Lauro Moreira
Qual seria o verdadeiro significado da palavra Lusofonia? A pergunta é recorrente, e a dúvida idem. A Professora portuguesa Helena Sousa, em seu Comunicação e Lusofonia, refere-se à lusofonia como “uma construção extraordinariamente difícil, desenvolvida num espaço linguístico altamente fragmentado, um sentimento pleno de contradições, uma memória de um passado comum, uma cultura múltipla e uma tensa história partilhada”.
Já para Alfredo Margarido, a Lusofonia extravasa o conceito de “objecto de mera curiosidade histórico-linguística ou até histórico-cultural”, para formar uma congregação de interesses “que têm a ver não apenas com aquilo que os países lusófonos são como língua e cultura no passado, mas também, sobretudo, com o presente e com o destino do ‘continente imaterial’ que estes países constituem”.
Há resistências perceptíveis ao próprio uso da palavra, que evoca para alguns um passado colonial ainda muito recente. As palavras porém não devem ser temidas. Temos apenas que buscar-lhes o seu real significado. Por outro lado, confesso-lhes que não encontro sinônimo para essa palavra Lusofonia. O significado de Lusófono não pode ser confundido com o de Lusíada, como equivocadamente sucede às vezes, e não raras vezes. Lusíada, seja como substantivo seja como adjetivo, refere-se apenas ao povo e à intrínseca realidade portuguesa. Lusófono, tanto em um caso quanto em outro, diz respeito ao falante da Língua Portuguesa, em qualquer latitude, e à realidade que o cerca e o condiciona.
Mas reconheçamos que há de fato alguma dificuldade de se conceituar e definir o termo Lusofonia, que toma por vezes acepções diferentes, segundo a ótica de cada um. Desde já, no entanto, gostaria de advertir que, em minha concepção pessoal, Lusofonia nada tem a ver com teorias, por exemplo, como o luso-tropicalismo, uma visão talvez demasiado edulcorada de um importante sociólogo brasileiro, que acabou servindo à política colonial de um ferrenha ditadura. Lusofonia tem mais a ver com nossos povos, que com nossos Estados, e por isso mesmo, o sangue que corre em suas veias é bem mais antigo e mais espesso, data venia, que o de respeitadas entidades congêneres, como a Francofonia ou o Commonwealth.
O que se deve primeiramente destacar é que o enfoque meramente linguístico não esgota a questão. Há necessidade de uma visão mais abrangente, mais inclusiva. Apenas pela existência de um idioma comum não se poderia chegar, sobretudo para os linguistas, a um conceito correto de Lusofonia. Bastaria ver a situação da Língua Portuguesa nos países que hoje constituem a CPLP, espalhados pelos quatro Continentes, e onde se falam, além do português, nada menos de 338 línguas diferentes, ou seja, cerca de 5% do total das línguas vivas do mundo atual.
Ora, diante desse quadro, seria de fato tecnicamente incorreto falarmos de povos lusófonos, os desses países, onde o bilinguismo e o multilinguismo estão presentes de modo tão expressivo. Logo, o que chamamos de Lusofonia é algo que transcende à questão linguística. Podem não ser povos exclusivamente lusófonos, mas são também lusófonos, ainda que, por vezes, minoritariamente. Viveram e continuam vivendo uma miscigenação étnica, cultural e linguística. Em outras palavras: o uso comum de uma língua e uma convivência de povos ao longo de quinhentos anos, formando um patrimônio histórico comum e imaterial, acabou por conformar, em nosso caso específico, não apenas um espaço lusófono, mas sobretudo um espírito lusófono, que leva igualmente em conta os decisivos aspectos culturais e psico-sociais desses povos irmãos.
Esse diálogo intercultural e inter-étnico que se estabeleceu entre descobridor e descobertos, entre colonizador e colonizados – e sem que se entre aqui em qualquer juízo de valor sobre essa colonização – acabou também fazendo da Língua uma “construção conjunta”, na expressão de José Eduardo Agualusa, onde aspectos sintáticos, fonéticos e lexicais acusam uma grande variedade. Uma variedade que representa obviamente um apreciável enriquecimento da própria Língua Portuguesa.
