A gente chama de Kadafi. A concorrência, de Gaddafi. O The New York Times usa Qaddafi. Tem agência de notícia que usa Gadhafi. Na imprensa brasileira, também se lê Kadhafi. A rede de TV ABC, dos EUA, listou 112 maneiras diferentes de chamar o famigerado ditador líbio. Mas, afinal, qual é a maneira certa de escrever o nome do sujeito?
Depende. A confusão toda começa com o desafio de transpor os fonemas de um alfabeto para outro. Problemas parecidos acontecem com o japonês, o chinês e outras línguas que usam notações diferentes do nosso bom e velho ‘de A a Z’. É o caso do árabe de Kadafi. Ou Gaddafi. Enfim.
De acordo com o professor de língua árabe Mamede Jarouche, do departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), a confusão vem dos fonemas desse idioma que não existem em português. Quando a transliteração do alfabeto árabe para o latino é feita, adaptações são necessárias.
Vamos lá. Primeira sílaba. O fonema da primeira letra do nome de Kadafi é uma consoante uvular. Algo como um ‘Q’ seguido de um som aspirado no fundo da garganta , muito difícil de ser pronunciado para quem fala português. “É algo entre o nosso ‘K’ e o ‘Q’. Mas na nossa o ‘Q’ sem ser seguido de ‘U’ fica estranho. Por isso alguns usam o ‘K’”, diz Jarouche.
Muito bem. Próxima sílaba. O ‘D’ do nome de Kadafi, em árabe, tem um som próximo ao ‘th’ do inglês (como em ‘the’- aquele som que todo mundo penou para aprender na aula de inglês). Segundo a professora Sana Abou Jubran, também da FFLCH/USP, esse som geralmente é transliterado para o alfabeto latino como um ‘D’ dobrado, apesar deste dígrafo não existir em português.
Última sílaba. ‘Fi’. Essa não tem diferença. Mas e quem escreve com dois efes (Kadhaffi)? “Quem escreve assim não sabe nada. Tá errado”, brinca o professor Jarouche.
De acordo com a professora Sana, mesmo o primeiro nome do ditador – Muamar – tem peculiaridades fonéticas. “Entre o ‘Mu’ e o ‘A’ existe um som que não existe no alfabeto latino. Às vezes é representado por um apóstrofe. A segunda parte do nome, seria representada com duas letras ‘M’ . Assim temos: ”Mu’ammar Qaddafi’.
É esse o certo? Ainda não. No dialeto árabe usado na Líbia, a tal da consoante uvular tem som de ‘G’. Daí muitos veículos usarem Gaddafi. No árabe padrão – mais clássico, utilizado na ciência e na literatura – o tal fonema do ‘Q aspirado’ é o correto. Além do nome e do prenome, Kadafi, como a maioria dos árabes, tem um artigo entre os dois, apesar dele ter sido limado na maior parte das grafias adotadas no Ocidente. ” Seria al-Qaddafi na versão padrão, ou el-Gaddafi, no dialeto”, explica a Sana.
Mas, afinal de contas, o que quer dizer o nome do ditador em árabe? O professor Jarouche explica: ” No árabe, todo substantivo deriva de um verbo. Kadafi quer dizer aquele que dispara, ou o disparador. E tem um significado mais chulo também…”.
Em um momento como este, no qual o ditador ordenou ataques aéreos contra a população civil para aferrar-se ao poder, não deixa de ser cruelmente irônico. Mu’ammar al-Qaddafi, Mu’ammar el-Gaddafi ou Muamar Kadafi, como nos recomenda o manual de redação do Estado, poderia ser traduzido simplesmente como ‘facínora’.
FONTE: Blog da Maria Lúcia