Quando os estrangeiros visitam Portugal pela primeira vez, esperam encontrar coisas como o sol a brilhar, praias de areia branca, uma gastronomia afamada e a herança cultural de um país com novecentos anos de história. Porém, de entre todas as descobertas que fazem durante a sua estadia é a simpatia dos portugueses o que mais os surpreende. Sejam turistas, estudantes ou pessoas que se mudaram há pouco tempo para este belo país à beira-mar plantado, é com espanto que constatam que nós, portugueses, somos realmente simpáticos, prestáveis e muito hospitaleiros.
Durante vários anos ouvi incontáveis comentários de pessoas dos quatro cantos do mundo neste sentido, o que me fez tentar descobrir, não a razão da simpatia dos portugueses, mas a razão da surpresa que isso provoca. Porquê tanta admiração? Teremos assim tão má imagem lá fora? Será que nos têm como um povo ensimesmado e melancólico, que só ouve Fado e bebe vinho com o olhar perdido no horizonte atlântico? É verdade que não somos barulhentos e enérgicos como “nuestros hermanos” espanhóis, nem estamos sempre em festa como os brasileiros, só para citar os dois povos com que mais nos comparam por proximidade física ou linguística, mas também não é caso para tanta admiração.
Decidida a encontrar uma resposta, comecei a observar os meus concidadãos e depressa percebi a razão da surpresa: é que nós, portugueses, não sorrimos muito. Aliás, posso mesmo afirmar que somos um bocado trombudos, o que, aliado à fisionomia atarrancada e pilosidade escura, pode provocar a sensação de se estar perante seres taciturnos. Além de pouco sorridentes, nós, portugueses, somos tímidos. Muito tímidos. E a timidez é amiúde confundida com distanciamento. Ou seja, numa primeira interacção com um português, um estrangeiro depara-se com um indivíduo sisudo, que não o olha nos olhos e não solta grandes palavras. Se for uma mulher, pior ainda, pois fomos educadas para não dar confiança a estranhos. Não é por acaso que as portuguesas têm fama de difíceis, que o digam os rapazes que tentam meter conversa. O mais provável é levarem com um olhar desconfiado, quase indignado, como quem diz «o que é que este quer?». Quarenta anos depois de uma ditadura durante a qual as mulheres precisavam de autorização do marido para coisas como abrir uma conta bancária ou sair do país, persiste a herança castradora que nos manda ser recatadas, não andar por aí sozinhas e não dar conversa ao primeiro que nos sorri.
Ah, o peso da ditadura… Foram mais de quarenta anos de austeridade, cinzentismo, conservadorismo e muito recato. Demasiado recato. Não dar nas vistas, não dar que falar, ao ponto de outros países quase se esquecerem de nós. Felizmente vieram os futebolistas, a Madonna e o Web Summit para nos colocar outra vez no mapa. Mas adiante!
A grande vantagem que nós, portugueses, temos em relação a outras populações igualmente acabrunhadas é que a coisa connosco só dura uns minutos. Basta insistirem um bocadinho, fazerem mais uma ou duas perguntas, para logo nos sentirmos à vontade e nunca mais nos calarmos. Não há barreira linguística ou cultural que nos impeça de nos fazermos entender e brindar o nosso interlocutor com uma simpatia genuína.
Talvez esteja no nosso código genético, marcado pela presença de diferentes povos no que é hoje o nosso território (celtas, iberos, fenícios, cartagineses, romanos, suevos, visigodos, árabes) e também pelas grandiosas viagens que fizemos nos séculos XV e XVI à descoberta do mundo. De África à Índia, do Brasil ao Japão, imaginem a desenvoltura necessária para que centenas de marinheiros analfabetos tivessem conseguido afirmar-se em países exóticos, estabelecendo as três mais importantes rotas comerciais da época, Ouro, Seda e Especiarias. Ou talvez seja apenas a vontade de nos fazermos ouvir depois de tantas décadas “orgulhosamente sós”. Seja por que razão for, o que é certo é que, se nos dão um bocadinho de trela, falamos do que sabemos e do que não sabemos com a mesma convicção. Da história à política, da economia ao futebol, temos sempre uma opinião sobre tudo, alimentada por horas de conversa de café e absoluta credulidade perante o que se vê nas notícias.
