Minha nota prefacial ao livro de homenagem a Miguel Real, que acaba de sair, na Lusosofia, para assinalar os 40 anos da sua vida literária.
O meu encontro com Miguel Real aconteceu através dos livros e foi um encontro feliz. Desde que fui, no final da década de 1970, fazer estudos de doutoramento para a Alemanha, me passei a interessar pelos estudos que, à falta de melhor designação, podem ser chamados de Portugalidade. Como definir Portugal, não tanto o território físico mas mais o território mental, isto é, os Portugueses e a Cultura Portuguesa? Habitantes de um país antigo no extremo do Velho Continente, construímos ao longo de séculos uma cultura, traduzida entre outras manifestações pela língua, que se foi metamorfoseando até chegar ao que é hoje no cruzamento fértil com outras culturas, designadamente nos tempos dos Descobrimentos. Depois do alvoroço desses tempos, interiorizámos a ideia, que terá a sua justificação, de atraso. Fernando Pessoa, ou melhor Álvaro de Campos, resumiu esse sentimento ao dizer no «Opiário» (1914), dedicado ao «Senhor Mário de Sá-Carneiro»: «Pertenço a um género de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho. A morte é certa. Tenho pensado nisto muitas vezes». E, no entanto, houve nalguns a consciência da necessidade de construir o futuro sem as sombras do passado, como aconteceu no tempo do Iluminismo, com a ajuda de alguns «estrangeirados», com a «geração de 70» no século XIX e com muitos resistentes no nosso estagnado século XX. Nunca nos conseguimos libertar de uma corrente saudosista, projectada em glórias passadas que poderão um dia, como D. Sebastião no imaginário sebastianista, regressar. A revolução do 25 de Abril inaugurou uma nova era, com ligação reforçada à Europa da qual sempre fizemos parte, aproximando-se um tempo de balanço e reflexão que será proporcionado pela celebração dos 50 anos de liberdade. É óbvio que o passado passou, mas a ponderação dele é indispensável na construção de novos caminhos. Por mim, vi-me a pensar Portugal lá fora, no rescaldo da Revolução, e ainda antes da adesão à Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia.
Um punhado de bons autores portugueses têm reflectido sobre a Portugalidade. No nosso século XX, prolongando-se pelo seguinte, é justo destacar Eduardo Lourenço, cujo pensamento profundo e iluminante sobre a cultura nacional (principalmente na Literatura e na Filosofia) é assistido por uma bela escrita. Terá ajudado à sua perspectiva o facto de observar Portugal de Vence, no Sul da França, pois ao longe vê-se por vezes melhor. Mas há outros como, por exemplo: do lado da História, Josué Pinharanda Gomes e José Eduardo Franco; do lado da literatura, Hernâni Cidade e António José Saraiva; do lado da Filosofia, Onésimo Teotónio de Almeida e José Gil; do lado da religião, Manuel Antunes SJ e Frei Bento Domingos OP; do lado da sociologia, Moisés Lemos Martins e Boaventura Sousa Santos, etc.
Pois o Miguel Real, pseudónimo de Luís Martins desde 1987, que eu descobri a partir do seu livro Portugal. Ser e Representação (Difel, 1988), Prémio Revelação Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores de 1995, merece bem enfileirar nessa galeria de distintos autores. Esse seu primeiro livro sobre Portugalidade invoca, entre outros, os nomes de Eduardo Lourenço e de António José Saraiva, reflectindo o facto de ele próprio, formado em Filosofia, sempre ter manifestado forte propensão para a Literatura, propensão que se tem que tem passa pela escrita de numerosas obras de ficção e pela longa e contínua prática de crítica literária.
