Fotografia de Gonçalo Lobo Pinheiro
André Vinagre –“O ensino do português na China está num ritmo de crescimento que me impressiona”, comenta Carlos André em entrevista ao PONTO FINAL. O antigo director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau (IPM), actualmente em funções como professor honorário da instituição, destaca os resultados dos esforços para a disseminação da língua portuguesa na China. Carlos André esteve seis anos em Macau, tendo regressado a Portugal há dois anos e meio. À distância, o membro da Academia das Ciências de Lisboa comenta que “tem de haver mais parcerias de natureza científica” entre Portugal e a China. Para Carlos André, os projectos chineses da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e “Uma Faixa, Uma Rota” vão impulsionar ainda mais o interesse na língua portuguesa.
Já deixou o cargo de director do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau há quase três anos. Como tem acompanhado a evolução do ensino da língua portuguesa em Macau desde que saiu?
Tenho mantido uma relação estreita com o IPM, do qual sou professor honorário, além de ser amigo das pessoas que trabalham lá. Além disso, sou orientador de uns alunos de doutoramento do IPM, portanto mantenho uma relação estreita com o IPM e também mantenho uma relação estreita com a China, porque, desde que saí daí, todos os anos tenho dado um mês de aulas em Xangai.
Em Macau esteve cerca de seis anos. O que é que destaca no ensino do português ao longo deste período?
Há uma coisa que é inequívoca. Neste momento, o ensino do português na China está num ritmo de crescimento que me impressiona. Mas há uma coisa que é preciso dizer: o impulso que o IPM deu a esse desenvolvimento foi imprescindível e não é comparável com nada que tenha sido feito seja por quem for. É único.
A que nível, na prática?
Terei de falar da actividade do IPM, especialmente – mas não só – da actividade do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa. Vejamos que o CPCLP fez dezenas de acções de formação de professores nas universidades da China, o que era uma coisa inimaginável antes. Foi um projecto que concebemos e que conseguimos executar. Fomos de universidade em universidade e fizemos acções de formação de professores para os docentes dessas universidades mas também para os docentes das universidades que se situavam mais ou menos dentro daquela área regional. Por outro lado, foram produzidos 25 ou 26 livros, alguns deles particularmente importantes, não apenas materiais de natureza pedagógica, mas fizemos também outros livros de outra natureza, sobre o ensino de textos, lexicologia, sobre tradução, sobre questões gramaticais, todas as áreas fundamentais para o ensino de uma língua, nós fizemos isso. As acções de formação, sobretudo as acções de formação e produção de materiais e a aplicação “Diz Lá”, uma aplicação para telemóvel que ainda continua a ser um sucesso na China, são de facto passos importantíssimos. O CPCLP não montou a rede do português na China, mas o que o CPCLP fez foi pegar na corda de que se fez a rede. A rede viria a existir e foi montada pelas próprias universidades chinesas, mas nós ajudámos a que elas se reunissem todas. Fizemos isso, inclusive, antes das próprias instituições governamentais portuguesas, nós fomos pioneiros, andámos à frente. Isso foi inigualável, não houve ninguém que fizesse o que o IPM fez.
Dois anos e meio depois de ter saído, como é que vê os esforços no ensino do português em Macau e na China?
No que diz respeito à China, foi lançada a estratégia e os alicerces, e agora o processo desenvolve-se naturalmente. É preciso termos em conta as mutações que sucederam entretanto do ponto de vista dos recursos humanos. Em 2013, haveria 12 ou 13 universidades com o português no interior da China. Quando saí, em 2018, havia já 44 universidades com português no interior da China. Neste momento são mais de 55. Este é um crescimento brutal. Durante este tempo, os jovens docentes chineses foram fazendo as suas formações, fizeram mestrados e começaram os seus doutoramentos. Quando eu deixei Macau, em 2018, deveria haver, no interior da China, três ou quatro docentes de português com doutoramento. Neste momento, já lhe perdia a conta. Quase todos os meses tenho notícias de que há professores que conheço que se doutoraram numa universidade portuguesa, ou de Macau ou brasileira. Este processo cresceu brutalmente, e isto significa que as instituições de ensino superior da China e os seus departamentos de português criaram condições para eles próprios se desenvolverem. A grande mudança é esta, é a maturidade. Os departamentos de português estão a ganhar maturidade na China. Se deixar de haver interesse pelo português na China, obviamente que isto cai, mas eu não acredito que deixe de haver porque os países de língua portuguesa representam um peso enormíssimo no plano internacional. Na próxima década, África vai ter um crescimento populacional superior a qualquer outra parte do mundo. Angola e Moçambique vão ser dois países enormes daqui a 2050. Com o crescimento do mundo de língua portuguesa, e esperemos que com a estabilização do Brasil, obviamente que haverá mais interesse pelo português no interior da China, porque obviamente esse interesse não é só cultural, mas é material.
Isso insere-se também no projecto chinês “Uma Faixa, Uma Rota”…
Há dois projectos na China que de certeza vão abraçar esta causa. O “Uma Faixa, Uma Rota” e outro é o projecto da Grande Baía. Este projecto da Grande Baía é fortíssimo do ponto de vista económico e quer manter relações com os países de língua portuguesa. É preciso ter em conta que Cantão é uma cidade muito procurada pelo mercado africano. À medida que evolui o diálogo com países como Angola, Moçambique ou Brasil, obviamente que vai acontecer a necessidade do português.
Que tipo de parcerias para o ensino do português poderiam ser feitas no interior da China?
