República de Histórias e de Sonhos

Nélida Piñon. Rio de Janeiro, Brasil, 05 de novembro 2014. EPA/ANTONIO LACERDA

Se não se publicasse nenhum outro grande romance no Brasil dos anos 1980, salvaria a década, sozinho, A República dos Sonhos (Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1984). Culminância de qualquer carreira literária, Nélida Piñon escreveu-o aos 47 anos, já respeitada como a romancista do Guia-mapa de Gabriel Arcanjo (1961) e d’A casa da paixão (1977), além dos contos da Sala de armas (1973) e d’O calor das coisas (1980), entre outros títulos. São 761 páginas com a admirável história dos homens e mulheres que deixaram a Galiza (Galícia, como prefere a autora) e outras regiões de Espanha para fertilizar com suor e sofrimento a terra brasileira. Saga que recebeu, significativamente, distinções valiosas nos dois lados do Atlântico: os prêmios do Pen Clube do Brasil, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e, concedido por uma instituição espanhola, o Príncipe das Astúrias.

Não por acaso, a escritora faz nascer o galego Madruga em 1900, às portas do que viria a ser, mais que uma virada de século, o advento de um outro mundo, marcado pelas grandes guerras e por novas relações políticas, econômicas e diplomáticas entre países. Na aldeia de Sobreira, onde “não se tem por onde crescer, a não ser para dentro de si mesmo”, é filho único de Urcesina e Ceferino; neto de Xan, patriarca orgulhoso da bela (e, para nós, às vezes estranha) língua em que “jornal” é “xornal”, e “zero” pronuncia-se “cero”. Com apenas 13 anos, deixa a família e embarca em Pontevedra para viver a aventura de conquistar o Brasil, terra, dirá depois, “que nos acolhe primeiro como inimigos, e que só perdoa a afronta da nossa visita na hora do enterro”. A bordo, conhece Venâncio, 13 anos também (andaluz de origem cigana, talvez), de quem se faz amigo para sempre, na luta que começa quando chegam ao Rio de Janeiro. São tantos os galegos entre nós que a palavra deixa de referir-se apenas aos emigrados daquela região a noroeste da Espanha, para designar, genericamente, qualquer estrangeiro, sem distinção de nacionalidade.

Em 1910, o governo espanhol já cortara a ajuda financeira a trabalhadores dispostos, como diziam, a “fazer a América”; mesmo assim, cerca de 180 mil viriam para o Brasil na década seguinte, número inferior apenas ao de portugueses. Nos cem anos contados até ali, o total chega a 500 mil, empregados sobretudo em negócios de cereais e de ferro-velho, quase como escravos, a cumprir jornadas de até 14 horas por dia, seis dias por semana. Sob rigorosa vigilância do governo: em 1907, aprovara-se no parlamento a “Lei Adolfo Gordo”, que expulsava do território nacional todo cidadão de outro país que atentasse contra a ordem pública. Era a inclemência com que se punia o “agitador estrangeiro”, assim chamados pela grande imprensa os imigrantes que davam força ao movimento operário brasileiro, sobretudo no âmbito do anarco-sindicalismo.

Condições adversas, pois, aos forasteiros Madruga e Venâncio, personagens plenos de simbolismo. O primeiro, disposto a tudo para triunfar socialmente, ganhar dinheiro e prestígio, como se egresso de um romance de Machado de Assis; audacioso, determinado, aos 19 anos já é sócio do hoteleiro espanhol que lhe dera o primeiro emprego; da modesta residência na Tijuca, salta para a boa casa que manda construir no então nascente Leblon, um dos endereços da nova burguesia carioca:

Ganhar a vida, em país estrangeiro, equivalia no início a dolorosas amputações. A perda da alma e da língua ao mesmo tempo. Tinha sobretudo o significado primário de tropeçar nas palavras mais banais, perder entre os dedos o que elas poderiam dizer, quando bem usadas. Com a agravante de sua condição de imigrante sujeitá-lo à desconfiança geral (…) Assim, precisou sempre lutar em dobro para ganhar alforria, conquistar a confiança dos senhores legítimos da terra, simular familiaridade com a língua portuguesa (…) Precisava enfim tonificar idealmente o cérebro e os músculos no mesmo passo.

Venâncio, “possivelmente o único homem chegado ao Brasil que contrariou as regras prescritas de acumular bens e ressentimentos”. Desprovido de ambições materiais, logo se decepciona com o presente do país que o encantara; volta-se então para o passado, tempo da colônia e do império, fuga precursora da desorganização mental que o leva a tratamento; suburbano de Quintino, parece criatura de Lima Barreto, pela mágoa com que se reconhece perdedor:

Via-se integrante de uma classe acotovelada nos trens da Central e da Leopoldina, por cujas janelas saltavam os aflitos e desesperados. Em casa, ele e os vizinhos entretinham-se com a sombra das mangueiras e o som da televisão alta aos domingos. Em seus ouvidos ressoava o gol da vitória. Era assim que se manifestava a vida sem consolo. A expectativa do prato melhor aos domingos. (…) Às vezes, vinha-lhe o cheiro do lixo dos terrenos baldios. A ninguém ocorria limpá-los, afugentar os animais roedores. O vento trazia, além do cheiro, o ruído das palavras mentirosas, o caos, mas que alimentavam a esperança de uma comunidade apertada, sem futuro.

Para Madruga, o sonho a que se refere o título do romance é projeto de vida, jogo a vencer, pódio a subir; para Venâncio, tudo não passa de fantasia, de desalento, de frustração, “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”, como no poema de Manuel Bandeira, de quem passa a ser vizinho quando se muda para a avenida Beira-mar. Verso e anverso, portanto, da moeda que carregavam no bolso quando aqui puseram os pés.

