Palestra de Sexa. o Embaixador Lauro Barbosa da Silva Moreira.

Palestra de Sexa. o Embaixador Lauro Barbosa da Silva Moreira,

Presidente do Observatório da Língua Portuguesa, primeiro Embaixador do Brasil na CPLP,

no Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro

por ocasião do DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA (5/5/21)


 https://youtu.be/tW_zl3TFWxw

         A LÍNGUA PORTUGUESA E A CONSTRUÇÃO DA LUSOFONIA

Lauro Moreira

        Por ocasião da XIV Reunião Ordinária do Conselho de Ministros  da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada em Lisboa em julho de 2009, da qual tive a honra de participar como Embaixador do Brasil junto a esse Organismo, foi instituído o dia Cinco de Maio como o Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP. Dez anos mais tarde, a 25 de novembro de 2019, essa data foi referendada pela UNESCO como o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Por isso estamos aqui hoje.

Os nove Estados-Membros da CPLP advogam firmemente a promoção e difusão da língua portuguesa como um de seus objetivo maiores, mediante o qual afiançam o entendimento mútuo, a concertação político-diplomática e a cooperação recíproca em todas as áreas, à luz de seus preceitos constitucionais e estatutários.

Esta língua de Camões na qual nos expressamos hoje ostenta uma larga trajetória de oito séculos. Em brevíssimo retrospecto, lembremos que  no Século XI, o pequeno rincão da Península Ibérica chamado pelos antigos ocupantes romanos de Portus Cale, na foz do Rio Douro, foi doado ao Conde francês D. Henrique de Borgonha,  pelos serviços prestados ao Rei de Castela, Leão e Galícia, D. Afonso VI, na luta de reconquista contra os árabes, ocupantes da Península desde o ano 711. D. Henrique recebeu ainda em casamento a Infanta Dona Teresa, filha bastarda de D. Afonso. O filho único do casal, D. Afonso Henriques,  após vencer, ainda muito jovem, importantes batalhas contra os mouros (Ourique,1139), contra galegos e castelhanos, uma delas contra a sua própria mãe (São Mamede, 1128) veio a ser o fundador do Reino de Portugal, tendo governado de  1139 até sua morte em 1185, aos 76 anos.

 A dinastia iniciada por D. Afonso Henriques perdurou por dois séculos, até a véspera da decisiva  Batalha de Aljubarrota contra os castelhanos em 1385, vencida pelo novo rei, D. João I, o Mestre de Avis. Seu casamento com uma nobre inglesa, Filipa de Lancaster (Lencastre) marcou o início de uma importante aliança política com a Inglaterra, ainda hoje vigente. Deste casal nasce a chamada Ínclita Geração, com nomes como D. Pedro, D. Duarte,  D. Fernando e, muito especialmente, D. Henrique, conhecido mais tarde como O Navegador, o descobridor de novos mundos para Portugal.

A Península Ibérica, como sabemos, foi habitada sucessiva e/ou simultaneamente  por inúmeros povos e diferentes tribos, como os iberos, celtas, cartagineses, romanos (durante seis séculos) godos e finalmente árabes, de 711 a 1492. As origens da Língua de Camões remontam ao período  da ocupação romana, como sabemos, e decorrem sobretudo do latim vulgar, popularmente falado por seus soldados. Desse tronco inicial de idiomas e dialetos presentes na região, nasceram as línguas neolatinas peninsulares: o Castelhano, o Catalão e o Galaico-Português; esta última, falada  do Século VIII ao XIII, a noroeste da Península, na região da chamada Lusitânia, que foi mais tarde bifurcando-se até separar-se em duas importantes línguas, distintas e autônomas: o Galego e o Português.