Mas se a simpatia dos portugueses se destaca numa simples conversa, ela brilha intensamente quando nos pedem indicações turísticas. Podem perguntar apenas como se vai para a rua X, que não só indicamos o caminho, como aproveitamos a deixa para falar do miradouro que fica ali perto, da tasca que serve as melhores iscas ou da loja onde se vendem as conservas mais genuínas. Fazemos questão de revelar o segredo mais bem guardado, as coisas que são só nossas, inimitáveis, irrepetíveis. Temos noção da nossa dimensão e nem sequer tentamos competir com outros destinos no que toca a monumentos, espólio artístico ou oferta comercial. Daí focarmo-nos no que não há em mais nenhum lugar do mundo. Chamamos um amigo ou um vizinho para atestar a veracidade das nossas sugestões. Se temos carro, insistimos em dar uma boleia, se não temos, ajudamos a parar um táxi ou caminhamos lado a lado para garantir que não se perdem. Despedimo-nos com um abraço e um convite para jantar lá em casa, como faríamos com um velho amigo, seguindo depois com a sensação de dever cumprido: ajudámos um turista, mostramos-lhe o que é bom, e assim, quando ele voltar ao seu país, vai espalhar por todo o lado que de melhor do mundo não temos apenas o Cristiano Ronaldo.
Somos, sem dúvida, um povo simpático e hospitaleiro. E mesmo aqueles que dizem estar fartos de turistas, que já não se ouve falar português nos centros históricos e não se consegue circular com tanto Tuk Tuk que anda na estrada, param imediatamente ao primeiro “excuse me”, ávidos em serem úteis e exibirem o seu país. Parece incoerente? É porque é mesmo. Aliás, a par da simpatia, a incoerência é outra das nossas características mais marcantes. Eis alguns exemplos.
Gostamos de exibir os feitos dos nossos compatriotas, mas só depois de eles serem elogiados e valorizados por quem vem de fora.
Somos desenrascados e inventivos, mas deixamos tudo para a última da hora, na esperança de que aconteça um milagre que resolva o problema por si.
Somos muito tolerantes com diferentes tipos de raça, religião ou estilo de vida, mas absolutamente mal-educados em coisas básicas como a condução.
Cultivamos a modéstia e a humildade, mas ao ponto de termos de pedir desculpa por qualquer sucesso, porque este ainda é visto como algo feio, fruto da sorte ou de influências duvidosas.
Não pedimos muito da vida, mas nunca estamos contentes com o que temos: se chove é porque nunca mais chega o sol, se não chove é porque vai haver seca. Estão a ver a ideia?
Colocamos a família em primeiro lugar, mas não abdicamos de longas horas de almoço ou de começar a trabalhar às dez, acabando por chegar a casa à hora em que as crianças já estão quase a ir para a cama.
Temos infindáveis horas de sol, mas transformamos as nossas varandas em marquises e corremos sempre os cortinados.
Queixamo-nos que somos um país pobre e mal governado, mas demitimo-nos das nossas obrigações cívicas e “amanhã, logo se vê”.
Parece que a incoerência vem de longe. Diz-se que, na era dos romanos, o General Galba, governador da Península, afirmou qualquer coisa como “há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar”. Tão verdade. Ainda assim, cheios de defeitos e contradições, com pouco respeito pela cultura e nenhuma sofisticação, nós, portugueses, temos um enorme orgulho do que é nosso e gostamos de oferecê-lo a todos os que nos visitam, embrulhado em horas de conversa, genuína simpatia e muitos beijos e abraços, que isso de apertar a mão é só para quem não se conhece.
(artigo publicado originalmente em Junho de 2018 na revista alemã ADCE, num numero dedicado a Portugal)