É claro que para melhor se entender o fenômeno, seria necessário examinar o marco histórico em que tudo isso se deu, exercício que não caberia certamente no âmbito destas breves anotações. A não ser para relembrar o papel de Portugal nessa empresa, nesse primeiro protótipo de empresa moderna, no dizer de um historiador norte-americano, cujas sementes, diria eu, brotam com os pinheirais do Rei Lavrador e Poeta, e que tem seu início efetivo com o Infante Navegador e sua lendária Escola Náutica, plantada no Promontorium Sacrum. Desse Cabo Canaveral da época – vale a analogia – desamarravam-se as naves, rumo ao Mar Ignoto. A partir dali, pouco a pouco, e obedecendo a um rigoroso planejamento estratégico, ampliaram a abertura do Atlântico, revelando novas terras e contactando novos povos, até culminar, já no final do século, com a descoberta do caminho marítimo para as Índias e, em seguida, com o achamento do Brasil por Pedro Alvares Cabral.
Foi o início de um diálogo inter-cultural e inter- étnico com povos de várias latitudes, de línguas e culturas diversas, marcado pelo ineditismo e pela abertura em relação ao novo, ao não semelhante, ao diferente. Um processo de assimilação e integração, talvez único ao longo da história, que teve por base e lastro uma língua chamada portuguesa. Uma língua que, para Virgílio Ferreira, é o lugar donde se vê o mundo, um lugar de pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar, continua ele. Na minha língua, ouve-se o seu rumor, como, na de outros, se ouvirá o da floresta, ou o silêncio do deserto. Por isso, a voz do mar foi, em nós, a da nossa inquietação. Assim, o apelo que vinha dele, foi o apelo que ia de nós.” Esse apelo recíproco e inexorável, acrescento eu, que alimentou a gesta heróica dos primeiros navegadores, que trouxe glória e poder a Portugal e que teve, inclusive, o privilégio de encontrar em Luis de Camões o seu grande Cantor, cobrou também altíssimo preço em sofrimentos e em vidas humanas, como nos atestam, já a partir de meados do século 16, os relatos da História Trágico-Marítima. Para passar além do Bojador, era preciso de fato passar além da dor. Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena, pergunta e responde outro imenso Poeta, séculos mais tarde. E a alma dessa gente não era pequena.
“Não vivemos em uma nação, mas sim em uma linguagem. Não se enganem: nossa língua é nossa pátria”, proclamava enfaticamente o filósofo Emil Cioran. Ou, mais simplesmente, como queria Federico Fellini, “uma língua diferente é uma visão diferente da vida”. “A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos económicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo”, é o que já antecipava o poeta Olavo Bilac há mais de um século. Mais tarde, seria Fernando Pessoa a proclamar que “Minha Pátria é a Língua Portuguesa”. E fazendo eco à citada expressão de Agualusa, para quem nossa língua é hoje resultado de uma construção conjunta, Mia Couto retoma e complementa Pessoa, ao dizer que “Minha Pátria é a minha Língua Portuguesa”, levando assim em conta as variantes não apenas lexicais, sintáticas ou fonéticas, mas igualmente o entorno psicológico e social em que a língua é falada.
O que realmente importa é que de Camões, Gil Vicente e Eça de Queiroz, a Machado de Assis, Jorge Amado e Guimarães Rosa; de Fernando Pessoa a Carlos Drummond de Andrade e José Saramago; de Jorge Barbosa a Craveirinha e Pepetela; de Alda do Espírito Santo e Alda Lara a Cecília Meirelles e Sophia de Mello Breyner; de Luandino Vieira a Agualusa e Mia Couto, a nossa Língua é uma só, em todas as suas variantes, que apenas a fazem enriquecer.
Deste modo, há que reconhecer que a Língua Portuguesa, uma das grandes línguas globais de nosso tempo, policêntrica e pluricontinental, constitui um dos fatores determinantes na formação da identidade nacional de oito dos países que compõem a CPLP, além de representar o mais forte traço de união entre eles, a despeito da distância geográfica que os separam, espalhados que se acham pelos quatro continentes.
O aumento do número de usuários da língua portuguesa tem sido surpreendente nas últimas décadas. Em 1970 – permitam-me avançar alguns dados estatísticos reveladores – a população conjunta dos países que hoje compõem a CPLP não alcançava a cifra de 130 milhões de habitantes. Para citar apenas os quatro mais populosos, no decorrer desses 46 anos, a população de Angola passou de 6 para 25 milhões, a de Moçambique, de 16 para 26, a de Portugal, de 8,5 para 10, e a do Brasil, de 95 para 207 milhões. Ou seja, alcançamos hoje um total de 272 milhões de pessoas vivendo nos países que têm o Português como língua oficial. Por outro lado, há cerca de 1,5 milhão de naturais do Brasil vivendo no estrangeiro, 650 mil moçambicanos, 440 mil angolanos, 180 mil cabo-verdianos. E essa diáspora, que conta hoje com milhões de falantes de Português no mundo, só vem naturalmente reforçar e ampliar o alcance da própria Lusofonia.