É naturalmente impossível precisar a data  ou mesmo a época exata de nascimento de uma língua, mas  para muitos pesquisadores o Testamento de D. Afonso II, (neto de D. Afonso Henriques), datado de 27 de Junho de 1214, teria sido o primeiro documento escrito e preservado da Língua Portuguesa. Por outro lado, ao findar o Século XIII, em 1297, o Rei D. Dinis toma a importantíssima decisão de adotar  o Português como língua oficial de Portugal. Mais tarde, o idioma se espalha pelo mundo nos Séculos XV e XVI, quando Portugal se transforma na mais rica e poderosa nação da Europa, edificando um império colonial e comercial que se estendia do BrasilGoa, a Macau, a China, ao Timor-Leste, sendo ainda utilizada como língua franca exclusiva no Ceilão (Sri Lanka) por quase 350 anos.  Durante esse tempo, muitas línguas crioulas baseadas no Português apareceram também em todo o mundo, especialmente na África, na Ásia e no Caribe. Vale notar que no início das Descobertas, no Século XV, o Português era falado por cerca de 1 milhão de pessoas. Desde então, as estatísticas mostram que este foi o idioma que mais cresceu em todo o mundo, como primeira língua.

 Falar de Língua Portuguesa no mundo é falar de Lusofonia. Há, porém, uma certa  dificuldade em conceituar e definir o termo lusofonia, uma vez que o enfoque meramente linguístico não esgota a questão, impondo-se uma visão mais abrangente, mais inclusiva. Ou seja, apenas pela existência de um idioma comum, não se poderia chegar, sobretudo para os linguistas, a um conceito correto de Lusofonia. Bastaria ver a situação da Língua Portuguesa nos países que hoje constituem a CPLP, espalhados pelos quatro Continentes, e onde se falam, além do português, nada menos de 338 línguas diferentes, ou seja, cerca de 5% do total das línguas vivas do mundo atual.

  Dados estatísticos correntes evidenciam que em Cabo Verde a língua mais utilizada é o Crioulo (Kabuverdianu); que em São Tomé e Príncipe, o Santomé (ou Forro) é falado por 73% das pessoas, restando ainda duas outras  línguas nacionais (o Lunguyé e o Angolar); que em Moçambique coexistem 43 línguas nacionais, além do Português, que não é majoritário e que como língua materna é ultrapassado por quatro outros idiomas locais;  que em Angola há 41 línguas nacionais, como o Quimbundo, falado por 20% dos angolanos e o Umbundo, por 26%;  que na Guiné-Bissau falam-se 21 línguas diferentes, sendo o  Crioulo a mais importante. O caso extremo é o do Timor-Leste, onde não mais de  10% da população fala o Português, a terceira língua, após  o Mumbai e o Tétum. Com referência ao Brasil, resultados do Censo de 2010 apontam para nada menos de 274 línguas indígenas, faladas por indivíduos pertencentes a 305 diferentes etnias. Já no tocante à Guiné Equatorial, abstenho-me  de tecer maiores comentários, uma vez que esse país – embora pertencendo oficialmente aos quadros da CPLP a partir de 2015 – não me parece que chegue a preencher os requisitos fundamentais para encarnar ou mesmo representar o que chamamos de Lusofonia, e não apenas no que tange à ausência virtual da língua portuguesa, praticamente inexistente no país…

        Ora, diante desse quadro, seria de fato tecnicamente incorreto falarmos de povos lusófonos, os desses países, onde o bilinguismo e o multilinguismo estão presentes de modo tão expressivo. Logo, o que chamamos de Lusofonia é algo que efetivamente transcende à questão linguística. Podem não ser povos exclusivamente lusófonos, mas são também lusófonos, ainda que, por vezes, minoritariamente. Viveram e continuam vivendo uma miscigenação étnica, cultural e linguística. Em outras palavras: o uso comum de uma língua e uma convivência de povos ao longo de quinhentos anos, formando um patrimônio histórico comum e imaterial, acabou por conformar, em nosso caso específico, não apenas um espaço lusófono, mas sobretudo aquilo que eu chamaria de um espírito lusófono, que leva igualmente em conta os decisivos aspectos culturais e psico-sociais desses povos irmãos. A meu juízo, seria este o conceito abrangente e correto de Lusofonia.

