Pedro Calafate, Professor catedrático da Universidade de Lisboa |
Aqui se apresenta um conjunto de textos que rebatem a tendência para a globalização do pensamento único e, consequentemente, da língua única, criando assim espaço para a necessidade do pluralismo linguístico, que tem uma importância estratégica, uma vez que rejeita a perspectiva da linguagem como mera informação.
Pedro Calafate, Universidade de Lisboa
I – Referências teóricas para uma equação da questão da língua na sua relação com a cultura dos povos: a recusa da linguagem como “informação”.
«Cada língua constitui um certo modelo de universo, um sistema semiótico de compreensão do mundo e, se tivermos 4000 modos diferentes de descrever o mundo, isso tornar-nos-á mais ricos. Deveríamos preocupar-nos com a preservação das línguas do mesmo modo que nos preocupamos com a ecologia»
V.V. Ivanov, Reconstructing the Past, 1992, p. 4.
«Cidadãos de uma terra multiforme, os Europeus não podem deixar de permanecer à escuta do grito polifónico das línguas humanas. A atenção ao outro que fala a sua própria língua é uma exigência preliminar se quisermos construir uma solidariedade que tenha um conteúdo mais concreto do que os discursos propagandísticos»
Cl. Hagège, Le Souffle de la Langue, 1992, p. 273.
Em referência à tradição bíblica que explica a diversidade das línguas como um castigo pela construção de Babel, escreveu J. Trabant
«Esta história é um gesto de propaganda, na explicação parcial que dá da origem da multiplicidade das línguas, apresentada unicamente como castigo e maldição […], na medida em que a multiplicidade das línguas torna pelo menos difícil uma comunicação entre os homens, é, com efeito, um castigo. Por outro lado, significa ao mesmo tempo um aumento da força criadora original de Adão [a capacidade de pôr nomes às coisas que lhe for a dada por Deus], uma proliferação dessa força que permite produzir nomes graças a um sopro divino»
J. Trabant, Apeliotes, oder der Sinn der Sprache, 1986, p. 48.
«O certo é que as línguas não podem ter nascido por convenção já que, para se porem de acordo sobre as suas regras os homens necessitariam de uma língua anterior; mas se esta última existisse, por que razão se dariam os homens ao trabalho de construir outras, empreendimento esforçado e sem justificação?»
Umberto Eco, La Ricerca della Lingua Perfetta, traduçãoportuguesa, A Procura da Língua Perfeita, 1996, p. 326.
«Pela tradução o trabalho do pensamento encontra-se transposto no espírito de uma outra língua e sofre assim uma transformação inevitável. Uma tradução não consiste apenas em facilitar a comunicação com o mundo de outra língua; ela é em si o deciframento da questão levantada em comum. Serve à compreensão recíproca de um sentido superior»
Martin Heidegger, Prólogo à edição de Questions, Paris, 1968.
Contra o mito da tradução automática diz Heidegger:
«A tradição da língua é transmitida pela própria língua, e de tal maneira que exige do homem que, a partir da língua conservada, diga de novo o mundo e por aí chegue ao aparecer do ainda não apercebido. Eis aqui a missão dos poetas»
Martin Heidegger, Língua de Tradição e LínguaTécnica (1962), Lisboa, Veja, 1999, p. 40.
«É também importante examinar se face às forças da época industrial o ensinamento da língua materna não se reduzirá à simples transmissão de uma cultura geral, por oposição à formação profissional [dependente de uma língua técnica e unívoca]. Era preciso considerar se este ensinamento da língua não mereceria ser, mais do que uma formação, uma meditação sobre o perigo que ameaça a língua, quer dizer, a relação do homem com a língua. Uma tal meditação revelaria ao mesmo tempo a dimensão salvadora que abriga o segredo da língua, na medida em que é ela que sempre nos conduz de um só golpe à proximidade do inefável e do inexprimível.»
Martin Heidegger, Língua de Tradição e LínguaTécnica, Op. cit., p. 41-42.
«Se, avançando no sentido da dominação da técnica que determina tudo, temos a informação pela forma mais alta da língua por causa da sua univocidade, da sua segurança e da sua rapidez na comunicação de informação e de directivas, então o resultado é a concepção correspondente do ser-homem e da vida humana»
Martin Heidegger, Língua de Tradição…, Op.cit., p. 38
«Quando na alma desperta verdadeiramente o sentimento de que a língua não é simplesmente um meio de troca com vista ao acordo recíproco, mas que ela é um verdadeiro mundo que o espírito é obrigado a pôr entre si e os objectos pelo trabalho interno da sua força, então a alma está no bom caminho para se encontrar sempre mais nela [a saber, na língua como mundo] e a investir nela»
Wilhelm von Humboldt, Uber die Verschiedenheit des menschilchen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechtes, Berlim, 1836, tomo 20, . 221.
Contra o mito da tradução automática escreveu ÁlvaroRibeiro:
«A tradução mot à mot, a tradução literal, dar-nos-á em filosofia uma série de equívocos próprios para impedir perfeito entendimento da cultura estrangeira.
