… E, como é habitual por aqui, também damos uma espreitadela a outras línguas…
Antes de começarmos, note como a palavra tem um sufixo muito curioso: -ança. Encontramo-lo em palavras que mostram um excesso, como «festança», mas também em palavras menos superlativas: «confiança», «esperança» (entre tantas outras).
Portanto, o que este sufixo faz é pegar num verbo e transformá-lo num nome. «Confiar» transforma-se em «confiança»; «esperar» transforma-se em «esperança» — e por aí fora.
Ao contrário doutros sufixos, o sufixo -ança parece ter perdido a força. Criou palavras durante séculos e, um belo dia, cansou-se. Hoje, é mais difícil usá-lo para criar novas palavras. «Amar» pode transformar-se em «amança»? Dificilmente. «Parar» pode ser «parança»? Na verdade, sim: «parança» está nos dicionários, tal como, entre outras mais raras, «falança» [1]. Mas palavras como «teclança» seriam difíceis de criar agora (mas nunca se sabe…). Há outros sufixos que continuam a trabalhar sem parança: se amanhã aparecesse um país chamado «Talaguistão», é bem provável que os seus habitantes fossem os talaguistaneses. O sufixo -ês está vivo e recomenda-se.
No caso da palavrinha que nos trouxe aqui, o sufixo -ança, num tempo em que ainda andava cheio de pujança, encontrou o verbo «criar», chegou-se a ele e nasceu uma bela «criança». Este «criar» veio — surpresa! — do latim, mais propriamente da forma verbal «creāre». O verbo latino já tinha vindo da antiga forma proto-indo-europeia «*ḱer-», que significava «crescer» ou «fazer crescer» e que também está na origem do verbo português «crescer». O verbo «criar» também deu origem a «criatura», «criação», «cria», «criadouro»…
E o -ança? Veio do sufixo latino «-antia», que deu origem a sufixos semelhantes em muitas línguas: o castelhano «-anza», o catalão «ança», o francês «ance», o italiano «anza»…
Curiosamente, esta mistura entre o verbo «criar» e o tal sufixo deu origem a uma palavra muito parecida em castelhano: «crianza». Só que, neste caso, o significado não é o próprio humano pequenino, mas sim o processo de criação… O dicionário da Real Academia Española dá este significado à palavra (entre outros): «Acción y efecto de criar, especialmente las madres o nodrizas mientras dura la lactancia.»
A maneira como as línguas próximas moldam os materiais de forma subtilmente diferente deixa-me sempre com cócegas no cérebro. É como se, nestas pequenas diferenças, víssemos o avesso da costura com que se cosem as línguas.
Bem, não podemos fazer grandes viagens, que hoje é dia de estar com os meus filhos. Mas vamos espreitar mais uma língua: no catalão, temos «criança», assim mesmo, com cedilha (sinal que o castelhano já não usa). O sentido é que é bastante mais próximo do castelhano do que do português. Como diz o Gran Diccionari de la llengua catalana, «criança» é a «acció de criar un infant». O exemplo que este dicionário dá é curioso: «La criança del fill li va costar molts diners.» Numa tradução livre: a criação do filho saiu-lhe cara… Note que «va costar» está mesmo no passado: o «passat perifràstic» do catalão faz-se com o verbo «anar», ou seja, «ir» — um verbo que, em português, usamos muitas vezes para nos referirmos ao futuro. Por estranho que nos pareça, «vaig parlar» não é «vou falar», mas sim «falei». Mais um pormenor sobre esta língua? «Vaig» lê-se como «batch»…
Então, como dizem «criança» castelhanos e catalães? Em castelhano, temos «niño» e «niña». Em catalão, temos «nen» e «nena». Para se referirem às crianças, genericamente, servem-se das formas masculinas: «los niños» castelhanos e «els nens» catalães. Se quiserem referir apenas as meninas, usam as formas femininas: «las niñas» em castelhano e «les nenes» em catalão. Também temos «menino» e «menina», mas não usamos tantas vezes esta palavra no sentido genérico. O «Dia do Menino» seria um pouco estranho. Já «hoje vou brincar com os meus meninos» fica muito bem.
O Dia da Criança fica, assim, «Día del Niño» em castelhano e «Dia de la Infància» em catalão. Mas não é só a expressão que muda: a própria data é outra. Afinal, o Dia da Criança não é universal. Em Espanha, é celebrado no dia 20 de Novembro, data consagrada pela ONU.
Por cá, o Dia da Criança é mesmo agora, no primeiro dia de Junho, quando o Verão já está a bater à porta e o calor aperta. O Simão, o meu filho de sete anos, terá uma festa com a turma, por videoconferência. O Matias, o mais pequenino, andará, como é costume, a cantar o dia inteiro. Será um Dia da Criança um pouco diferente, mas não faz mal: fazemos a festa cá em casa.
Feliz Dia da Criança!
(1) Na primeira versão deste artigo, referia que «parança» não era palavra portuguesa. As palavras trocam-nos as voltas: a verdade é que a palavra existe e até está nos dicionários. Quem me alertou foi Adela Figueroa Panisse, que me informou sempre ter ouvido «parança». Daí, foi um salto até chegar à «parança» que está nos dicionários portugueses.