Caberia acrescentar aqui um segundo fenômeno, igualmente positivo: essa grande mobilidade humana dirige-se primordialmente para os próprios países da CPLP, o que nos permite dizer que, ao lado da construção nem sempre ágil da Comunidade de Estados, assistimos a uma acelerada integração de pessoas de língua portuguesa, favorecendo destarte a construção de uma desejada Comunidade Lusófona, facilitada pela partilha de um idioma comum. Os números são eloquentes: no Brasil vivem hoje 170 mil portugueses, 130 mil angolanos, 80 mil cabo-verdianos e 85 mil moçambicanos; enquanto em Portugal, residem regularmente 130 mil brasileiros, 76 mil cabo-verdianos, 36 mil guineense e igual número de angolanos.
Poderíamos agora acrescentar, com apoio de pesquisas do Observatório da Língua Portuguesa e do recente Novo Atlas da Língua Portuguesa, que “como língua materna, o português é a que apresenta hoje o maior crescimento em todo mundo, bastante superior ao do espanhol e do inglês. Já é atualmente a terceira língua mais falada do Ocidente, a primeira do hemisfério sul e quarta de todo o mundo. No final deste século, segundo a ONU, terá cerca de meio bilhão de falantes. Com 260 milhões de usuários, conjuntamente Angola e Moçambique farão do Português uma das línguas dominantes do continente africano, ao lado do Inglês e do Árabe”. E não nos esqueçamos de que apenas pouco mais de 1% das línguas existentes são faladas por mais de 10 milhões de pessoas.
Em seu prefácio a esse Novo Atlas, o Professor e Ministro Augusto Santos Silva lembra que nosso idioma é “pluricontinental e policêntrico. Sendo a mesma língua, é falada e escrita de formas diferentes, correspondendo a histórias, patrimônios, vizinhanças linguísticas, estruturas gramaticais pragmáticas, referências culturais e usos sociais diferentes. Compreende, pois, múltiplas variantes; é uma realidade dinâmica e multiforme. Todas as variantes dispõem de igual valor. Não há um “centro” para a língua portuguesa; ela não possui só uma norma padrão, nem ninguém pode, sobre ela, invocar direitos especiais de propriedade.” Esta língua é portanto o nosso grande tesouro em um mundo cada vez mais globalizado, nosso capital maior, seja em termos culturais, de conhecimento, de comunicação, seja em termos econômicos, como os estudos estão a demonstrar.
Interessante observar a esse respeito que, ao se constituir a CPLP, o seu reconhecido mentor, o Embaixador José Aparecido de Oliveira, declarou que “A primeira das nossas preocupações na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa foi a de instituir uma sociedade rigorosamente entre iguais, de tal maneira que as dimensões físicas e políticas dos países participantes não influíssem na formação do grupo nem na sua orientação futura. Há, em nosso entendimento, um fator transcendental, que nos iguala e elimina preocupações de hegemonia: a alma comum, fundada pela nossa língua”.
E assim nasceu a CPLP, em julho de 1996. Mas seria ocioso sublinhar que a Lusofonia, que não se esgota na língua, muito menos se esgotaria em um organismo multilateral criado pelos países de língua oficial portuguesa. O espírito e o idioma da Lusofonia espraiam-se por um universo não delimitado por fronteiras nacionais, alcançando rincões longínquos, marcados pela presença da diáspora de nossos países. Países bem aquinhoados pela natureza, cobrindo uma área total de 10,7 milhões de km2, com o mar à sua volta, com costas extensas, com jurisdição sobre 5,5% de toda a plataforma marítima mundial de até 200 milhas; países responsáveis hoje por mais de 4% da riqueza do mundo (com um PIB superior a 2 trilhões de Euros); com reservas de água doce – estratégicas como sabemos para o futuro da humanidade – representando 16% do total do planeta. Esse é o rico espaço em que nos tocou viver, e mais que nunca cabe a cada um de nós, cidadãos e Estados lusófonos, a missão e a responsabilidade de fazê-lo cada dia mais próspero, mais justo, mais equânime.