[…]
Observemos, por exemplo, que na língua francesa a palavra mal tem por vezes a acepção de dor e, efectivamente, traduzimos a palavra maladie pela palavra doença. A dor cinge-se ao domínio da carne, não cobre toda a extensão significativa da palavra sofrimento. Inversamente, por motivos de precisão biológica, teremos em muitos casos de traduzir a palavra corps pela palavra carne […].
Seria totalmente erróneo traduzir as palavras inglesas evidence, injury e luxury, respectivamente por evidência, injúria e luxúria[…]
Cada termo de filosofia possui uma história diferente em cada idioma culto. Vejam-se, por exemplo, as acepções em que pode ser tomada a palavra conceito […]. Subordinar a nossa semântica às definições apresentadas por pensadores estrangeiros, tal como Descartes, Kant ou Mill, por intento absurdo de impossível internacionalização, equivale a agravar a divergência entre o pensamento e a língua.
Conceito significa o que foi por nós concebido. Esta palavra confirma a regra segundo a qual muitos particípios exercem funções de adjectivos que por sua vez se transformam em substantivos.»
Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, Lisboa, s, d, . 126.
«O problema da cultura europeia do futuro não está por certo no triunfo do poliglotismo total (quem soubesse falar todas as línguas seria como Funes o Memorioso de Borges, com infinitas imagens a ocupar-lhe o espírito), mas numa comunidade de pessoas capazes de colherem o espírito, o perfume, a atmosfera de uma língua diferente. Uma Europa de poliglotas não é uma Europa de pessoas falando correctamente múltiplas línguas, mas, no melhor dos casos, uma Europa de pessoas capazes de se encontrar falando cada uma delas a sua própria língua e compreendendo a da outra pessoa, sem a saber falar com fluência, pelo que, entendendo-se assim, ainda que com esforço, entenderão o “génio”, o universo cultural que cada uma delas expressa ao falar a língua dos seus antepassados»
Umberto Eco, La Riccerca della Lingua Perfetta, Op. cit., p. 324/5.
«Quase nunca temos a certeza perfeita de que esta ideia, que construímos sob tal signo e por determinados meios, seja exactamente em tudo e de todo aquela a que atribuem o mesmo signo quer os que no-la transmitiram, quer os outros homens que dela se servem. Por isso, amiúde, as palavras ganham insensivelmente significações diferentes, sem que ninguém se dê conta da mudança; seria assim correcto dizer-se que cada signo é perfeito para quem o inventa, tendo sempre qualquer coisa de vago e de incerto para quem o recebe […] E eu diria mais: já disse que cada signo é perfeito para quem o inventa, mas isso não é, em rigor, verdade a não ser no momento da invenção, porque quando quem o inventou se serve desse mesmo signo noutro momento da sua vida, ou noutra disposição de espírito, já não está inteiramente seguro de reunir exactamente sob esse signo a mesma colecção de ideias que da primeira vez»
Destutt de Tracy, Éléments d’Idéologie, I, p. 546
Exactamene no mesmo sentido escreveu Álvaro Ribeiro :
«As palavras mais significativas são exactamente aquelas que maior número de significações despertam, evocam e suscitam na mente das pessoas que vivem em comunidade de culto, cultura e civilização. A pluralidade de significados, ou polissemia, dá origem a questões sociais de bom ou mau entendimento entre os homens, sem que os semantistas consigam resolvê-las mediante definições exactas no corpo dos dicionários. Cada pessoa tende a pensar o vocábulo, lido ou ouvido, segundo a sua predisposição cultural, e ninguém se resigna a perder sem custo essa liberdade de interpretação»
Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, Lisboa, s.d., p. 123
«Frederico II quis saber por meio de uma experiência que língua e idioma falariam as crianças ao chegarem à adolescência, se nunca tivessem tido a possibilidade de falar com ninguém. Com esse objectivo ordenou às aias e amas que dessem leite às crianças sem nunca lhes falarem. Queria, com efeito, descobrir se falariam a língua hebraica, que foi a primeira das línguas, ou antes a grega, ou a latina, ou a árabe; ou se falariam em todas as circunstâncias a língua dos pais, dos quais tivessem nascido. Mas foi trabalho perdido, porque todos os meninos morriam»
Salimbene de Parma, Cronaca (Crónica) nº 1664.
«Todos nós experimentamos que o pensamento vivo, mesmo o dedutivo, se constitui dinamicamente antes de atingir a precisa e definitiva expressão, que deverá ser tão unívoca quanto possível. Mas quando se trata de objectivar e transmitir vivências em que a carga imagética e emocional é muito intensa, o ideal já não é o da univocidade: as palavras são escolhidas por serem expressivamente eficazes como metáforas, ignorando-se por isso deliberadamente os seus significados comuns […] Penso que todas as metáforas provêm, directa ou indirectamente, das mais fundas vivências que cada um tem do próprio corpo, designada e especialmente do nosso comum condicionalismo sensorial, assim como das características do espaço qualitativamente diferenciado que todos habitamos […] Quase me atreveria a dizer que a língua comum é toda ela feita de metáforas e de generalizações»