Eu sei que há parcerias neste momento entre instituições chinesas e instituições de países de língua portuguesa, particularmente portuguesas e brasileiras. Durante algum tempo, essas parcerias eram consubstanciadas muito através do IPM, hoje já são muito directas. A Universidade de Dalian, no interior da China, tem uma parceria fortíssima com a Universidade de Aveiro, onde foi criado um Instituto Confúcio. Essa parceria está a traduzir-se num crescimento brutal, seja do chinês na universidade de Aveiro, seja do português na Universidade de Dalian. Também estão a acontecer algumas parcerias entre a Universidade de Xangai e a Universidade de Lisboa, isto vai-se traduzir num crescimento dos dois lados. Mas eu acho que ainda tem de haver mais, tem de haver parcerias de natureza científica e dessas só conheço entre a Universidade de Xangai e a Universidade de Lisboa.
O que é que essas parcerias poderão trazer em relação à língua?
Não é só à língua. É à língua e à cultura. Nós não podemos dissociar. Podem aumentar os estudos sobre a cultura portuguesa na China e a cultura chinesa em Portugal. Isso não está suficientemente estudado. O que acontece com os estudos da cultura portuguesa na China tem muito a ver com a presença dos jesuítas, por exemplo, que produziram muita obra que está escrita. Ela não pode ser estudada só por portugueses. Esse estudo será sempre incompleto enquanto não for feito simultaneamente por quem conhece a realidade local, ou seja, a história chinesa. Há um embrião de parcerias nesse sentido que têm de ser desenvolvidas. Não é apenas uma questão de língua, é uma questão de um diálogo cultural mais intenso que passe para além da língua.
Esses diálogos culturais o que é que podem trazer a Portugal e à China?
Temos de conhecer muito bem como é que aconteceu a presença do Ocidente na China durante os séculos XVI e XVII. Os arquivos chineses estão cheios de material desta natureza que só podem ser estudados por investigadores chineses. As nossas bibliotecas em Portugal estão cheias de livros escritos essencialmente em latim que podem ser estudados por portugueses, mas a realidade local tem de ser vista por chineses. As questões interculturais são questões que não podem ser só trabalhadas por um dos lados, têm de ser trabalhadas em parcerias dos dois lados. Isso vai levar a uma descoberta mais aprofundada tanto nossa como da China. A China não chega ao mundo em que nós vivemos só no século XX e nem nós chegámos à China só no século XX. Há uma presença mútua durante três ou quatro séculos. Presença essa que, do meu ponto de vista, não está suficientemente estudada. A língua é apenas uma parte disso. O que tem acontecido é que se têm separado as coisas e nós temos de começar a juntá-las.
Que lugar cabe à língua portuguesa em Macau? Tem desempenhado bem o papel de plataforma?
Macau tem de saber muito bem ter o seu lugar, que é um lugar especial do ponto de vista da presença da cultura portuguesa no Oriente. Isto é uma questão importante. O que Macau faz e tem de fazer não pode ser só encarado do ponto de vista político, tem de ser encarado do ponto de vista da identidade histórica. Macau foi sempre China, ilude-se quem pensar de forma diferente. Macau nunca foi outra coisa se não um território chinês de cultura chinesa. Para mim, é inequívoco. Macau sofreu, durante séculos, uma miscigenação num diálogo muito tranquilo entre a cultura chinesa e a cultura ocidental através da cultura portuguesa. Mas será uma ilusão pensar que Macau alguma vez foi cultura portuguesa. Teve a presença da cultura portuguesa, o que é um pouco diferente. Essa identidade histórica de um diálogo que vem desde o século XVI dá a Macau uma configuração especial para olhar para este seu papel de mediador. Se Macau assumir sempre a sua identidade assumirá sempre a mediação. A República Popular da China deseja-o e a cultura portuguesa deve também desejá-lo. O que Macau tem feito é administrado bem essa situação através das suas instituições. A língua portuguesa continua a ser uma das duas línguas oficiais de Macau, não é mais do que isso, porque em Macau não se fala português, para se falar português era preciso que houvesse muito mais pessoas a falá-lo e não há, como se sabe. Apesar de tudo, há uma vontade política para manter a língua portuguesa na situação que tem até este momento e que resulta da Lei Básica.
No futuro a longo prazo, acredita que essa vontade se vai manter?
Nenhum de nós sabe fazer futurologia a esse nível. Nós somos portugueses, as decisões, no que diz respeito a Macau e à China e à relação entre Macau e o interior da China, dizem respeito aos chineses e não dizem respeito aos portugueses. Nós somos estrangeiros em Macau e, portanto, nós não só não temos de fazer futurologia, como não temos de condicionar essa evolução. Essa evolução é definida por quem tem toda a legitimidade para o fazer, os responsáveis de Macau e da República Popular da China. Eu acredito que, se o xadrez internacional se mantiver como está, se as projecções demográficas para África se mantiverem, eu não tenho dúvidas de que Macau procurará manter esta sua identidade porque isso lhe dará um lugar especial nesse xadrez.
E em Portugal há a noção de que existe este interesse tão grande da China na língua portuguesa? É valorizado esse interesse?
Começa a ser cada vez mais. Do ponto de vista das instituições académicas, eu sei que universidades como Coimbra, Aveiro, Porto e Lisboa têm um fortíssimo empenhamento na relação com instituições universitárias chinesas e isso para mim é evidente. As instituições que gerem o português no mundo estão preocupadas e empenhadas com o ensino do português na China. Tanto quanto sei, continua um fortíssimo empenhamento por parte do Governo português no apoio à Escola Portuguesa de Macau e no que diz respeito ao Instituto Português do Oriente. E depois há as instituições chinesas e aí, continuo a dizer, aquela que mais tem feito até este momento pelo português tem sido o IPM, mas a Universidade de Macau também tem tido uma fortíssima actividade neste domínio. Eu tenho uma perspectiva muito optimista em relação ao que vai acontecer.
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