Os jornais têm felizmente feito justiça à obra literária do Cristóvão de Aguiar. Pouca gente sabe que ele se estreou como poeta (Mãos Vazias, 1965), mas não foi nesse género literário que deixou marca. E, no entanto, foi um poema seu que primeiro tornou o seu nome conhecido: “Naufrágio”, musicado pelos açorianos (terceirenses) Duarte e Ciríaco, num disco de 45 rotações, na altura muito ouvido, e que entrou logo no reportório dos apreciadores de baladas, sobretudo porque apareceram no famoso programa Zip-Zip, da RTP.
Para quem não conhece, aqui vai o poema, seguido da versão musicada:
A história que eu vou contar
Ouvi-a na minha aldeia,
Onde à noite a voz do mar
Murmura canções na areia.
História de pescadores
Do Cais Negro à Pontinha,
Onde há grandes senhores
Que bocejam à noitinha.
Foi o barco do Zé Tordo:
Partiu à noite p’ró mar
E na madrugada ao porto
O seu barco sem chegar.
Encheu-se a praia de gritos
Da gente da minha aldeia
Ao ver o corpo do Zé
Trazido na maré-cheia.
Ouvem-se vozes: «Coitado!
Cinco filhos e mulher
Sem uma côdea de pão,
Sem um abrigo sequer!»
E no enterro, à viúva,
Levando ao Zé muitas flores,
Prometem-lhe a sua ajuda
O povo e os grandes senhores.
Mas dois anos já são passados,
Na praia da minha aldeia
Vêem-se cinco crianças
Brincando nuas na areia.
E da moral desta história
Tirem vossas conclusões:
Uma família não vive
Só de boas intenções.
E da moral desta história
Tirem vossas conclusões:
Uma família não vive
Só de boas intenções.
A música é da tradicional “Charamba”, do folclore terceirense: https://www.youtube.com/watch?v=uo5xbrMnA9A
Ponham agora tudo isto em pano de fundo porque vou acrescentar uma história da altura, quando a canção se tinha popularizado imenso nos Açores.
Acabara de entrar Janeiro de 1970 e eu mais um grupo de cinco colegas tínhamos abandonado o Seminário de Angra algum tempo antes. Metemo-nos para Lisboa no paquete “Carvalho Araújo” da Insulana de Navegação, apanhando mar bravo durante dois dias entre Ponta Delgada e Funchal. Ia pouca gente a bordo, quase só uns representantes da elite local que passava o seu tempo no “Jardim de Inverno” da 1ª classe. Nós íamos na 3ª classe mais uns 60 jovens que rumavam à escola de milicianos em Tavira (estava-se ainda em tempo de guerra em África). Até ao Funchal, cada um ficou amarrado ao seu beliche tentando resolver da melhor maneira o maldito enjoo. Depois de uma reconfortante noite no Funchal, prosseguimos rumo a Lisboa – mais dois dias de viagem, felizmente com o mar bem mais calmo. Soltámo-nos no convés e, graças à guitarra do Carlos Sousa, ao violão do Zé Francisco Costa e ao nosso treino de canto em grupo, estabelecemos uma grande relação de amizade com um punhado daquela rapaziada nossa patrícia, militares-a-ser. A dada altura, ouvimos vozes de outras músicas provindas do salão da 1ª classe e fui investigar. Era um grupo de estudantes madeirenses que entrara no Funchal e regressava às aulas no Continente. De capa e batina, entretinham os senhores da 1ª classe (só homens) com um programa algo trivial, de que se destacava uma versão da ao tempo também popular “Os amores de um estudante”, mas parodiada numa letra reduzida a Um chapéu aos quadradinhos / um chapéu aos quadradinhos / um chapéu aos quadradinhos, que divertia muito o minúsculo auditório.
