Timor-Leste: salvar a língua portuguesa e a identidade distintiva

O Externato de São José em Timor durante a ocupação indonésia

Durante 24 anos, os timorenses resistiram, em diversas frentes, à ocupação Indonésia, tendo reconquistado a independência e a liberdade três anos após o referendo de 1999, realizado sob os auspícios da ONU, no dia 20 de maio de 2002.

Além da invasão militar e da comprovada violência física e psicológica, o regime indonésio colocou em marcha uma forte ofensiva cultural, num esforço maciço para indonesiar a sociedade timorense – garante mais importante, a prazo, de uma efetiva integração na Indonésia.

Entre 2001 e 2004, quando fui representante da Fundação das Universidades Portuguesas em Timor-Leste, coordenando localmente as atividades de criação e implementação de licenciaturas em várias áreas, lecionadas em língua portuguesa por docentes das universidades e politécnicos públicos portugueses, pude ouvir a timorenses muitas referências a uma determinada escola de Balide (Díli) que teria tido um papel decisivo para impedir a referida indonesiação cultural de Timor. Depois recordei uma Grande Reportagem do jornalista Rui Araújo, que tinha visto em criança na RTP, em 1983, sob o título Timor Timur, em que a certa altura era entrevistado um professor de uma escola que teimava em ensinar em português e se digladiava com todo o tipo de dificuldades, sem desistir, corajosa e abnegadamente, da sua missão.

Ângelo Ferreira, Investigador do CIDTFF – Universidade de Aveiro

Como alguém dedicado profissional e pessoalmente à Educação, mas também de longa data interessado na questão de Timor, apaixonei-me pelo tema ao ponto de o transformar numa investigação para uma tese de doutoramento em Educação*, que defendi no dia 24 de março deste ano, na Universidade de Aveiro (Portugal), sob orientação do Prof. António Neto Mendes, da mesma universidade, e do Prof. Onésimo Teotónio Almeida, da Universidade de Brown (Estados Unidos da América). Afinal que escola foi aquela, com que propósito funcionou, ainda que não declarado abertamente, e com que impacte na sociedade timorense da época, na causa da libertação e, depois da independência, na construção do estado-nação?

Para responder a estas perguntas, temos de viajar no tempo, de regressar ao passado.

O ataque cultural desencadeado na ocupação indonésia implicou a utilização de diferentes armas, começando pela proibição/perseguição da língua portuguesa, pela imposição da língua indonésia em todos os domínios da vida social, em especial na administração pública, pelo incentivo às migrações de indonésios para Timor e pela massificação de um sistema educativo que disseminasse rapidamente a bahasa indonesia, a Sejara Indonesia, o Pancasila, a cultura e os interesses do invasor, em detrimento de tudo aquilo que garantisse aos timorenses uma identidade própria e única, distintiva na região, fronteira de soberania e garante internacional do direito à autodeterminação. No fundo, as autoridades indonésias agiram com a noção clara de que a língua e a cultura, para além de mecanismos de comunicação e encontro, são baluartes da identidade cultural de um povo e da sua soberania. Educando e convencendo os mais jovens da sua pertença indonésia, era sua esperança que o problema da rejeição se resumisse aos mais velhos e, assim, fosse apenas uma questão de tempo. Mas não foi.

Para sobreviver a todo este dilúvio organizado foi essencial o Externato de São José (ESJ), em Balide, uma escola cujos fundadores (professores, famílias e alunos) tiveram a coragem de abrir e manter em funcionamento a partir de 1976, menos de um ano após a invasão, ensinando em língua portuguesa, contra as orientações oficiais indonésias, até ser encerrada em 1992, pelas razões que já se tornaram óbvias e outras que veremos. Dois padres timorenses, percebendo rapidamente que a violência do invasor não seria apenas física e psicológica, mas também cultural, decidiram abrir aquela escola com o objetivo de preservar uma identidade timorense distintiva, mantendo viva a língua portuguesa, mas também uma cultura mista ou luso-timorense, desde os aspetos da cultura popular à cultura mais erudita, forjada ao logo de séculos no convívio entre a cultura portuguesa e as culturas timorenses.

Contra as imposições indonésias e correndo sérios riscos, os padres Leão da Costa e Domingos da Cunha, apoiados numa comunidade que partilhava os mesmos objetivos, garantiram o funcionamento de uma escola que ensinava em língua portuguesa e com o currículo português adaptado, por exemplo no que dizia respeito à história e à geografia, já despido da maioria dos assuntos portugueses, ainda que falando do encontro ocorrido no século XVI e das heranças culturais, com a religião católica à cabeça. Rejeitaram, assim, o currículo oficial obrigatório, que era mais restritivo e pobre, limitando-se, por exemplo, à língua indonésia e algum inglês, enquanto no Externato se ensinavam várias línguas europeias (inglês, francês, alemão, italiano, latim e grego), ou à história dos feitos indonésios, enquanto em Balide se aprofundava a história universal. Em vez do Pancasila das escolas estatais, cujos valores apregoados eram assassinados no dia-a-dia pela prática dos militares e das autoridades indonésias, o Externato dava acesso à filosofia ocidental e apostava numa formação e prática coerentes com os valores humanistas.