Os desafios são grandes; óbices de monta não faltam. Há uma enorme assimetria entre nossos países, nos planos político, econômico e social; há sérios obstáculos a entorpecer a circulação de pessoas e de bens, decorrentes sobretudo da distância entre nossas fronteiras nacionais, bem como da natural participação de nossos países em diferentes organismos regionais. No tocante à questão da língua, impõe-se um esforço adicional na tarefa de ampliação dos falantes intramuros, ou seja, em nosso próprio espaço interno, reduzindo o analfabetismo e estendendo o ensino às comunidades remotas. Aliás, caberia mencionar que, na área da educação superior, os resultados tem sido animadores, pois milhares de estudantes dos PALOP e do Timor Leste frequentam hoje universidades de Portugal e do Brasil. Registre-se inclusive a criação da Universidade Federal de Integração Luso-Afro-Brasileira – UNILAB, no Estado do Ceará, com 50% de vagas destinadas a estudantes provenientes desses mesmos países.
Na área da cooperação para o desenvolvimento, o segundo dos três pilares de sustentação da CPLP, urge a retomada de uma política mais agressiva, mais generosa e mais eficaz por parte das economias de maior desenvolvimento relativo e que por isso mesmo mais podem cooperar, como Brasil, Portugal, Angola e Moçambique.
Mas será seguramente na intensificação do intercâmbio cultural entre nossos povos que conseguiremos contornar vários desses obstáculos, aprofundando nosso conhecimento recíproco, descobrindo nosso imenso património imaterial comum, reforçando nossa fraternidade de almas. É indispensável uma política de apoio continuado a iniciativas como o FestLip (Teatro), o FestIn (cinema), a festivais de música, a recitais poéticos, a edições de livros, a exposições conjuntas de artistas plásticos, à organização de colóquios, conferências, fóruns e seminários sobre temas relacionados à Lusofonia. Ou seja, exatamente como acontece nesta magnífica Bienal de Odivelas, já em sua sexta edição, e que tem contribuído de modo significativo para esse ideal de ampliação do diálogo no espaço lusófono. Tudo isso tem contribuído e contribuirá cada vez mais para que alcancemos nosso grande objetivo, que é o de não apenas manter e contar com uma Comunidade de Estados Membros, mas sobretudo criar uma pujante Comunidade de Cidadãos Lusófonos.
Obstáculos não faltam, como se vê, e alguns são por vezes agravados por uma fraca vontade política de nossos Estados Membros. A esse respeito, aliás, digo sempre, e agora repito, aquilo que parece óbvio mas nem sempre se observa: a CPLP será sempre aquilo que nossos países, nossos governos quiserem que ela seja. Não há uma CPLP fora de nós.
Há por vezes problemas que se eternizam aguardando uma solucão final. Subsiste ainda uma incompreensível divergência nos processos de normatização da língua portuguesa, começando pela lamentável novela do Acordo Ortográfico, que completa agora 27 anos de desencontros. Justamente um instrumento negociado entre nossos países em 1990, destinado a aproximar a língua escrita da língua falada, e que por reduzir drasticamente as diferenças ortográficas, estimular o intercâmbio cultural no espaço lusófono, facilitar enfim a aprendizagem do Português como língua estrangeira e sua introdução nos organismos internacionais, deveria ser mais que bem-vindo, a despeito de suas eventuais e inevitáveis deficiências, inerentes de resto a qualquer acordo do gênero. Mas, o objetivo principal desse instrumento, era o de finalmente abolir uma aberração ortográfica que já durava 80 anos, e que consistia na existência de uma só língua e duas ortografias, oficiais e excludentes. Felizmente, a esperada elaboração do VOC, Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, aprovada na Cimeira de Dili, em 2014, e coordenada pelo IILP, está a chegar a bom termo.
Para concluir, vale ressaltar ainda que milhares de professores, notadamente de Portugal e Brasil, estão neste momento a ensinar regularmente a língua de Vieira a milhões de estrangeiros em mais de setenta países, seja em cursos regulares mantidos, entre outros, pelo Instituto Camões e pela rede de Centros de Estudos Brasileiro, seja em leitorados e cátedras universitárias, seja ainda por meio do ensino a distância.
Minhas Senhoras, Meus Senhores,
Língua-Mar é o título de um soneto do poeta brasileiro contemporâneo Adriano Espínola, que, a meu ver, expressa com fidelidade muito do que tentamos aqui hoje dizer, de maneira prosaica e bem menos atraente:
Língua-Mar
A língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
à praia deste poema aventureiro.
É a língua portuguesa, a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que agora me banha por inteiro.
Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa a caminho dos instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.
Ó língua-mar velejando em todos nós.
No teu sal, singra errante a minha voz.
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Lisboa, 19/05/2017