       Esse diálogo intercultural e inter-étnico que se estabeleceu entre descobridor e descobertos, entre colonizador e colonizados – e sem que se entre aqui em qualquer juízo de valor sobre essa colonização – acabou também fazendo da Língua uma “construção conjunta”, na expressão de José Eduardo Agualusa, onde aspectos sintáticos, fonéticos e lexicais acusam uma grande variedade. Uma variedade que representa obviamente um apreciável enriquecimento da própria Língua Portuguesa.//

         É claro que para melhor se entender o fenômeno, seria necessário examinar o marco histórico em que tudo isso se deu, exercício que não caberia certamente no âmbito destas breves anotações. A não ser para relembrar o papel de Portugal nessa empresa, nesse primeiro protótipo de empresa moderna, no dizer do historiador norte-americano Daniel Boorstin, cujas sementes, diria eu, já brotavam duzentos anos antes, com os pinheirais de Leiria plantados por D. Dinis, o Rei Lavrador e Poeta, e que  tem seu início efetivo com o Infante Navegador e sua lendária Escola Náutica, plantada no Promontorium Sacrum. Desse Cabo Canaveral da época – vale a analogia – zarpavam as naves, rumo ao Oceano Ignoto, ao Mar Tenebroso, povoado por monstros lendários e  apavorantes. A partir dali, pouco a pouco, e obedecendo a um rigoroso planejamento estratégico, ampliaram a abertura do Atlântico, revelando novas terras e contactando novos povos, até culminar, já no final do século, com a descoberta do caminho marítimo para as Índias e, em seguida, com o achamento do Brasil por Pedro Alvares Cabral. 

       Foi o início desse já mencionado diálogo intercultural e inter-étnico com povos de várias latitudes, de línguas e culturas diversas, marcado pelo ineditismo e pela abertura em relação ao novo, ao não semelhante, ao diferente. Um processo de assimilação e integração, talvez único ao longo da história, que teve por base e lastro uma chamada língua portuguesa. Uma língua que, para o escritor Virgílio Ferreira, é o lugar donde se vê o mundo, um lugar de pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar, continua ele.  Na minha língua, ouve-se o seu rumor, como, na de outros, se ouvirá o da floresta, ou o silêncio do deserto. Por isso, a voz do mar foi, em nós, a da nossa inquietação. Assim, o apelo que vinha dele, foi o apelo que ia de nós.” /Esse apelo recíproco e inexorável, acrescento eu, que alimentou a gesta heróica dos  primeiros navegadores, que trouxe glória e poder a Portugal e que teve, inclusive, o privilégio de encontrar em Luís de Camões o seu grande Cantor, (E se mais mundo houvera lá chegara) cobrou também altíssimo preço em sofrimentos e em vidas humanas, como nos atestam, já a partir de meados do século 16, os impressionantes relatos da História Trágico-Marítima. Para passar além do Bojador, era preciso de fato passar além da dor.  Valeu a pena? Quem pergunta e responde, séculos mais tarde, é outro imenso Poeta da Língua, Fernando Pessoa, nos breves versos de seu eterno 

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!/

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar/

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor./

Deus/ ao mar/ o perigo e o abismo deu,/

Mas nele/ é que espelhou o céu.

 

E podemos hoje concluir que a alma daquela gente não era pequena… 

      “Não vivemos em uma nação, mas sim em uma linguagem. Não se enganem: nossa língua é nossa pátria”, proclamava enfaticamente o filósofo Emil Cioran. Ou, mais simplesmente, como queria Federico Fellini, “uma língua diferente é uma visão diferente da vida”./ A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos:  é o idioma criado ou herdado pelo povo”, é o que antecipava o poeta Olavo Bilac há mais de um século. Mais tarde, seria Fernando Pessoa a proclamar que “Minha Pátria é a Língua Portuguesa”. E fazendo eco à citada expressão de Agualusa, para quem nossa língua é hoje resultado de uma construção conjunta, Mia Couto retoma e complementa Pessoa, ao dizer que “Minha Pátria é a minha Língua Portuguesa”, levando assim em conta as variantes não apenas lexicais, sintáticas ou fonéticas, mas igualmente o entorno psicológico e social em que a língua é falada. 

