Lisboa, 21 jan 2022 (Lusa) – “Mário Domingues – A afirmação negra e a questão colonial” é um livro que dá a conhecer a “obra de rebelião negra” deste jovem jornalista santomense, pioneiro do anticolonialismo, construída com palavras e coragem no Portugal de 1919 a 1928.
Desde esta semana nas livrarias, editado pela Tinta-da-China, este conjunto de textos escritos há um século expõe a violência do colonialismo e de todas as formas de subjugação, a condição dos negros, o racismo, os preconceitos e discriminações, denunciando um “projeto de democracia frágil e desigual e um projeto colonizador” durante a Primeira República Portuguesa,
As palavras são do investigador José Luís Garcia, que fez a seleção dos textos, a partir dos artigos escritos por Mário Domingues em jornais como A Tarde, Avante!, Século Ilustrado, ABC, Repórter X, mas sobretudo no diário anarcossindicalista A Batalha, onde começou a publicar com apenas 20 anos.
José Luís Garcia assina ainda um ensaio introdutório sobre a obra, a vida e o contexto de Mário Domingues, que descreve como “um dos maiores símbolos da passagem do negro de uma condição de subalternidade na sociedade portuguesa para autor da sua vida”, e um verdadeiro “precursor da afirmação negra”.
Estes textos cessaram de ser publicados na imprensa com a instauração da repressão às liberdades, as perseguições e a imposição da censura oficial por parte do Estado Novo de Salazar, que institucionalizou a ditadura e fortaleceu o projeto colonial uns anos depois do golpe militar de 1926.
A partir de então, Mário Domingues continuou a escrever ficção – que já iniciara, com a publicação de algumas novelas -, mas sempre com as mesmas preocupações que escondia em “subtextos” nessas narrativas, e começou a fazer traduções, nomeadamente de romancistas da chamada grande tradição, como Walter Scott, Charles Dickens e George Eliot.
Quando se iniciou no jornal A Batalha, Mário Domingues estava já muito atento ao ativismo do movimento negro em Portugal, mas também no resto do mundo, particularmente nos Estados Unidos, que atravessava um dos períodos mais sangrentos dos linchamentos racistas, por parte de supremacistas brancos.
A revolta da comunidade negra norte-americana e a sua tentativa de reagir redundou em confrontos violentos e fatais – que batizaram esse ano de 1919 de “Red Summer”/”Verão Vermelho” –, atingindo o apogeu na zona rural de Elaine, em Arkansas.
Segundo José Luís Garcia, foram precisamente esses incidentes, que culminaram no massacre de Elaine, que deram origem ao primeiro artigo de Mário Domingues em defesa dos negros, intitulado “Colonização”, de setembro de 1919, e que abre este livro.
Aqui, o jovem jornalista invoca a condição da população negra dos EUA, para acusar simultaneamente o processo de colonização e a forma como a chamada missão civilizadora ocidental tratava os negros, oferecendo como exemplo as ilhas onde nasceu, e para onde a mãe, natural de Angola, foi levada, censurando a deslocação para o arquipélago de S. Tomé e Príncipe de dezenas de milhares de africanos de outras terras para o trabalho escravo nas fazendas (cultivavam o cacau que era exportado para as fábricas europeias de chocolate), os castigos corporais, a exploração, as perseguições, o analfabetismo.
Filho de uma angolana, que com 15 anos foi levada à força para a ilha do Príncipe para trabalhar na roça Infante D. Henrique, e de um branco, funcionário dessa roça, Mário Domingues veio com 18 meses para Lisboa, onde foi criado pelos avós paternos num ambiente de classe média.
Estudou no antigo Colégio Francês, em Lisboa, onde conviveu com outros estudantes que se tornaram grandes amigos, como é o caso de Cristiano Lima, seu futuro parceiro na redação do diário anarquista A Batalha, e de Reinaldo Ferreira, conhecido como Repórter X.
