Santo Antão, terra mater 

A viagem de São Vicente para Santo Antão durava horas, com o mar fustigando de forma inclemente a frágil embarcação que se dava pelo nome de Gavião dos Mares. Mas só  quando fundeávamos ao largo do Paul, é que se via que a viagem, afinal, tinha sido boa. Tudo porque nos aguardava o espetáculo mais insólito que me foi dado viver em criança. Assim que fundeávamos, pequenos botes, conduzidos a remo por possantes homens do  mar, encostavam-se ao maltratado casco do Gavião e mediante uma escada de corda, lá íamos descendo completamente trôpegos, mulheres, crianças, homens e mercadorias, para as pequenas embarcações que pareciam autênticas cascas de nozes a boiar num mar  azul-escuro, denso e revoltoso.

Mal instalados nos botes, molhados por ondas alterosas, entre “ais” e “uis”, lá  conseguíamos chegar ao cais de pedra do Passo. Parecia que tínhamos chegado à boca do  inferno e nada podia fazer-nos acreditar que escaparíamos da fúria do mar batendo no  cais.

É que uma vez o bote amarrado ao cais, os homens do remo iam ajudando os passageiros a saltarem para a terra, isso quando eles literalmente não nos atiravam para os braços robustos dos homens que nos recolhiam no cais.

A viagem de regresso era mais pavorosa, pois às pessoas juntavam-se os animais (cabras, porcos, galinhas) que iam enriquecer os mercados do Mindelo. O vómito e os choros das crianças rolavam soltos pelo convés e a cada onda mais violenta eram invocados os nomes  da virgem Maria e do nosso senhor Jesus Cristo para nos ajudarem naquela travessia mais  que dificultosa.

Esta autêntica via-sacra repetia-se ano após ano, durante as férias escolares que  começavam em julho e terminavam em setembro.

Mas por aí se quedavam as nossas angústias, pois desde o primeiro instante em que  pisávamos terra firme a alegria mais radiosa e ruidosa tomava conta de nós. A partir daquele momento iríamos desfrutar da enorme liberdade que só o campo  proporciona e só as crianças conseguem gozar.

Começava mesmo ali pertinho na propriedade da tia Mariazinha, que tinha o trapiche  mais emblemático e mais cheio de estórias da ilha.

Aí trapichava o boi Napoleão, para nós o símbolo de Blimundo, pois era forte, negro e de  olhar ternurento. Soube depois que trapichou por vinte e cinco anos, um recorde nunca  atingido por nenhum outro boi.

A seguir à propriedade da tia Mariazinha, vinha a boniteza da casa e da propriedade do  tio Júlio, que era administrador do Concelho; lá comíamos bolos sofisticados e bebíamos  limonadas frescas saídas de um enorme frigorífico a petróleo; finalmente, passando pelo Eito, chegávamos a Fornalha, o lugar mais lindo que já vi. Atravessávamos a ribeira verdadeiramente de águas cantantes nas bananeiras, passávamos pelas levadas para  chegar ao pátio imenso onde imperava um magnífico e secular pé de fruta-pão, para nos  entregarmos à ternura da minha linda e meiga mamã Gugú e do austero, mas simpático, papá Jansen.

A partir daí eram só delícias: ir pelo canavial adentro chupar cana, comer mangas debaixo  das mangueiras, subir aos pés de araçá e de goiaba, furtar a deliciosa e preciosa banana  prata ou então ir aos galpões beber calda de cana que fermentava em barris enormes. Isto  para além de tudo o resto, saltar os plares, nadar nos tanques e ribeiras, apanhar camarões  e fdalgas* que assávamos na brasa e aí ao cair da noite ouvir as assombrosas estórias de  gongons*, capotonas*, canelinha* e das bruxas que anualmente se reuniam no Curral da  Russa lá nos confins de Lagoa.

A ilha era ainda os longos passeios de várias horas entre mulas e cavalos, as deslocações  a Povoação e à Ponta do Sol verdadeiramente deslumbrante, o calor abrasador de Porto Novo, tudo misturado com as muitas brincadeiras e traquinices que eu e meus irmãos  juntos com uma data de primos fazíamos ao longo das férias.

Santo Antão é a terra da minha mãe e de toda a minha família materna. Lá aprendi a  admirar a natureza e a ela dedico o meu amor mais arreigado e profundo.

Praia, maio de 2012.

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Vera Duarte

Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina nasceu em Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde. É Juíza Desembargadora, poeta e escritora, formada em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa. Membro das Academias Cabo-verdiana de Letras, de Ciências de Lisboa, Gloriense de Letras. Foi Ministra de Educação Ensino Superior, Presidente Comissão Nacional Direitos Humanos e Cidadania, Conselheira do Presidente da República e Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. Integrou organizações como Centro Norte-Sul Conselho d`Europa, Comissão Internacional Juristas, Comissão Africana Direitos do Homem e Povos, Associação Mulheres Juristas e Federação Internacional de Mulheres de Carreira Jurídica. Recebeu várias condecorações É poeta e autora de vários romances.
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