        O que realmente importa é que de Camões, Gil Vicente e Eça de Queiroz, a Machado de Assis, Jorge Amado e Guimarães Rosa; de Fernando Pessoa a Carlos Drummond de Andrade e José Saramago; de Jorge Barbosa a Craveirinha e Pepetela; de Alda do Espírito Santo e Alda Lara a Cecília Meirelles e Sophia de Mello Breyner; de Luandino Vieira a Agualusa e Mia Couto, a nossa Língua é uma só, em todas as suas variantes, que apenas a fazem enriquecer.

            Deste modo, há que reconhecer que a Língua Portuguesa, uma das grandes línguas globais de nosso tempo, constitui um dos fatores determinantes na formação da identidade nacional  dos países que compõem a CPLP, além de representar o mais forte traço de união entre eles, a despeito da distância geográfica que os separa, espalhados que se acham pelos quatro Continentes.

        O aumento do número de usuários da língua portuguesa tem sido surpreendente nas últimas décadas. Em 1970 – permitam-me avançar alguns dados estatísticos reveladores – a população conjunta dos países que hoje compõem a CPLP não alcançava a cifra de 130 milhões de habitantes. Para citar apenas os quatro mais populosos, no decorrer desses 50 anos, a população de Angola passou de 6 para 34 milhões, a de Moçambique, de 16 para 31, a de Portugal, de 8,5 para 10, e a do Brasil, de 90 para 212 milhões. Ou seja, alcançamos hoje um total de quase 300 milhões de pessoas vivendo nos países que têm o Português como língua oficial. Por outro lado, há cerca de 1,5 milhão de brasileiros vivendo no estrangeiro, 650 mil moçambicanos, 440 mil angolanos, 180 mil cabo-verdianos. E essa diáspora, que conta hoje com milhões de falantes de Português no mundo, só vem naturalmente  reforçar e ampliar o alcance da própria Lusofonia. 

        Caberia acrescentar aqui um segundo fenômeno, igualmente positivo: essa grande mobilidade humana dirige-se primordialmente para os próprios países da CPLP, o que nos permite dizer que, ao lado da construção nem sempre ágil da Comunidade de Estados, assistimos a uma acelerada integração de pessoas de língua portuguesa, favorecendo destarte a construção de uma desejada Comunidade Lusófona, facilitada pela partilha de um idioma comum. Os números são eloquentes: no Brasil vivem hoje 170 mil portugueses, 130 mil angolanos, 80 mil cabo-verdianos e 85 mil moçambicanos; enquanto em Portugal, residem regularmente 150 mil brasileiros, 76 mil cabo-verdianos, 36 mil guineense e igual número de angolanos.

       Poderíamos agora acrescentar, com apoio de pesquisas do Observatório  da Língua Portuguesa, entidade sediada em Lisboa que tenho hoje a honra de presidir,  e do recente Novo Atlas da Língua Portuguesa, que, como língua materna, o Português é a que apresenta o maior crescimento em todo mundo, bastante superior ao do Espanhol e do Inglês. Já é atualmente a terceira língua mais falada do Ocidente, a primeira do hemisfério sul e quarta de todo o mundo. No final deste século, segundo a ONU, terá cerca de meio bilhão de falantes. Com 260 milhões de usuários, conjuntamente Angola e Moçambique farão do Português uma das línguas dominantes do continente africano, ao lado do Inglês e do Árabe. E não nos esqueçamos de que apenas pouco mais de 1% das línguas existentes são faladas por mais de 10 milhões de pessoas

           Em seu prefácio a esse Novo Atlas, o Professor e Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, ao mencionar que nosso idioma é pluricontinental e policêntrico, afirma: “Sendo a mesma língua, é falada e escrita de formas diferentes, correspondendo a histórias, patrimônios, vizinhanças linguísticas, estruturas gramaticais pragmáticas, referências culturais e usos sociais diferentes. Compreende, pois, múltiplas variantes; é uma realidade dinâmica e multiforme. Todas as variantes dispõem de igual valor. Não há um “centro” para a língua portuguesa; ela não possui só uma norma padrão, nem ninguém pode, sobre ela, invocar direitos especiais de propriedade.” Esta língua é, portanto, o nosso grande tesouro em um mundo cada vez mais globalizado, nosso capital maior, seja em termos culturais, de conhecimento, de comunicação, seja em termos econômicos, como os estudos estão a demonstrar.

