Bonecos de Olinda
Caros amigos,
A agilidade brasileira no manuseio do português consegue ser fabulosa. Um dos meus cronistas preferidos (infelizmente Luís Fernando Veríssimo já não consegue escrever) é um já quase velho amigo, o pernambucano José Paulo Cavalcanti, que foi ministro da Justiça no governo de José Sarney, mas a nossa amizade vem do seu interesse por Fernando Pessoa (é autor de uma biografia do poeta). O nosso ponto de encontro é Lisboa, aonde ele vai com frequência. Foram muitos jantares no Salsa e Coentros, ali em Alvalade, quando Eduardo Lourenço era vivo, congregados pelo José Carlos de Vasconcelos. Nas suas bodas de ouro (ainda está casado com Dona Letícia) celebradas em Lisboa (e a que cruelmente faltei), teve a presença do cardeal Tolentino Mendonça, de quem é fã.
Ele envia-me as suas crónicas semanais. Muitas vezes apetece-me partilhá-las com vocês, mas só não o faço para não andar a atafulhar as vossas caixas de correio. Hoje descumpro a regra e remeto esta, chegadinha de Lisboa onde o casal está mais uma vez de visita.
Se no princípio não se sentirem agarrados, não desistam.
Abraços.
Onésimo
COLUNA DA SEMANA DE 26.AGOSTO.2022
O PINTOR É UM FINGIDOR
Segundo Fernando Pessoa, “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente” (Autopsicografia”). Versos que recitamos sem perceber que, lidos como estão, não fazem nenhum sentido. Que nem o coitado desse poeta imaginário, nem ninguém, pode fingir que é dor uma dor que sente de verdade (deveras). Porque ou se finge uma dor que não se sente, ou verdadeiramente se sente uma dor que então já não é fingida. Tempos depois ouvi em obra um pedreiro pedir, a seu ajudante, “areia de fingir”; compreendendo afinal ser essa areia tirada dos leitos do rio, que se mistura ao cimento, não é de fingir ‒ no sentido estrito em que hoje empregamos o termo, de esconder o pensamento. Mas de construir. E também compreendi que esse verso Pessoa destinou a iniciados ‒ o que fazia com freqüência. Pois fingir, em português arcaico, é também construir. Retomando o sentido, em latim, do verbo fingere. Sem contar que fingidor era profissão comum na belle époque portuguesa do século XIX, para designar artesões que esculpiam salas e telhados, em gesso e nessa areia, com colherinhas de fingir. No fundo, o próprio fingimento não é senão a construção de uma outra realidade ‒ algo comum a poetas e outros seres ungidos com o dom de iludir. Gente que vaga pela vida vencendo batalhas misteriosas, sofrendo sofrimentos inauditos e amando amores implausíveis. Só que ditos sonhos lhes pertencem apenas enquanto guardados nas suas almas; porque, postos no papel, ganham vida própria e passam a ser de todos nós, indeterminados cidadãos comuns. Com os pintores acontece o mesmo. Até porque, segundo os dicionários, fingidor quer dizer também pintor. Essa enfadonha e longa introdução tem somente o sentido de homenagear nosso grande pintor José Cláudio ‒ que, amanhã, estará fazendo 90 anos. Viva Zé Cláudio!!! E faço isso contando essa historinha. Ligou Caetano Veloso e marcaram encontro às três da tarde. Na casa do próprio Zé Cláudio, em Olinda. Dando-se que, como todo bom baiano, Caetano gosta de rede. Chegou tarde, já escuro. E encontrou na casa somente Cícera.
– Zé Cláudio está?
Aqui, parêntese para dizer quem é Cícera, personagem de romance. Soberana em sua cozinha, é a dona da casa. Tanto que se alguém chegar, e não for logo cumprimentá-la, está perdido. Zé Cláudio pede para servir cafezinho, ela traz só um e diz
– Esse é para o senhor. Seu amigo sirvo não, que ele é muito mal-educado.
Está explicado, pois. Mais ou menos. Voltando à pergunta de Caetano, Zé Cláudio está?, Cícera respondeu sem maiores preocupações
– No dentista.
– Posso esperar por ele aí dentro?
– Claro que não.
E voltou a se preocupar com sua sopa. Uma resposta natural, para ela. Pouco antes, por exemplo, não deixou entrar Chico Buarque. Só que Chico se conformou logo. Pedindo apenas o acesso, à casa, para uma amiga que precisava fazer suas necessidades.
– Ela que faça aí fora mesmo.
Nesse ponto da conversa bom dizer que a casa fica em Olinda, no alto de um morro. Depois da casa de Abel, é como ensina o caminho, sem que se saiba quem seria o tal Abel. A quase 10 minutos da rua em que passam taxis. E o músico teve a infeliz ideia de não ficar com aquele no qual chegou. Já se preparando para descer o ladeirão, com risco até de ser assaltado, insistiu
– A senhora, pelo menos, diz a ele que estive aqui?
– Digo sim.
Desconfiado, e sem certeza de que seu recado seria mesmo transmitido por aquela mulher tão estranha, fez uma última pergunta
– A senhora desculpe mas sabe quem sou?
– Sei. É Caetano Veloso. Mas eu prefiro Tarcísio Meira.
José Paulo Cavalcanti Filho.
Onésimo Teotónio Almeida
últimos artigos de Onésimo Teotónio Almeida (ver todos)
- “Diálogos Lusitanos” nas livrarias - 24 de Setembro, 2024
- … ainda a morte de Eugénio Lisboa - 10 de Abril, 2024
- Eugénio Lisboa – mais um amigo que se vai - 9 de Abril, 2024
- Correntes d’Escritas - 6 de Março, 2024