Iniciou a vida profissional nos finais da década de 1910 como ajudante de guarda-livros e correspondente de francês e inglês, aos 19 anos começou a publicar contos no jornal A Batalha e, em novembro de 1919, tornou-se jornalista profissional daquele diário.
Entre os artigos escolhidos para este livro, contam-se textos como “Não há escravatura”, que tem como mote um desmentido feito pelo governador de S. Tomé junto do Ministério das Colónias quanto à existência de escravatura naquela ilha.
“O formoso jardim” é uma resposta, em tom satírico, a um texto publicado no jornal Pátria, em que Lisboa surgia sob a metáfora de um “formoso jardim” onde medravam “ortigas de folhas eriçadas de espinhos” (os negros), ao passo que “A questão de raças” aborda a sucessão de acontecimentos sangrentos ocorridos aquando de uma greve de funcionários e operários do Estado em S. Tomé.
O livro inclui também um conjunto de peças, para as quais o cronista inventou uma personagem – Anastácio, o racista português -, que reunia em si mesmo autoritarismo, conservadorismo e racismo, e cujo esquema de pensamento era dominado pelo binómio branco/preto, civilizado/incivilizado.
Outra série de pouco mais de 20 artigos reúnem-se nesta obra sob o título “Para a história da colonização portuguesa”, com origem num episódio presenciado numa barraca com o letreiro “O preto resiste a todos os portugueses”, na Feira Mayer, em que um branco pobre pintado de negro era alvo dos que se divertiam a atirar-lhe bolas de serradura com o objetivo de lhe acertar e ganhar um charuto.
Esta sequência de artigos teve o seu epílogo com um texto-manifesto intitulado “Pela emancipação da raça negra”, no qual o autor explanou o que era necessário para que os negros usufruíssem da liberdade que lhes era negada.
Outros textos acompanham de modo crítico a posse do alto comissário de Angola tenente-coronel Rego Chaves e evidenciam as relações tóxicas entre o colonialismo e a alta finança, mas também o movimento crescente de artistas e intelectuais negros, na literatura, na música e nas artes cénicas, que deram expressão estética à questão negra a colonial.
O estilo incisivo e o tom irónico enformam o conteúdo ativista do jornalismo de Mário Domingues, que não esconde o fundo psicológico e emotivo que subjaz à sua ação política.
Num dos textos, de recorte assumidamente autobiográfico, fala da história da mãe, “que morreu na flor da idade, vitimada por esse trabalho iníquo da roça” e confessa: “Ela é para mim o símbolo da África mártir, a África oprimida, a África dolorosa”.
José Luís Garcia destaca, contudo, que apesar do seu protagonismo, Mário Domingues não era uma voz isolada, era parte de um movimento negro em Lisboa e de uma corrente de pensamento em formação, que se exprimiu em artigos de fundo assinados por autores como Ferreira de Castro e Cristiano Lima, que denunciavam a barbárie do colonialismo português e defendiam as lutas de libertação contra as potências coloniais.
Além dos artigos nos jornais, Mário Domingues escreveu novelas, romances, peças de teatro, policiais, ficções de ‘cowboys’, aventuras e evocações histórias, muitos deles assinados com pseudónimos, até ingleses e franceses, e criou tradutores fictícios.
Um dos seus romances, de cariz autobiográfico, intitulado “O menino entre gigantes”, foi analisado pela escritora e ensaísta austríaca Ilse Pollack, que salientou o seu valor literário, num telegrama datado de 1992 e enviado ao pintor António Pimentel Domingues (filho de Mário Domingues), no qual escreveu tratar-se de um “belíssimo romance”.
O telegrama termina com a frase: “Um dos mais belos livros que conheço (e conheço muitos)”.
Até 28 de março, a Biblioteca Nacional de Portugal tem patente uma exposição dedicada a Mário Domingues, subordinada ao tema “Anarquista, cronista e escritor da condição negra”, e que explora as suas diversas facetas, através de documentos, fotos, artigos de imprensa e livros.
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