Qual era o país de Camões?

A pergunta parece de resposta fácil — mas, se alguém a fizesse a Camões, talvez ele não soubesse responder.

O nosso poeta diria que era português (claro), diria ainda que vivia no Reino de Portugal — e talvez dissesse que Portugal era uma parte (um território) de Espanha. Não nos assustemos: Espanha ainda não era o nome do reino vizinho, mas antes a designação geral para toda a Península, uma transformação da velha palavra «Hispânia». Para Camões, os Portugueses eram uma «gente fortíssima de Espanha».

Não havia ainda a noção de unidades soberanas teoricamente iguais chamadas «países». Os territórios organizavam-se numa rede de dependências e hierarquias, cada um com uma designação própria — havia reinos, condados, impérios, ducados e muito mais, mas não havia países. O importante era o título do soberano. Um ducado era claramente inferior em importância a um reino e podia depender de outros poderes. Hoje, internacionalmente, Portugal e o Luxemburgo são dois Estados igualmente soberanos — são dois países. A ideia de soberanias iguais seria estranha na época de Camões.

Voltemos ao próprio vocábulo. Quando chegou até nós vinda do francês, a palavra «país» tinha um sentido ainda indefinido, um pouco como «terra»: posso dizer que a minha terra é a localidade onde nasci, ou o concelho, ou mesmo a região… «Terra» dá para tudo. «País» também dava para tudo — e ainda hoje podemos usá-la assim (está nos dicionários).

Com o tempo e o desenvolvimento das ideias modernas de soberania nacional, a palavra «país» começou a significar «estado independente» e este uso tornou-se praticamente exclusivo em português, de tal maneira que há quem sinta «país independente» como uma expressão redundante.

E, no entanto, não é redundante, principalmente nas línguas vizinhas. É perfeitamente razoável dizer, por exemplo, «a Galiza é um país» — é um antigo reino com características culturais próprias. Não é independente, mas isso não é condição para se usar a palavra «país». Também em França se usa o termo «pays» de forma flexível. «Le Pays du Loire» é apenas a região do Loire. Em Portugal, este uso faz alguma confusão, tanto que há quem torça o nariz ao nome da comunidade autónoma basca, «País Basco», como se o próprio nome implicasse algum tipo de independência (não que alguns bascos se importassem). Os únicos países não independentes em relação aos quais usamos o termo «país» sem hesitar são a Escócia, o País de Gales e, se virmos bem, a Inglaterra — embora poucos notem que a Inglaterra, tecnicamente, não é independente.

Em suma: uma palavra relativamente recente começou por ser equivalente a «terra» e, ao longo dos últimos séculos, passou a significar «estado independente» — todos aprendemos que Portugal é o nosso país e era o país de Camões, usando a palavra para descrever um passado em que essa mesma palavra ainda não se usava na nossa língua. Não tem nenhum mal: nós falamos do passado usando a nossa língua actual, não a língua de uma qualquer época passada.

Não é só com «país» que isto acontece: temos muitas outras palavras comuns que são mais recentes do que pensamos ou que vão mudando de significado de forma subtil ao longo dos séculos — se Camões aparecesse nos nossos dias, teria muita dificuldade em acompanhar uma conversa.

O passado é um país estrangeiro, já sabemos: até falam outra língua por lá…

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Marco Neves

Docente na NOVA FCSH e investigador no CETAPS. É tradutor desde 2002 e autor de vários livros sobre a língua portuguesa e a linguagem humana. Escreve regularmente no SAPO 24 sobre temas linguísticos e mantém a página Certas Palavras (www.certaspalavras.pt).
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