       Interessante observar a esse respeito que, ao se constituir a CPLP, o seu reconhecido mentor, o saudoso Embaixador José Aparecido de Oliveira, declarou que “A primeira das nossas preocupações na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa foi a de instituir uma sociedade rigorosamente entre iguais, de tal maneira que as dimensões físicas e políticas dos países participantes não influíssem na formação do grupo nem na sua orientação futura. Há, em nosso entendimento, um fator transcendental, que nos iguala e elimina preocupações de hegemonia: a alma comum, fundada pela nossa língua”.

        E assim nasceu a CPLP, em julho de 1996… Mas seria ocioso sublinhar que se a Lusofonia, como vimos, não se esgota no idioma, muito menos se esgotaria em um organismo multilateral criado pelos países de língua oficial portuguesa. O espírito e o idioma da Lusofonia espraiam-se por um universo não delimitado por fronteiras nacionais, alcançando rincões longínquos, marcados pela presença da diáspora de nossos países. Países bem aquinhoados pela natureza, cobrindo uma área total de 10,7 milhões de km2, com o mar à sua volta, com costas extensas, com jurisdição sobre 5,5% de toda a plataforma marítima mundial de até 200 milhas; países responsáveis hoje por mais de 4% da riqueza do mundo (com um PIB superior a 3 trilhões de dólares); com reservas de água doce – estratégicas como sabemos para o futuro da humanidade – representando 16% do total do planeta. Esse é o rico espaço em que nos tocou viver, e mais que nunca  cabe a cada um de nós, cidadãos e Estados lusófonos, a missão e a responsabilidade de fazê-lo cada dia mais próspero, mais justo, mais equânime. 

        Os desafios são grandes; óbices de monta não faltam. Sabemos que  há enorme assimetria entre nossos países, nos níveis político, econômico e social; há sérios obstáculos a entorpecer a circulação de pessoas e de bens, decorrentes sobretudo da distância entre nossas fronteiras nacionais, bem como da natural participação de nossos países em diferentes organismos regionais. Mais especificamente no tocante à questão da língua, impõe-se um esforço adicional na tarefa de ampliar intramuros a proporção de  falantes do Português, ou seja, em nosso próprio espaço interno, reduzindo o analfabetismo e estendendo o ensino às comunidades remotas. Aliás, caberia mencionar que, na área da educação superior, os resultados tem sido animadores, pois milhares de estudantes dos PALOP e do Timor Leste frequentam hoje universidades de Portugal e do Brasil. Registre-se inclusive a criação da Universidade Federal de Integração Luso-Afro-Brasileira – UNILAB, no Estado do Ceará, com 50% de vagas destinadas a estudantes provenientes desses mesmos países. 

       Não há dúvida de que será seguramente na intensificação do intercâmbio cultural entre nossos povos que conseguiremos contornar vários desses obstáculos, inclusive os de caráter político e econômico-comercial, aprofundando nosso conhecimento recíproco, descobrindo nosso imenso património imaterial comum, reforçando nossa fraternidade de almas. É indispensável uma política de apoio continuado a iniciativas de intercâmbio regular nas diferentes áreas da cultura. Esse esforço contribuirá cada vez mais para que alcancemos nosso grande objetivo, que é o de não apenas contar com uma Comunidade de Estados Membros, mas sobretudo desenvolver uma pujante Comunidade de Cidadãos Lusófonos. Sabemos que obstáculos não faltam, agravados por vezes por uma insuficiente determinação política de nossos Estados, mas não nos esqueçamos de que a CPLP será sempre aquilo que nossos países, nossos governos quiserem que ela seja. Não há uma CPLP fora de nós.