Passam-se dez anos e Madruga, de volta à Sobreira natal, casa-se com Eulália, filha de Dom Miguel, que a faz detentora da mesma herança que o avô Xan passara ao agora marido: não deixar morrer as histórias da Galiza, patrimônio secular que vencia o tempo, contos que os velhos narravam com orgulho e altivez – não por palavras frias postas no papel, mas pelas que da boca saem quentes como o pão do forno. Assim também os guardiães de culturas outras com que os galegos, aparentemente, não tiveram contato, como os amautas, incas fiadores da unidade do império por não deixar cair no esquecimento as façanhas nem que inimigos lhes tomassem as riquezas, ou os griôs, verdadeiras bibliotecas falantes no ocidente da África, a quem se deve a tradição oral dos mitos, das crenças, do folclore, das canções de que se faz uma cultura. Mais tarde, Madruga diria à neta:

— Esta graça que temos de narrar se deve ao fato de sermos celtas, Breta. É a nossa maior herança. Mas, também, o que sobra de um povo sem o seu imaginário? Deve ser por isso que o primeiro ato das ditaduras é proibir a imaginação. Nada asfixia mais que nos vermos privados de inventar.

Ponto de convergência da família, a casa no Leblon é o cenário em que afloram as emoções, os rancores, as disputas de afeto e de poder entre Madruga–Eulália e os filhos Esperança (mãe de Breta), Miguel (com a mulher Sílvia), Bento, Antônia (casada com Luís Filho) e Tobias (marido de Amália). Verdadeira sombra de Eulália, Odete é servidora, companheira, confidente, capaz de morrer pela senhora como os ascendentes africanos, a quem devia a cor da pele e a singeleza da alma. Venâncio, comensal aos domingos, é a presença de que carece Madruga para evocar a Espanha e compreender o Brasil. A sugestão de desejo por Eulália, sentimento que talvez o torture sob o peso de valores morais e religiosos, é rio subterrâneo magistralmente levado pela autora a percorrer a história, à semelhança de Machado em Dom Casmurro:

Ambos sempre se esconderam nos recantos escuros, para que não lhes vissem os olhos a lampejar de repente. Um e outro observando-se com cautela. Tão pouco um sabia do outro. E quase ninguém conhecia Madruga. O certo é que os três abriam suas trilhas em meio à bruma, na expectativa de surpreenderem em qualquer um deles um sentimento poderoso.

Nos momentos derradeiros da mulher do amigo, vai ao quarto em nome do que entre os dois ficaria por viver: 

Venâncio ia afastar-se da cama quando Eulália, com voz sumida, pediu que ficasse, um minuto ainda. Quem sabe não se viam pela última vez. Ele retornou à cadeira, quase desfalecia. Pressentiu, de forma concreta, que a estava perdendo para sempre. Sem lhe haver dito as palavras essenciais. Em todos aqueles anos optara pelo silêncio, como meio de comunicar-se com Eulália. E ela, fina e translúcida, acatara-lhe a decisão, julgando-a a mais sábia.

Cinco gerações se passam. Breta, alter ego da autora, assume a herança atávica do trisavô Xan, e aprende histórias da Galiza por ele narradas havia décadas em Sobreira. Como a de Salvador (belo conto, que se manteria inteiro fora do romance), cigano andaluz que tanto bebe quanto cavalga pelo mundo no seu cavalo Pégaso, até o dia em que apeia no Brasil: “Neste país, ficou algum tempo, imerso no mais rigoroso espanto. E porque o que via superava a sua imaginação, julgou prudente desta vez não beber uma só gota de álcool. Ali, a realidade já embebedava, ele percebeu. Assim, permaneceu sóbrio o tempo todo, embora com a sensação de estar bebendo o dia inteiro.”

Menina, Breta já se fazia depositária do que Madruga retivera para o herdeiro que não deixasse morrer a tradição dos ascendentes:

Ele pretendia impor-me o culto da invenção, há muito presente em sua família. Antes mesmo de Xan. Tratando-se de um costume galego, mediante o qual este povo ludibriava o calendário, de forma a impedir que a realidade se esvanecesse. Por este recurso aprisionava-se na algibeira, ao lado do relógio de bolso, uma segunda-feira qualquer, repleta de aventuras. Ainda que houvesse sempre o risco de esquecer algumas dessas histórias. Mas esquecer fazia parte do patrimônio universal.

Mulher feita, confessa-lhe o avô o desalento por não ter podido, com Eulália e Venâncio, contar mais do que um episódio da grande aventura que viveram: “Agora, só nos resta você. A você caberá escrever o livro inteiro, a que preço seja. Ainda que deva mergulhar a mão no fundo do coração, para arrancar a vida dali.”

epa00556376 A escritora brasileira Nelida Pinon em Oviedo, Espanha, 19 de outubro de 2005, onde recebeu o Prêmio Príncipe das Astúrias de Letras. EPA/J.L. CEREIJIDO

Foi o que fez a romancista que se reconhece em Breta, ao compor, com talento e maestria, a saga dos imigrantes galegos na construção da república de sonhos que ainda esperamos ver realizados. Por mais criativos que fossem, não imaginavam, os contadores de histórias como o velho Xan, que deles nasceria uma escritora com a grandeza de Nélida Piñon, cuja obra enobrece a história da Galiza e honra a literatura brasileira.

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Edmílson Caminha

Professor, jornalista e escritor brasileiro, Edmílson Caminha é membro da Academia Brasiliense de Letras, do Pen Clube do Brasil, da Associação Brasileira de Imprensa e do conselho consultivo do Observatório da Língua Portuguesa. Publicou, entre outras obras, Lutar com palavras; Drummond, a lição do poeta; O professor, Beethoven e o ladrão e A solidão no Programa do Jô.
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