar do hotel, na cave, onde pediram ao empregado de mesa água fresca, natural, e lisa, umas boas girafas de imperial, além de umas tapas e umas espetadas, porque estavam cheios de fome. Ao fim, cansados, estiraram-se todos nos maples da cave e adormeceram sem almofadas.
Ao dia seguinte, após o pequeno almoço, uma das raparigas veio perguntar-me onde poderia comprar “esmalte, batom, uns cadarços e um grampeador”. Só depois de algum tempo percebi que ela queria mesmo era verniz de unhas, lápis de lábio, uns atacadores e um agrafador…
E olha, pá, que se trata da mesma língua!…
Lisboa, 16/12/09
Glossário providencial…
gelataria = sorveteria
fazer uma reunião a Coimbra, estudar a Coimbra = em Coimbra
eu gostava de vê-lo = eu gostaria de vê-lo
imensas coisas – muitas coisas
em digressão por Portugal = em turnê por Portugal
não percebem nada = não entendem nada
veio passear a Portugal = veio passear em Portugal
tem piada tudo isso = é muito engraçado tudo isso
arrendar um apartamento = alugar
durex = camisinha
pessoa singular = pessoa física
pessoa coletiva = pessoa jurídica
Ao telefone
está lá? = alô!
auscultador = fone
marcar um número = discar
atendedor de chamadas = secretária eletrônica
impedido = ocupado
serviço automático = discagem direta
Na loja
cuecas castanhas = calcinhas beges
mais pequenas que as da montra = menores que as da vitrine
prendas de Pai Natal = presentes de Papai Noel
um fato de linho= um terno de linho
uma camisola e uma gabardine = uma camiseta e uma capa de chuva
para os miúdos = para as crianças
calças de ganga = calças jeans
dois fatos-macaco = dois macacões
umas peúgas = meias de homem
três fatos de banho = três maiôs (para homem ou mulher)
pedir ao atendente = pedir ao vendedor
embrulhar para oferta = embrulhar para presente
loja grossista = atacadista
fatos-macaco dos putos = macacões para crianças
No mercado
talho = açougue
carne de borrego = carne de carneiro
lombo = filé mignon
febras = carne desossada, músculo
preparar uma barbacoa = fazer um churrasco
bifanas = carne de porco
bifes empanados = bifes à milanesa
pregos = sanduiches de carne
hortaliças = verduras
grelos = uma verdura semelhante à couve
esparguete = spaghetti, espaguete
pastéis de bacalhau = bolinhos de bacalhau
batata a murro = batata assada inteira e amassada
batata salteada = batata refogada
esparregado = guisado de verdura cozida
passámos em seguida a… = passamos… (pret. perfeito)
ao molho de piri-piri = ao molho de pimenta
dióspiro (ou diospiro) = caqui
ananás = abacaxi
alperce = damasco
doces conventuais = doces típicos portugueses
leite-creme = crême-brulé; crema-catalana
bagaço = aguardente feito de uva
ovos escalfados = ovos cozidos na água (pochê)
joaquinzinhos = peixinhos
tosta-mista = misto-quente
umas sandes de fiambre = uns sanduíches de presunto
um cacete = uma baguette, um filão
Turismo
alta de brasileiros aldrabões = grupo de brasileiros falastrões
hospedeiras da TAP = comissárias da TAP
descolagem e aterragem = decolagem e aterrissagem
ementa = cardápio, menu
apanhar o eléctrico = tomar o bonde
estação de comboios = estação de trem
o picas = funcionário do trem que picota os bilhetes
paragem de autocarro = parada de ônibus
entraram no rabo da bicha = entraram no fim da fila
uma lagarta = ônibus comprido e flexível
carrinha de aluguer = uma van de aluguel
picaram o módulo = picotaram o bilhete
utentes = usuários
travões = freios do veículo
gasóleo = óleo diesel
motas = motocicletas, motos
coimas = multas
bermas = acostamentos das estradas
alcatrão = asfalto
de um furo = de um pneu furado
portagem = pedágio
peões que pediam boleia = pedestres que pediam carona
passadeiras = faixas de pedestre
parques para veículos = estacionamentos para carros
receção = recepção
rés-do-chão = andar térreo
registar-se = registrar-se
nome, apelido e morada = nome, sobrenome e endereço
sétimo piso = sétimo andar
casa de banho = banheiro
carregaram no botão do ascensor = apertaram o botão do elevador
tomar um duche = tomar banho de chuveiro
autoclismo = descarga da privada
cave = sub-solo
água fresca e lisa = água gelada e sem gás
girafas de imperial = copos com cerveja (tulipa)
tapas = tira-gostos, aperitivos
espetadas = espetinhos
empregado de mesa = garçon
cheios de fome = com muita fome
estiraram-se nos maples = deitaram-se nos sofás
almofadas = travesseiros
uma das raparigas = uma das moças
multibanco = caixa eletrônico
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Foto: Lisboa, 8 de fevereiro de 2022. JOÃO RELVAS/LUSA