         Finalmente, não posso ignorar que há por vezes certos problemas que se eternizam inexplicavelmente, no aguardo

de uma solução. Subsiste ainda, por exemplo, uma incompreensível divergência nos processos de normatização da língua portuguesa, começando pela lamentável novela do Acordo Ortográfico, que completa agora 31 anos de desencontros. Justamente um instrumento negociado entre nossos países em 1990, destinado a aproximar a língua escrita da língua falada, e que por reduzir drasticamente as indesejáveis diferenças ortográficas, estimular o intercâmbio cultural no espaço lusófono, facilitar enfim a aprendizagem do Português como língua estrangeira e sua introdução nos organismos internacionais, deveria ser mais que bem-vindo, a despeito de suas poucas e inevitáveis deficiências, inerentes de resto a qualquer acordo do gênero. Mas, a meu ver, o objetivo principal desse instrumento, era e é o de finalmente  abolir uma aberração ortográfica que já durava 80 anos, – desde que Portugal introduzira unilateralmente sua importante Reforma Ortográfica de 1911. A aberração estava na existência de uma só língua e duas ortografias, oficiais e excludentes. Felizmente, a esperada elaboração do VOC, Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, aprovada na Cimeira de Dili, em 2014, e coordenada pelo IILP, está a chegar a bom termo, exceto ainda em Angola e Guiné-Bissau.

        Para concluir, vale também ressaltar que  milhares de professores, notadamente de Portugal e Brasil, estão neste momento a ensinar regularmente nossa língua a milhões de estrangeiros, em mais de setenta países, seja em cursos regulares mantidos, entre outros, pelo Instituto Camões e pela rede de Centros de Estudos Brasileiro  no Exterior, seja em leitorados e cátedras universitárias, seja ainda por meio do ensino a distância.//

       Minhas Senhoras, Meus Senhores,

             Língua-Mar é o título de um soneto do poeta brasileiro contemporâneo Adriano Espínola, que, a meu ver, expressa com fidelidade muito do que acabamos de dizer, só que em bela  linguagem poética e, portanto, muito mais envolvente:

Língua-Mar           

Adriano Espínola

A língua em que navego, marinheiro,

na proa das vogais e consoantes,

é a que me chega em ondas incessantes

à praia deste poema aventureiro.

É a língua portuguesa, a que primeiro

transpôs o abismo e as dores velejantes,

no mistério das águas mais distantes,

e que agora me banha por inteiro

Língua de sol, espuma e maresia,

que a nau dos sonhadores-navegantes

atravessa a caminho dos instantes,

cruzando o Bojador de cada dia.

Ó língua-mar  velejando em todos nós.

No teu sal, singra errante a minha

 Permitam-me, finalmente, e para concluir, que lhes apresente aqui o texto de uma breve porém emocionada mensagem, enviada pelo grande Poeta do Douro, Miguel Torga, quando da inauguração da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em 1996:

“Impossibilitado de participar pessoalmente nessa feliz iniciativa de fundação da Comunidades dos Países de Língua Portuguesa, venho, desta maneira saudar calorosamente os seus ilustres e ativos obreiros, e afirmar mais uma vez o que sempre pensei e disse em letra redonda, que é na língua comum que temos todos, filhos de Europa, da África e da América, o maior patrimônio histórico e cultural, e garantia eterna da nossa identidade.

 Língua nascida numa Pátria exígua territorialmente, mas que ela alargou aos cinco Continentes, graças ao seu dom expressivo e proteico, que lusitanizou, brasilizou e africanizou terras e almas. Grácil e sutil logo no berço, em breves cantigas de amor ou de maldizer, ao cabo de oitocentos anos, não só conserva o viço inicial, como floresce dia a dia em sambas, modinhas, mornas e obras literárias de largo fôlego. Não há ritmo de verso de que não seja capaz, arroubo épico para que não tenha alento, andamento narrativo a que não saiba dar balanço. Fizeram e fazem esse milagre, povo anônimo reinol, os marinheiros aventureiros, os bandeirantes, os tropeiros sertanejos, os escravos das senzalas, e gênios e talentos que vão de Camões e Gil Vicente a Machado de Assis e Euclides da Cunha, José Craveirinha e Luandino Vieira.

Exaltar e promover esse patrimônio sagrado é mais um dever imperativo de povos que o destino quis que fossem de irmãos miscigenados; e é como membro orgulhoso da nossa família multirracial, e é como garimpeiro nos aluviões do idioma materno, que faço votos para que todos sejamos seus firmes defensores e dignos merecedores da glória de o servir”.

MUITO OBRIGADO!

 

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