Um acordo estratégico com o Seminário de Nossa Senhora de Fátima, cujo reitor e espiritual eram, respetivamente, os padres jesuítas portugueses João Felgueiras e José Alves Martins, duas figuras notáveis de apoio aos sofridos timorenses e à própria Resistência – sugiro a leitura do seu livro Nossas Memórias de Vida em Timor, um relato fantástico e especialmente informativo sobre o período da ocupação indonésia – foi visionário, educando os seminaristas em turmas mistas (rapazes e raparigas) naquela escola, o que garantia uma socialização inédita e arrojada do futuro clero, mas também uma melhor rentabilização dos recursos docentes, que eram partilhados, e um impacte enorme em termos de abrangência de uma formação de qualidade em língua portuguesa, com efeitos posteriores na população e nos pilares da identidade timorense. A conjugação de forças foi extraordinária e todos os alunos puderam, por exemplo, aprender filosofia, psicologia, línguas europeias (inclusive latim) com os padres referidos, mas também com outras figuras notáveis naquele tempo, algumas das quais faziam jogo duplo com os indonésios, como o Monsenhor José António da Costa (ensinava francês, pois tinha estudado na Europa e trabalhado em Paris na sua juventude), que tantas vezes, como diretor dos Serviços de Educação do Timor Timur indonésio, manobrava as autoridades e avisava a escola para os devidos cuidados sempre que era preciso. Além disso, essa combinação engrossava o número de alunos corajosos, pois muitas famílias tinham receio de inscrever lá os filhos, ainda que o desejassem, por receio de represálias do regime Indonésio. A quantidade de alunos dava força ao facto de se estar também numa escola da diocese e, como tal, sob a tutela do Vaticano, diluindo-se alguma tentação das autoridades para a atacar mais frontalmente, ainda que a vontade fosse grande.

Este ensino abrangente e de qualidade teve um claro impacte na formação de profissionais, assim como na formação de cidadãos com acentuada consciência política e da sua identidade distintiva. Os seus antigos alunos foram-se notabilizando na luta pela independência e, depois, na edificação do novo estado-nação. O estudo evidencia que a escola, ao formar, entre 1976 e 1992, uma nova geração que dominava a língua portuguesa com mestria, contribuiu para fortalecer os laços intergeracionais entre os timorenses, entre aqueles que haviam sido educados em português antes da invasão – nomeadamente os guerrilheiros que constituíam a Frente Armada nas montanhas e matas de Timor e aqueles que eram na diáspora a Frente Diplomática da luta – e os jovens que agora cresciam sob o jugo do invasor, organizando-se mutuamente para lutar, em português, pela preservação da sua identidade cultural e pela sua independência. Afinal, a língua portuguesa não era apenas uma reminiscência do passado, mas um testemunho forte da união dos timorenses e da sua identidade, um instrumento poderoso de afirmação do seu direito à dignidade, à autodeterminação.

Não será acidental que ali tenham nascido os principais movimentos clandestinos, responsáveis por uma ligação efetiva entre a guerrilha, a diáspora e a comunidade internacional, mas também pela organização das principais manifestações de descontentamento face à ocupação, como a que ocorreu frente ao Papa João Paulo II em 1989 ou a que acabou no violento Massacre de Santa Cruz em 1991, decisivas para colocar a opinião pública mundial a favor da causa timorense. Foi ali que se nasceu o próprio Comité Executivo da Frente Clandestina e se elegeram os seus primeiros dirigentes.

Os padres Leão da Costa e Domingos da Cunha, com o apoio férreo das famílias e a simpatia generosa de algumas personalidades, como alguns antigos governadores no período indonésio, souberam resistir à pressão para fechar a escola e acabar com o ensino em língua portuguesa, inclusive da nunciatura em Jacarta, assim como souberam evitar a conotação da escola com as atividades políticas contra a Indonésia, dando de bandeja motivo às autoridades para ações mais musculadas. A sua retirada da escola acabou por fragilizá-la e, em 1992, alguns meses depois do referido massacre no cemitério de Santa Cruz, as autoridades usaram o argumento de que os agitadores eram os seus alunos e seus professores para a fechar.

Creio que se pode dizer, sem exagero, como mostro na minha tese de doutoramento, que esta escola foi a quarta frente da Resistência timorense, a Frente Cultural, tendo sido determinante para salvar a língua portuguesa em Timor-Leste e, assim, uma identidade cultural distintiva na região.

Os seus diretores, pelo menos, ainda não tiveram o devido reconhecimento deste feito grandioso, e totalmente inédito no mundo, de preservação de uma cultura e de uma língua, além de um contributo decisivo para a libertação e independência de um país, neste caso membro de pleno direito da CPLP.

 

*Curiosamente, conclui a tese no dia 7 de dezembro de 2020, 45 anos depois da invasão indonésia. Quando fui contar o número de palavras percebi que eram 250 mil, simbolicamente uma por cada timorense morto por causa da invasão.

 

Sugestões/comentários: angeloferreira@ua.pt

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