Desde Portugal. Ser e Representação que tenho acompanhado a escrita ensaística de Miguel Real sobre a Cultura Portuguesa (e, penitencio-me, não tanto os seus romances e os seus ensaios de índole mais filosófica). Julgo possuir nas minhas estantes senão todos pelo menos a maioria dos seus livros dessa área, enfileirados ao lado de outras obras com as quais dialoga. Destaco, como aliás o próprio autor destacou numa «Auto-biografia imperfeita» que escreveu, em 2018, para a Vaca Malhada, revista de Filosofia dos estudantes da Universidade do Minho, Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (Planeta, 2017, com prefácio de José Eduardo Franco) e Pensamento Português Contemporâneo. O Labirinto da Razão e a Fome de Deus. 1890 – 2010 (Imprensa Nacional – Casa da Moeda), um espesso e muito útil manual universitário que resultou de seminários e cursos que o autor deu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Relevo sobretudo a sistematização de ideias que o autor empreende assim como a claridade da sua escrita, uma qualidade que não é suficientemente cultivada entre nós. Foi para mim sempre estimulante ler Miguel Real, que um dia conheci pessoalmente. Quis, na ocasião em que a Universidade da Beira Interior lhe organizou uma homenagem, assinalando os seus 40 anos de vida literária, agradecer-lhe publicamente o seu pensamento. Este volume dá conta que esse agradecimento não é apenas meu, mas é partilhado por muitos admiradores do ensaísta, romancista e dramaturgo. Se há sempre alguma subjectividade no grau de apreciação por um autor, podemos falar de objectividade quando vemos confluir tantos e – ressalvando o meu caso – tão autorizados testemunhos.
Miguel Real não hesitou em confrontar-se com as míticas ideia de «morte» e «ressurreição» do país, como fez nas suas obras, todas elas com títulos muito sugestivos, A Morte de Portugal (Campo das Letras, 2007), A
Vocação Histórica de Portugal (Esfera do Caos, 2012, com novo prefácio de José Eduardo Franco) e Nova Teoria do Sebastianismo (Dom Quixote, 2014), este inserido num conjunto de pequenos ensaios filosóficos com capas duras. Estando ciente da atracção que tiveram e ainda têm em Portugal muitas teses da chamada, talvez impropriamente, «Filosofia Portuguesa», devo dizer que não nutro simpatia por elas. Julgo ser uma rejeição instintiva, mas a análise crítica de Miguel Real dessas correntes ajudaram decerto a formar o meu pensamento. Apesar do grande prazer que encontro a ler a prosa do padre António Vieira e a poesia de Fernando Pessoa, dois «imperadores da língua portuguesa», sobre o destino luso, não penso que se possa extrair mais dessas linhas do que prazer literário. Não creio que Portugal tenha qualquer missão histórica especial a cumprir no concerto das nações. Não penso que o nosso país possa encontrar algum desígnio na «lusofonia», qualquer que seja a forma desta. E também não penso que o seu passado colonial lhe possa, no recalcamento sentimentos de culpa, tolher as vontades de construção do futuro em conjunto com os outros países europeus. A história foi o que foi, embora a possamos permanentemente reinterpretar. E o futuro será o que será, fruto tanto da vontade humana como de acasos circunstanciais.
Quaisquer que sejam as opiniões de quem lê e de quem escreve (e lê-se e escreve-se para formar opinião!), o certo é que Portugal continua a ser um desafio para todos aqueles que nele vivem e para todos aqueles que por ele se interessam, mesmo vivendo lá fora. Alexandre O’Neill sumaria a questão nacional, nos bem conhecidos versos do poema «Portugal» que abre o volume Feira Cabisbaixa (1965): «Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,/ golpe até ao osso, fome sem entretém,/ perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,/ rocim engraxado,/ feira cabisbaixa,/meu remorso,/ meu remorso de todos nós…» Significativo é o facto de terminar com reticências. E é com a nossa identidade, sedimentada pela história como Miguel Real tão bem tem explicado, que temos de construir o futuro que as reticências simbolizam.
Carlos Fiolhais
Foto de destaque: Lúcia Crespo e Sérgio Lemos – 04 de Fevereiro de 2022
Miguel Real
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