Como havia ainda muito espaço naquela sala (o “Jardim de Inverno”) e nós os cantantes éramos um grupo pequeno, pareceu-nos que poderíamos juntar-nos contribuindo com as nossas cantigas. Atrevi-me a ir pedir autorização ao Imediato e ele acedeu sem problema. Entrámos então na sala e juntámo-nos à cantoria.
Ora o nosso reportório era bastante diferente, pois incluia muitas das chamadas “canções de protesto” – Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire. Aos poucos, os sorrisos dos engravatados, todos vestidos a rigor de fato cinzento ou preto, foi esmorecendo. Alguém entre eles deve ter-se ido queixar, pelo que não tardou muito a surgir um membro da tripulação a informar-nos que o comandante tinha dado ordens de abandonarmos a sala.
Obedecemos respeitosamente e regressamos ao convés, onde continuamos a cantoria, agora expostos à maresia e ao vento.
Eu retirei-me para um canto e pus-me a escrever uma paródia ao poema do Cristóvão de Aguiar. Pronta a dita, juntei-me de novo ao meu grupo e combinei um plano. Ensaiávamos a nova letra e depois iríamos invadir o “Jardim de Inverno” apenas o tempo suficiente para lhes cantarmos a nossa mensagem.
Dito e feito. Ensaiados a jeito sob a batuta do José Gabriel Ávila, entrámos no Jardim de Inverno e pusémo-nos a cantar. Ainda íamos a meio e já de novo o tal membro da tripulação entrava a expulsar-nos da sala. Todavia resistimos e só saímos, sempre ordeiramente, quando terminamos a interpretação.
Aqui vai a letra encaixada na música popularizada pelos baladeiros Duarte e Ciríaco e que segue à risca, verso a verso, o original do meu patrício Cristóvão de Aguiar (aconselho aos leitores a primeiro relerem o poema do Cristóvão a fim de melhor ficarem com ele no ouvido):
A história que eu vou contar
Não a ouvi na minha aldeia
Mas foi mesmo aqui no mar
Com enjoo, sem lua cheia.
História de uns senhores
Com dinheiro e gravatinha
Que na vida só bocejam
Desde manhã à noitinha.
Foi no Cavalho Araújo
Que andava há dias no mar
E ao porto de Lisboa
‘Stava custando a chegar.
Então a malta da plebe
de mãos postas foi pedir
para no Jardim de Inverno
Um pouco se divertir.
Lá dentro alguns estudantes
Todos muito pipizinhos
Pediam com insistência
Um chapéu aos quadradinhos.
E o enterro aconteceu
P’ra estes inferiores
quando o criado avisou
que aquilo era pr’ós senhores.
Viemos então p’ra fora
e lá na sala vazia
sentam-se agora os senhores
com toda a sua mania.
E a moral desta história
meus senhores é barata:
Nesta vida só se safa
Aquele que usa gravata.
(Tenho isso algures nos meus arquivos, contudo não sei onde. Garanto, porém, estar a ser fidedigno, pois posso a qualquer momento cantarolar tudo de enfiada).
Passamos o resto da viagem a cantar no convés até altas horas da noite. Houve reclamações, contudo não nos preocupamos porque um membro da tripulação segredou-nos que o comandante os aconselhara a conterem-se pois nós estávamos aliados aos pré-milicianos e constituíamos uma larga maioria a bordo.
Receamos que, à chegada ao cais de Alcântara, em Lisboa, possivelmente acabaríamos de pulseira nos braços. Todavia nada nos aconteceu.
Ainda hoje, volta e meia encontro um desses rapazes nossos companheiros de viagem, o Luís Soares. Nunca o esqueci. Chegado a Tavira, escreveu-me uma longa carta a narrar as suas experiências. O seu instrutor tinha-lhe metido na mão uma espingarda G-3 dizendo-lhe: – Daqui para diante, esta é que é a tua namorada. O Luís comentou desapontado: – Estás a ver, Onésimo? – A minha namorada?! Mas que grande canhão!
Onésimo Teotónio Almeida
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